Livro ‘Criar Filhos no Século XXI’ por Vera Iaconelli

Livro 'Criar Filhos no Século XXI' por Vera Iaconelli
Criar filhos implica nos vermos como pais, questionarmos o tempo todo nossas escolhas e recorrer, sempre, à trajetória que percorremos. No entanto, por vivermos em um momento de rápidas transformações, a criança e o adolescente que fomos estão muito distantes da infância e adolescência dos nossos filhos. A psicanalista Vera Iaconelli, com larga experiência em consultório, dialoga com todos que vivem a dor e a delícia de criar filhos no século XXI. Não deixe de pedir para o seu distribuidor preferido ou diretamente na Editora. 
Capa comum: 128 páginas
Editora: Editora Contexto; Edição: 1 (1 de agosto de 2019)
Idioma: Português
ISBN-10: 8552001535
ISBN-13: 978-8552001539
Dimensões do produto: 20,8 x 13,8 x 0,8 cm
Peso de envio: 299 g

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Leia trecho do livro

SUMÁRIO

Para começar
Parentalidade no século XXI Filhos?
Melhor não tê-los! Mas…
Satisfação garantida ou seu filho de volta?
“Não sabia que tudo iria mudar”
Casais sobrevivem à chegada dos filhos?
Existe sexo depois do nascimento dos filhos?
Escolha sua perda
O novo homem e a paternidade
A mínima diferença entre os sexos
Por que o feminismo hoje?
Polêmica de gênero
Vida virtual em família
Educar em tempos depressivos
Qual nossa função, afinal?
Elogio aos pais e às mães
A autora

PARA COMEÇAR

Este texto se dirige a pais, mães, educadores e curiosos que estejam às voltas com a criação de filhos em tempos de grandes incertezas. Os temas foram selecionados de uma infinidade de questões que hoje se apresentam a nós. Costumamos dizer que vivemos em tempos difíceis. O curioso é que as pessoas dizem isso desde que o mundo é mundo, ou seja, nunca houve momentos fáceis para a humanidade. Mas há que se reconhecer que alguns momentos encerram crises excepcionais, que mudam o destino do mundo para sempre. A invenção da escrita, por exemplo, foi duramente criticada por Sócrates por impedir qualquer possibilidade de diálogo entre leitor e escritor. A prensa, que popularizou os livros, revolucionou o acesso às informações e foi um dos acontecimentos responsáveis pela criação da ideia de infância como a conhecemos hoje. Afinal, a necessidade de preparar as crianças para a leitura dificultava seu acesso direto ao mundo e permitiu que houvesse um tempo de preservação de sua inocência. Lembremos a Revolução Industrial, que nos trouxe a luz elétrica, os veículos a vapor e a fotografia, deixando o cidadão comum estupefato com tanta novidade. São períodos de transição que implicam revoluções culturais, sociais e econômicas e a insegurança de não sabermos nada sobre o dia de amanhã. Vistas de longe, podem parecer preocupações ultrapassadas e pouco realistas, mas podemos entendê-las se pensarmos que estamos justamente vivendo um período de transição equivalente.

A revolução promovida pela internet nos desnorteia da mesma forma. É tão impossível prever o que nos espera, quanto é necessário que façamos nossas apostas. Afinal, nunca tivemos bola de cristal e ainda assim investimos no futuro a cada família que criamos. Viver uma revolução global traz mais perguntas do que respostas, mas é importante saber se estamos fazendo as perguntas certas. O que é necessário para educar uma criança, independentemente da época na qual ela nasceu? O que é necessário para educar uma criança em nosso tempo, com suas contradições e velocidades alucinantes? Mais do que pensar as crianças, tem sido uma constante no meu trabalho pensar o lugar dos pais, pois entendo que quando o avião despressuriza é mais inteligente que os adultos coloquem as máscaras em si mesmos antes de colocar nos pequenos.

