Livro ‘F*Deu Geral’ por Mark Manson

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Do autor do mega-seller A Sutil Arte de Ligar o F*da-se. Vivemos em uma época interessante. Materialmente, nunca estivemos melhor – temos mais liberdade, mais saúde e mais riqueza do que em qualquer momento da história da humanidade. No entanto, tudo ao redor parece terrivelmente f*dido: aquecimento global, governantes horrorosos, economia em crise e todos constantemente ofendidos nas redes sociais. Temos acesso a tecnologia, educação e comunicação de maneiras que nossos ancestrais jamais sonhariam e, mesmo assim, sentimos essa desesperança esmagadora. O que está acontecendo, afinal? Se você também está se fazendo essa pergunta, o livro de Mark Manson é sua próxima leitura obrigatória. Em A Sutil Arte de Ligar o F*da-se, Manson, de maneira brilhante, deu forma à ansiedade que permeia a vida moderna – agora, em F*deu Geral, ele desvia seu olhar das falhas inevitáveis de cada indivíduo para as inúmeras calamidades que tomam o mundo…

Páginas: 288 páginas; Editora: Intrínseca; Edição: 1 (14 de maio de 2019); ISBN-10: 8551004905; ISBN-13: 978-8551004906; ASIN: B07QB4119L

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Biografia do autor: Mark Manson não tem meandros ou meias palavras. Com um estilo honesto, divertido e incrivelmente perspicaz, ele se tornou popular escrevendo em seu blog o que as pessoas realmente precisam ouvir, pois só isso funciona para nos fazer evoluir pessoal e profissionalmente. Mora em Nova York.

Leia trecho do livro

Para Fernanda, é claro

Parte I

Esperança

1

A Verdade Desconfortável

Em um pequeno terreno no interior monótono da Europa Central, entre galpões de antigos alojamentos militares, viria a surgir um ponto de maldade geograficamente concentrada, mais denso e mais sombrio que qualquer coisa que o mundo já tinha visto. No decorrer de quatro anos, mais de 1,3 milhão de pessoas seriam sistematicamente divididas em classes, escravizadas, torturadas e assassinadas ali, e tudo isso em uma área um pouco maior que o Central Park, em Manhattan. E ninguém faria nada para impedir.

Exceto um homem.

É como aquelas histórias dos contos de fadas ou dos quadrinhos: um herói marcha impetuosamente pelas terríveis mandíbulas do inferno para enfrentar uma grande manifestação do mal. Suas chances são irrisórias. O plano é risível. E, ainda assim, nosso fantástico personagem nunca hesita, nunca recua. Ele segue confiante e derrota o dragão, destrói os invasores demoníacos, salva o planeta e talvez até acabe resgatando uma ou duas princesas.

E, por um breve espaço de tempo, há esperança.

Mas esta não é uma história sobre esperança. É uma história sobre como tudo está total e completamente fodido. Em proporções e escalas que hoje, com o conforto do nosso wi-fi grátis e cobertores enormes, eu e você temos dificuldade para imaginar.

* * *

Witold Pilecki já era um herói de guerra antes de decidir se infiltrar em Auschwitz. Na juventude, Pilecki tinha recebido condecorações pela Guerra Polaco-Soviética, de 1918. Ele já tinha chutado o saco dos comunistas antes que a maioria das pessoas sequer soubesse o que era um comuna. Depois da guerra, Pilecki se mudou para o interior da Polônia, casou-se com uma professora e teve dois filhos. Ele gostava de cavalgar, usar chapéus bonitos e fumar charutos. A vida era simples e boa.

Foi aí que toda aquela questão do Hitler aconteceu, e, antes mesmo que a Polônia conseguisse calçar as botas, os nazistas já tinham empreendido uma blitzkrieg em metade do país. A Polônia perdeu todo o seu território em menos de um mês. E o pior é que a briga não foi realmente justa: enquanto os nazistas invadiam pelo oeste, os soviéticos entravam pelo leste. Era como estar entre a cruz e a espada — só que a cruz era um assassino em massa megalomaníaco tentando conquistar o mundo, e a espada, um genocídio desenfreado e sem sentido. Eu ainda não descobri ao certo qual era qual.