Os capítulos conversam entre si, pois é impossível falar de criação de filhos sem tocar em temas como época, gênero, sexualidade, família, sofrimento, limites, escolhas, garantias. Trata-se mais de apostar numa inquietação que nos leve a refletir do que em manuais sobre como fazer. Mesmo porque, no que tange a criação de humanos, manuais só servem para fazer crer que há fórmulas prontas e a experiência prova que não. Em outras palavras: livros como este que você tem em mãos podem ser lidos de duas formas: como um saber pronto e acabado que deve ser adquirido – a pior forma – ou como um exercício de reflexão que ajude a se autorizar em seu papel e em sua função junto aos filhos. O manual seria seu pior uso, a inquietação, seu melhor.

PARENTALIDADE NO SÉCULO XXI

Foi-se o tempo em que os humanos lutavam para não se extinguir. Os riscos dos partos, a fome, as fragilidades da infância, as forças da natureza, tudo colocava em risco a aventura humana sobre a Terra. Em função disso, cada criança que nascia era tratada com zelo total para garantir a sobrevivência da espécie. Com as aquisições tecnológicas, que dominam grande parte da natureza, e com o excedente alimentar da maioria do mundo desenvolvido, o jogo virou e a superpopulação é que passou a ser uma ameaça, entre outras, para o homem. Desde então, temos buscado, no sentido contrário, formas eficientes de controlar a natalidade indesejada. O excesso populacional e algumas garantias de sobrevivência revelaram que temos muitos outros interesses para além da reprodução e da busca desenfreada por alimentos, até então escassos. Esse longo percurso histórico promoveu uma revolução na questão reprodutiva. A vida sexual tem cada vez menos relação com o desejo de ter filhos. A busca por uma tecnologia eficiente para que sexo e gravidez não estejam automaticamente ligados demorou a dar resultados confiáveis. A primeira forma realmente confiável de levar uma vida sexual livre do risco de uma gravidez indesejada surgiu com a invenção da pílula anticoncepcional, que mudou para sempre as relações entre os sexos na população mundial. Ficou claro que, para além do instinto de perpetuação da espécie, o que o ser humano mais busca é o prazer sexual sem o risco de engravidar. É só calcular a diferença entre a quantidade de filhos que se almeja ter (atualmente dois, no máximo três) e a vida sexual de qualquer pessoa. Enquanto ainda tínhamos um frágil equilíbrio demográfico, a vida da mulher girava em torno da maternidade e dos cuidados da casa e família – comportamento ainda vigente em algumas sociedades ou grupos mais tradicionais.

Com a descoberta da tecnologia biológica, a mulher pôde evitar as repetidas gravidezes que a tornavam acima de tudo uma mãe, não sobrando tempo ou espaço para se dedicar a interesses diversos. Comparando mulheres com outros mamíferos, criou-se a ideia de que o instinto materno imporia à mulher o desejo de ser mãe sobre todos os outros. No entanto, temos que reconhecer que o instinto entre humanos não se sobrepõe ao desejo. Os seres humanos, apesar de serem mamíferos, têm uma capacidade cerebral adaptativa inigualável. Isso significa que a maior parte de nossos atos é aprendida e difere de um grupo social para outro. Animais como os cachorros, por exemplo, terão comportamentos quase idênticos para reproduzir ou se alimentar, mesmo sendo criados em ambientes bem distintos por todo o planeta. A pequena variabilidade de comportamento dos outros mamíferos permite que eles sejam eficientes em todos os aspectos que envolvam reprodução e sobrevivência. Já os seres humanos têm comportamentos muito distintos que dependem de aprendizagem adquirida por meio da linguagem e da observação. Essa diferença nos fez capaz de dominar o planeta, embora nasçamos profundamente desamparados. Havendo a possibilidade de criar novas formas de estar no mundo para além da uniformidade dos instintos, o homem também pode formular o desejo acima da necessidade. As greves de fome, o celibato e o suicídio contrariam enormemente a ideia de que o homem se guia pelo instinto de sobrevivência ou reprodução e revelam o desejo como um dos motores principais de nossos atos.

Uma mudança importante que decorre desses novos tempos econômicos e sociais diz respeito ao trabalho. As mulheres sempre trabalharam, seja nos campos, nas fábricas, nas casas de família, como funcionárias ou no regime de escravidão. Apenas um grupo reduzidíssimo podia e pode se dar ao luxo de ser sustentado por alguém ou por uma herança familiar. A “mulher que trabalha” não é nenhuma novidade na história como, às vezes, se afirma precipitadamente. A grande diferença que ocorreu, de algumas décadas para cá, diz respeito à maneira como se passou a encarar essas atividades. As mulheres sempre trabalharam, mas isso não era motivo de orgulho, apenas a prova de uma condição social inferior: não eram nobres, não eram ricas, não eram bem casadas. Lembremos como as condições de trabalho para as mulheres antes das leis trabalhistas e das leis contra assédio existirem podiam ser perigosas e insalubres. Jornadas intermináveis, sem descanso semanal, nem estabilidade e sem proteção contra a chefia masculina eram um calvário só comparável ao regime de semiescravidão, que ainda existe em algumas localidades. As conquistas, desde então, mudaram em grande parte o cenário profissional. A mudança de condições e costumes fez com que as mulheres passassem a almejar e se orgulhar do trabalho como forma de se emancipar e realizar aspirações pessoais. A mulher passa a ser valorizada como profissional, mas, sobretudo, busca se emancipar. O trabalho se tornou sinônimo de independência feminina. Com essa nova mentalidade, é a mulher que não trabalha que passa a sofrer preconceito, o que não deixa de ser irônico.

A contemporaneidade traz mudanças radicais: muitas mulheres querem trabalhar porque têm aspirações financeiras e pessoais mesmo tendo condições econômicas e sociais para não fazê-lo; os filhos não são o único objetivo na vida delas; os homens não as sustentam obrigatoriamente; pensões alimentícias decorrentes de divórcios podem beneficiar o esposo e não apenas a mulher; elas têm projetos pessoais antes impensáveis. Os termos “mulher” e “mãe” deixaram de ser sinônimos e passaram a se distanciar cada vez mais.

Mas, como toda mudança de mentalidade, o que era liberdade se torna rapidamente imperativo. Passamos da ideia de “é constrangedor ter que trabalhar”, para o “é tolerável trabalhar” e, rapidamente, para “tem que trabalhar”. Esse efeito de imperativo também aparece entre os homens, que até então eram desencorajados a cuidar dos filhos por ser “coisa de mulherzinha”. Em seguida eles já podem “ajudar” a cuidar do filho e, finalmente, eles têm que cuidar do filho. Cuidar de filhos passou a ser responsabilidade de pais e mães, assim como prover o sustento da família.

Daí a ideia de que um homem que acha que está “ajudando” a cuidar dos filhos não entendeu nada. Quando as obrigações são iguais, não cabe a ideia de ajudar, mas de cumprir com sua parte. A profissão passou a ser uma obrigação para a mulher moderna, que se constrange em dizer que é dona de casa. Novamente temos uma conquista que passa a ser obrigação. Uma mulher hoje que se dedique integralmente aos filhos pode se sentir socialmente criticada, mas, paradoxalmente, quando os deixa para trabalhar se sente culpada por não estar com eles. Não podemos esquecer que se trata do trabalho no espaço público que está em jogo aqui, pois o trabalho doméstico sempre existiu. Basta a mulher sair de casa para nos darmos conta de quanto tempo e dinheiro custa para manter casa e filhos em ordem e assistidos. Esse paradoxo diz respeito à dificuldade de sustentarmos que escolhas possam ser feitas por cada um sem que se tornem imperativos da cultura, e que homens e mulheres possam chegar a um bom consenso a partir de direitos iguais de escolher.

Vivemos num momento de demandas conflitantes e impossíveis de atender. Na década de 1950, por exemplo, o que se esperava das mulheres se restringia ao lar, ao marido e aos filhos. Situação terrível para muitas, confortável para outras, tinha a única qualidade de ser bem explícita e coerente. Não quer dizer que funcionava, mas cada um sabia o que se esperava de si. Hoje, nos vemos com demandas contraditórias e ambíguas, nas quais a liberdade de escolhas e as exigências paradoxais geram outras ansiedades.