No início, os soviéticos eram muito mais cruéis que os nazistas. Afinal, os caras já tinham feito essa merda antes — todo aquele negócio de “derrubar um governo e escravizar a população por causa de sua ideologia falha”, sabe? Os nazistas ainda eram imperialistas virgens (quando olhamos para as fotos de Hitler com aquele bigodinho, não é difícil imaginar isso). Nos primeiros meses da guerra, estima-se que os soviéticos tenham capturado mais de um milhão de cidadãos poloneses, mandando-os para o leste. Pense nisso por um instante. Um milhão de pessoas, em questão de meses, desaparecidas. Algumas não pararam até chegar aos gulags na Sibéria; outras foram encontradas em valas comuns, décadas depois. Até hoje não se sabe o que aconteceu com muitas delas.

Pilecki entrou nas duas batalhas — tanto contra os alemães quanto contra os soviéticos. E, depois da derrota, ele e companheiros do Exército polonês criaram um grupo clandestino de resistência em Varsóvia, que batizaram de Exército Secreto Polonês.

Na primavera de 1940, o Exército Secreto Polonês ouviu falar que os alemães estavam construindo um imenso complexo prisional perto de alguma cidadezinha remota no sul do país. Os alemães deram a esse complexo o nome de Auschwitz. No verão daquele ano, milhares de oficiais militares e cidadãos de destaque tinham desaparecido da Polônia ocidental. Na resistência, surgiu o temor de que o mesmo tipo de encarceramento em massa que ocorrera no leste, pelos soviéticos, estava envolvida nesses desaparecimentos e talvez já abrigasse milhares de antigos soldados poloneses.

Foi aí que Pilecki se ofereceu para entrar às escondidas no complexo. De início, era para ser uma missão de resgate — ele se deixaria ser capturado e, uma vez lá dentro, organizaria os outros soldados poloneses, coordenaria um motim e escaparia do campo.

A missão era tão suicida que praticamente daria no mesmo se ele tivesse pedido permissão ao comandante para beber um balde de água sanitária. Os superiores achavam que ele estava louco, e deixaram isso bem claro.

Mas, com o passar das semanas, o problema só piorava: milhares de soldados poloneses de elite desapareciam, e Auschwitz ainda era um imenso ponto cego na rede de inteligência dos Aliados. Eles não faziam ideia do que estava acontecendo lá e tinham pouquíssima chance de descobrir. Por fim, os comandantes de Pilecki cederam. Certa noite, em uma ronda de rotina em Varsóvia, Pilecki se permitiu ser preso pela SS por violar o toque de recolher. Em pouco tempo, estava sendo enviado a Auschwitz. Pelo que se sabe, foi o único homem a entrar voluntariamente em um campo de concentração nazista.

Quando chegou lá, percebeu que a realidade de Auschwitz era muito pior do que qualquer um suspeitava. Era comum prisioneiros serem mortos por transgressões mínimas como se mexer ou não ficar em pé direito. O trabalho braçal era extenuante e infinito. Homens trabalhavam literalmente até a morte, muitas vezes em tarefas inúteis ou sem importância. No primeiro mês de Pilecki no campo de concentração, 30% dos homens no seu alojamento morreram de exaustão ou pneumonia ou foram assassinados a tiros. Ainda assim, no fim de 1940, Pilecki, o super-herói de quadrinhos, tinha conseguido de alguma maneira montar uma operação de espionagem.

Ah, Pilecki — seu titã, seu maravilhoso, voando sobre o abis­mo —, como você conseguiu criar uma rede de inteligência enviando mensagens pelas cestas de roupa suja? Como você construiu um rádio transistorizado com sucata e pilhas roubadas, como se fosse um MacGyver europeu, e transmitiu com sucesso para o Exército Secreto Polonês em Varsóvia planos de ataque ao campo de prisioneiros? Como criou redes de contrabando para levar comida, remédios e roupas para os prisioneiros, salvando inúmeras vidas e dando esperança ao deserto mais remoto do coração humano? O que este mundo fez para merecer você?

Durante dois anos, Pilecki desenvolveu uma unidade de resistência dentro de Auschwitz. Havia uma cadeia de comando, com classes e oficiais; uma rede de logística; linhas de comunicação com o mundo exterior. E tudo isso passou quase dois anos despercebido pelos guardas da SS. O objetivo final de Pilecki era fomentar uma imensa revolta dentro do campo. Com ajuda e coordenação de fora, ele acreditava que poderia planejar uma fuga maciça, derrubar os guardas da SS, que estavam em menor número, e libertar dezenas de milhares de guerrilheiros poloneses altamente treinados. Ele enviou seus planos e meses sobrevivendo.