As mulheres (e os homens) estão diante do abismo de uma liberdade recém-adquirida envolta em grande ambiguidade, o que dificulta assumir nossas escolhas. Então, tentamos perguntar ou, ainda, adivinhar o que os outros esperam de nós ao invés de bancar nosso desejo.

Mulheres podem casar ou não, ter ou não filho e, provavelmente, terão que trabalhar. Podem trabalhar em carreiras até então restritas aos homens, ainda que ganhem menos. Se escolherem a combinação casamento-filho-carreira, terão que rebolar.

Mas o maior problema tem sido as escolhas no “piloto automático” que muitas pessoas fazem sem levar em conta o que realmente estão em condições e desejando fazer. Como não temos unanimidade quanto aos papéis de homens e mulheres hoje, acabamos encontrando pessoas que seguiram a onda sem reflexão e se viram prisioneiras de casamento, filhos ou carreiras que não estavam desejosas de assumir. Se nas décadas anteriores a pessoa podia se conformar diante da falta de opções, hoje, o reconhecimento de um certo grau de liberdade pode levar à melancolia e à sensação de fracasso autoimpingido.

De fato, não há escolha sem perda e o jardim do vizinho costuma parecer mais verde do que de fato é. Mulheres que têm carreiras de sucesso podem se ressentir por não terem filhos e mães realizadas podem sofrer por não terem carreiras. Quem manteve um olho na carreira e outro na parentalidade costuma se queixar de não conseguir se dedicar a nada integralmente. Parte do processo para sair desse beco é reconhecer que ao chegarmos à vida adulta tendemos a imaginar vidas paralelas, nas quais estaríamos se tivéssemos feito outras escolhas – tema de diversos filmes, aliás. Se na adolescência tínhamos a fantasia de poder escolher para sempre, a vida adulta nos confronta com o tempo e com os caminhos já percorridos. Abrir mão do que teria sido – ou, na realidade, da fantasia do que teria sido – nos ajuda a pensar o que de fato poderá vir a ser. Melancolia de um passado que não foi e ansiedade por um futuro que não virá criam impasse e imobilidade. Fora desse jogo, as escolhas voltam a se tornar possíveis, ainda que não sejam as do passado, mas as de agora. A parentalidade no século XXI pode responder muito mais ao desejo e menos aos imperativos, embora eles continuem a nos influenciar. De qualquer jeito, as motivações inconscientes nem sempre se mostram acessíveis e a resposta para o desejo ou não de ter filhos pode aparecer muito depois de os termos tido.

FILHOS? MELHOR NÃO TÊ-LOS! MAS…

Algumas pessoas dirão que passaram a vida pensando em ter filhos e nunca se imaginaram sem ser pai ou mãe. A brincadeira de boneca ou de casinha já denunciava um interesse por seguir os passos dos pais. Meninos e meninas demonstram desde pequenos o interesse em ter filhos, imitando pai e mãe ou sonhando fazer melhor do que eles. Outros dirão que jamais se imaginaram pais e mães e, ainda assim, tiveram filhos. Mais recentemente temos as pessoas assumindo que preferem não tê-los, sem que isso cause grande assombro à sua volta. Existe ainda pressão para que os casais tenham filhos, mas, cada vez mais, tem-se respeitado o desejo individual.

Ainda que a história de cada um seja única, fica impossível determinar de antemão quais pessoas se tornarão satisfeitas com o acontecimento e quais se arrependerão. Grandes surpresas podem advir de casais que nunca quiseram ser pais, e o inverso também. Sim, porque há pais/mães que se arrependem de terem se tornado pais/mães. Por vezes são aqueles que mais sonharam com esse projeto, mas podem ser também os mais desavisados. Orna Donath, socióloga israelense, escreveu Mães arrependidas (2017), livro no qual entrevista mulheres que, embora amem os filhos, se arrependem de tê-los tido. Afinal, entre a fantasia de ter filhos e a realização existe um abismo.