* * *

Mas então chegaram os judeus. Primeiro, em ônibus. Depois, em trens abarrotados. Logo estavam chegando às dezenas de milhares, uma corrente inesgotável de pessoas flutuando em um oceano de morte e desespero. Despojados de todas as posses e de qualquer dignidade, eles eram forçados a entrar nos recém-modificados alojamentos dos “chuveiros”, onde eram envenenados com gás e tinham os corpos incinerados.

Os relatórios de Pilecki para o mundo exterior ganharam tons de desespero. Estão assassinando dezenas de milhares de pessoas aqui todos os dias. A maioria, judeus. A contagem dos mortos talvez chegue à casa dos milhões. Ele implorou ao Exército Secreto Polonês que libertasse o campo imediatamente. Ele disse que, se não fosse possível libertar os presos, que pelo menos bombardeassem o complexo. Pelo amor de Deus, que pelo menos destruíssem as câmaras de gás. Pelo menos isso.

O Exército Secreto Polonês recebeu as mensagens, mas supôs que era exagero da parte de Pilecki. Nos recônditos mais profundos da mente deles, imaginaram que ninguém poderia ser tão escroto assim. Ninguém.

Pilecki foi a primeira pessoa a alertar o mundo sobre o Holocausto. Suas informações foram enviadas para vários grupos de resistência na Polônia, depois para o governo polonês, exilado no Reino Unido, que então repassou os relatórios para o Comando Aliado em Londres. A informação, por fim, chegou a Eisenhower e a Churchill.

Eles também acharam que Pilecki só podia estar exagerando.

Em 1943, Pilecki percebeu que seus planos de fazer um motim e uma fuga em massa jamais aconteceriam. O Exército Secreto Polonês não viria. Americanos e britânicos não viriam. E o mais provável era que os primeiros a chegar fossem os soviéticos — o que seria pior. Ele então concluiu que permanecer no campo era arriscado demais. Estava na hora de fugir.

Nosso herói fez parecer fácil, é claro. Primeiro, fingiu que estava doente para ser levado ao hospital do campo. Dali, mentiu para os médicos sobre o grupo de trabalho para o qual deveria retornar, dizendo que tinha um turno da noite na padaria, que ficava na fronteira do campo, perto de um rio. Quando os médicos o liberaram, ele seguiu para a padaria, onde “trabalhou” até as duas da manhã, horário da última fornada. A partir desse ponto, ele só precisou cortar o fio do telefone, abrir a porta dos fundos sem fazer barulho, vestir roupas civis roubadas sem que os guardas da SS percebessem, correr até o rio que ficava a um quilômetro e meio enquanto atiravam nele, e então retornar à civilização se guiando pelas estrelas.

* * *

Hoje, muita coisa no nosso mundo parece uma merda. Não no nível da merda que foi o Holocausto nazista (nem de longe), mas, ainda assim, bem merda.

Histórias como a de Pilecki são inspiradoras. Elas nos dão esperança, nos levam a dizer: “Ah, gente, as coisas eram bem piores naquela época, e esse cara conseguiu superar tudo isso. E o que eu fiz nos últimos tempos?” Até que, na nossa era de tuitaços e de notícias sensacionalistas, talvez seja bom que a gente se faça mesmo esse tipo de pergunta. Quando nos afastamos para ter uma perspectiva mais ampla, percebemos que enquanto heróis como Pilecki salvam o mundo, nós perseguimos inimigos imaginários e reclamamos que o ar-condicionado não está funcionando direito.

A história desse polonês é a coisa mais heroica que já vi na minha vida. Porque heroísmo não significa só ter coragem ou sagacidade. Esses elementos são comuns e usados muitas vezes de formas não heroicas. Ser heroico significa ter a habilidade de criar esperança onde ela não existe. De acender o fósforo que ilumina o breu. De mostrar a possibilidade de um mundo melhor — não um mundo melhor que queremos que exista, mas um que não sabíamos que poderia existir. De agir frente a uma situação em que tudo parece estar uma merda completa e de alguma maneira transformá-la em algo bom.