O primeiro paradoxo da parentalidade decorre do fato de querermos um filho… e termos outro! O filho que tanto queremos já existe em nossa cabeça em forma de sonho e idealizações. O bebê que chega, por sua vez, é um ilustre desconhecido. Nesse sentido somos sempre impostores, porque caímos no berço de um bebê esperado, mas que não podemos ser. Na roleta genética, meninas chegam em lugar de varões e vice-versa; altos e esbeltos dão lugar a baixos e gordos; cabeludos são carecas; calmos e dóceis podem se revelar chorões inconsoláveis, enfim, é impossível que haja coincidência substancial entre uns e outros. Os filhos vêm para desbancar nosso narcisismo e se recusam a ser o mini me esperado. Fazer o luto do bebê sonhado faz parte da experiência de todos os pais em maior ou menor grau e é absolutamente necessário, pois permite o ajuste entre o sonhado e o real e abre espaço para que se conheça quem chegou e que venhamos a nos apaixonar por ele. Estranhar o bebê que chega, em maior ou menor grau, faz com que esta relação possa ser construída de forma inédita, por meio dos cuidados diários. A chegada do bebê é uma espécie de lua de mel de um casamento arranjado com noivo desconhecido. Tumultuada, promissora, intensa. Podemos afirmar que todos os bebês devem ser adotados por alguém, sejam filhos biológicos ou não.

Diferentemente do que reza a lenda urbana da contemporaneidade, ter filhos nem é a salvação, tampouco é a derrocada da vida de uma pessoa. Há épocas em que os fatores sociais são mais favoráveis à parentalidade e épocas mais difíceis. Preciso dizer que estamos em tempos conturbados para a tarefa?

Ter filho é um fato da existência que nos concerne a todos, porque mesmo que optemos por não tê-los somos, forçosamente, filhos de alguém. Nos perguntaremos sobre essa questão inevitavelmente. Porque meus pais me tiveram, o que esperavam de mim? Queiramos ou não seguir com a transmissão geracional, a filiação é a questão central que localiza o sujeito no mundo. A partir de nossa ascendência temos as coordenadas que nos colocarão no mapa do mundo. Nome e sobrenome são como a tachinha no mapa que, quando colocada com firmeza, nos permite perambular pela vida com mais facilidade. Para poder se afastar de um ponto de referência, é preciso que ele exista e seja reconhecível como tal. Até mesmo para termos para onde voltar, de onde sentir falta ou de onde fugir!

Voltando à questão dos tempos difíceis nos quais nos encontramos para procriar, vale refletir sobre algumas características de nosso tempo que embaralham a parentalidade. Mas não se enganem: nunca houve um momento histórico no qual ter filhos foi fácil. Qualquer período que se use de exemplo, quando visto de perto, revelará dilemas, mazelas e alegrias ligadas ao risco de sermos pais/mães. Outras épocas e culturas podem nos servir para nos distanciarmos do que vivemos hoje e relativizarmos certezas. Ainda assim, é importante que nos debrucemos sobre as condições que nos dizem respeito e reconheçamos o mal-estar próprio do nosso tempo.

A atual conjuntura de consumo, a avidez pela imagem, o individualismo, a perda das garantias religiosas, o superinvestimento narcísico colocam novas questões para cada um de nós. O apelo ao consumo tem feito pais se esfalfarem para oferecerem objetos para os filhos sobre o preço de se ausentarem do lado deles. A cultura da imagem e das postagens de imagens de cada atividade do dia a dia dá a falsa impressão de que todo mundo está se divertindo menos você, o que tem incrementado os quadros depressivos já epidêmicos. Nessa lógica, acredita-se também que todas as outras pessoas estão muito mais felizes com os filhos e conseguindo se sair perfeitamente bem, o que, apesar de ser mentira, costuma abalar pais/mães já habitualmente culpados. É difícil assumir uma tarefa que envolve tanta dedicação ao outro, diante do culto ao individualismo e à realização pessoal. A abnegação requerida na parentalidade – qualidade rara nos dias de hoje – pode levar décadas para ser reconhecida pelos filhos, quando ocorre. O lastro que a religião dava para muitos foi substituído pela liberdade de encontrar novas razões e motivações que partem do desejo e não da obrigação moral. Como toda liberdade, dá trabalho. Afinal, temos que escolher e nos responsabilizar pelas escolhas. Os bebês, como tudo que nos diz respeito pessoalmente, implicam em grande investimento narcísico. Esperamos em troca que ele nos devolva esse investimento na forma de amor e reconhecimento. Mas a coisa não funciona bem assim. Não se pode contar com um grande Ibope, quando se tem que fazer o trabalhinho sujo de educar. Higiene, saúde, escola, tarefas e obrigações nem sempre são divertidas para os pequenos e somos nós a garantir essas tarefas. Nessas horas eles preferem os amigos e podemos ficar bem ressentidos com isso.