* * *

Coragem é comum. Resiliência é comum. O heroísmo, por outro lado, tem um componente filosófico. Existe um grande “Por quê?” que os heróis trazem — alguma causa ou crença incrível que permanece inabalável, não importa o que aconteça. E é por isso que, enquanto cultura, estamos tão desesperados por um herói hoje em dia: não porque as coisas necessariamente estejam tão ruins assim, mas porque perdemos a clareza da motivação que guiou as gerações anteriores.

Somos uma cultura que precisa não de paz ou de prosperidade ou de novos adornos para o capô dos nossos carros elétricos. Nós já temos tudo isso. Somos uma cultura que precisa de algo bem mais efêmero. Somos uma cultura e um povo que precisa de esperança.

* * *

Mesmo depois de testemunhar anos de guerra, tortura, morte e genocídio, Pilecki nunca perdeu a esperança. Apesar de ter perdido o país, a família, os amigos e quase perder a própria vida, ele nunca perdeu a esperança. Mesmo depois da guerra, durante a dominação soviética, ele nunca perdeu a esperança de ver uma Polônia livre e independente. Nunca perdeu a esperança de que os filhos tivessem uma vida feliz e tranquila. De poder salvar mais algumas vidas, ajudar mais algumas pessoas.

Depois da guerra, Pilecki voltou para Varsóvia e continuou seu trabalho de espionagem, dessa vez contra o Partido Comunista, que tinha acabado de tomar o poder. Novamente, ele seria a primeira pessoa a avisar ao Ocidente que algo ruim estava acontecendo: neste caso, que os soviéticos tinham se infiltrado no governo polonês e fraudado as eleições. Ele também seria o primeiro a documentar as atrocidades soviéticas cometidas no leste durante a guerra.

Dessa vez, porém, Pilecki foi descoberto. Avisado de que seria preso, ele teve uma chance de fugir para a Itália. Ainda assim, negou, dizendo que preferia ficar e morrer na Polônia do que fugir e viver como algo que não reconhecia. Uma Polônia livre e independente era sua única fonte de esperança naquele momento. Sem isso, ele não era nada.

E, por isso, sua esperança também seria seu fim. Os comunistas o capturaram em 1947, e não pegaram leve com ele. Pilecki foi torturado por quase um ano, de forma tão brutal e constante que, segundo disse à esposa, “Auschwitz foi moleza” em comparação.

Mesmo assim, ele jamais colaborou com os interrogadores.

Por fim, percebendo que não tirariam qualquer informação dele, os comunistas decidiram transformá-lo em exemplo. Em 1948, fizeram um julgamento e acusaram Pilecki de tudo, de falsificação de documentos e violação do toque de recolher até espionagem e traição. Um mês depois, ele foi considerado culpado e sentenciado à morte. No último dia de julgamento, Pilecki teve permissão de falar. Ele declarou que sua lealdade sempre foi à Polônia e ao seu povo, e que nunca prejudicou nem traiu qualquer cidadão polonês, portanto, não se arrependia de nada. Ele concluiu dizendo: “Tentei viver minha vida de forma que no momento da minha morte eu sentisse alegria, não medo.”

Se isso não é a coisa mais incrível que você já ouviu, então quero um pouco disso aí que você anda tomando.

Como posso ajudá-lo?

Se eu trabalhasse no Starbucks, em vez de escrever o nome das pessoas no copo de café, eu colocaria o seguinte:

Um dia, você e todos que você ama vão morrer. E com exceção de um pequeno grupo de pessoas por um intervalo extremamente breve de tempo, pouco do que você fizer ou disser vai significar alguma coisa. Esta é a Verdade Desconfortável da vida. Tudo que você pensa ou faz não passa de uma forma elaborada de evitar isso. Somos poeiras estelares irrelevantes, que toparam em um pontinho azul e perambulam sem rumo por ele. Imaginamos nossa própria importância. Inventamos nosso propósito; não somos nada.
Aproveite seu maldito café.

Eu teria que escrever isso em letras bem pequenininhas, é claro. E levaria um tempo para escrever, então a fila de clientes na hora do rush matinal iria até o lado de fora da loja. Em matéria de atendimento ao cliente, não é dos melhores, fato. Talvez essa seja só mais uma das razões pelas quais ninguém me contrata.