Grosso modo, filhos nos impõem, pelo menos, dois grandes desafios. Um é o clássico trabalho braçal de cuidar, no qual somos implicados fisicamente. Para dar conta da dependência absoluta do começo se faz necessário que alguém se ocupe dos choros, da fome, do frio e dos desconfortos em geral. Horas sem dormir, ocupação e preocupação constantes, ansiedade com os desejos indecifráveis extenuam e levam ao arrependimento até o pai/mãe mais convicto. Com o tempo, a corda afrouxa um pouco, mas são décadas até que a excessiva ocupação dê lugar para a permanente preocupação. Esse tema costuma pesar bastante na balança da escolha, mais ou menos consciente, de se ter ou não filhos. Mas não é aí que se encontra o aspecto mais intenso da escolha. O outro desafio surpreende os pais desavisados.

A tarefa bem mais complexa e interessante justifica os anos de trabalho anteriormente descritos e diz respeito, digamos, a ser a tachinha no mapa de alguém. Seremos nós a ocupar o lugar no qual estavam nossos pais, que sempre nos foi enigmático. Projetamos neles um saber sobre a origem da vida, nossa vida, e chegou a hora de saber o que nossos pais sabiam. Esse segundo desafio, que se tornar pai ou mãe nos coloca e que não costumamos antecipar, revela o que nossos pais sabiam, quando nos tiveram: quase nada. O grande susto é descobrir que fomos gerados por pessoas tão despreparadas para a experiência quanto nós. Podemos reproduzir a vida, podemos reproduzir corpos, transmitir o nome, a cultura, as heranças materiais, simbólicas, podemos amar desesperadamente e, ainda assim, continuarmos ignorantes sobre os fatos mais importantes da nossa existência. Temos os filhos, assim como nossos pais nos tiveram, e ainda assim não sabemos nada sobre a origem da humanidade. Algo sobre a existência humana permanece insondável e surpreendente.

Portanto, a aposta na parentalidade deve envolver a busca por satisfações bem distintas daquelas que fantasiamos. Queremos um bebê e vem um estranho a quem teremos que nos afeiçoar; queremos gratidão e reconhecimento, mas não há garantias de quando ou se o teremos; queremos respostas sobre a existência, mas permanecemos na mais absoluta ignorância. As satisfações possíveis passam pelo prazer de ver outro ser humano emergir ao longo de anos de desenvolvimento, da capacidade de amar e ser amado, do prazer de cuidar de alguém, de lidar com diferenças e desafios, do projeto de colocar alguém que valha a pena no mundo, da chance de amadurecer lidando com uma experiência intensa e perene. Dizem mais respeito à aposta na própria transformação pessoal que a parentalidade promove do que de ter filhos como bens adquiridos para alimentar nosso narcisismo.

Trata-se de uma aposta, sem garantias, como o são todos os grandes gestos humanos. Isso nossos pais descobriram antes de nós. Longe de ser uma tarefa entre outras, a parentalidade hoje, por ser uma escolha, nos confronta com nosso desejo e nossas limitações e costuma ser uma das experiências mais enriquecedoras das nossas vidas, se soubermos ajustar as expectativas.


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