Mas, sério: como é possível, em sã consciência, desejar um bom-dia para alguém sabendo que todos os nossos pensamentos e motivações vêm de uma necessidade inesgotável de evitar a inerente falta de sentido da existência humana?

A questão é que, na infinita vastidão do espaço-tempo, o universo não se importa se a cirurgia de implante de quadril da sua mãe vai correr bem, ou se seus filhos vão para a faculdade, ou se seu chefe vai achar fantástica aquela planilha que você fez. Não se importa se os Democratas ou os Republicanos vão vencer as eleições americanas. Não se importa se uma celebridade é vista cheirando cocaína enquanto se masturba furiosamente no banheiro de um aeroporto (de novo). Não se importa se as florestas vão pegar fogo, ou se as calotas polares vão derreter, ou se o nível dos oceanos vai subir, ou se o ar vai ferver ou se vamos todos ser vaporizados por uma raça alienígena superior.

Você se importa.

Você se importa e, portanto, tenta desesperadamente se convencer de que deve haver algum significado cósmico por trás de tudo isso.

Está muito cedo para essa conversa? Aqui, tome outro café. Eu até desenhei uma carinha sorridente no copo. Não é fofinho? Pode deixar que eu espero enquanto você posta no Instagram.

Você se importa porque, bem lá no fundo, precisa ter alguma sensação de importância para evitar a Verdade Desconfortável, para driblar a incompreensibilidade da sua existência e não ser destruído pelo peso da própria insignificância material. E então você — como eu, como todas as pessoas — projeta esse senso de importância imaginário no mundo ao seu redor, porque isso traz esperança.

Beleza, onde estávamos? Ah, sim! Na incompreensibilidade da sua existência. Ora, você pode estar pensando: “Olha, Mark, acredito que estamos todos aqui por um motivo e que nada é coincidência. Todos importam porque todas as nossas ações afetam alguém, e se pudermos ajudar uma única pessoa, então ainda vale a pena, certo?”

Como você é fofo!

Entenda: isso é a sua esperança falando. Essa é a história que sua mente cria para fazer com que seja digno levantar da cama de manhã: alguma coisa tem que importar, senão não há razão para continuar vivendo. E alguma forma simples de altruísmo ou qualquer redução de sofrimento é sempre a nossa primeira tentativa de nos fazer sentir que vale a pena fazer qualquer coisa.

Assim como um peixe precisa de água, nossa psique precisa de esperança para sobreviver. Esperança é o combustível do nosso motor mental. É a manteiga no nosso pão. É todo tipo de metáfora brega. Sem esperança, todo o nosso aparato mental trava ou morre de fome. Se não acreditarmos que há alguma chance de que o futuro seja melhor que o presente, que nossa vida vai melhorar de alguma forma, então morremos espiritualmente. Afinal, se não há esperança de que as coisas possam melhorar, então para que viver? Para que fazer qualquer coisa?

Algo que muita gente não entende é que o oposto de felicidade não é tristeza ou raiva. Estar triste ou com raiva significa que você ainda não ligou o foda-se para pelo menos alguma coisa. Significa que tem algo aí que ainda importa. Significa que você ainda tem esperança.

Não, o oposto de felicidade é desesperança, um horizonte cinza infinito de resignação e indiferença. É quando acreditamos que “fodeu geral”, então para que fazer qualquer coisa?

A desesperança é um niilismo frio e desolador, uma sensação de que não há objetivo, então que se dane tudo — por que não correr segurando uma tesoura, ou transar com a esposa do seu chefe, ou sair atirando a esmo em uma escola? É a Verdade Desconfortável, uma percepção incômoda de que, em face ao infinito, tudo com que poderíamos nos importar chega a ser praticamente nada.

A desesperança é a raiz de transtornos mentais como ansiedade e depressão. É a fonte de toda a tristeza e a causa de todo vício. Isso não é exagero. 4 Ansiedade crônica é uma crise de esperança, é o medo de um futuro fracassado. Depressão é uma crise de esperança, é a crença em um futuro sem sentido. Desilusão, vício, obsessão… todos esses problemas são tentativas desesperadas e compulsivas da mente de gerar esperança, mesmo que seja com tiques neuróticos ou necessidades maníacas.

Portanto, evitar a desesperança — ou seja, criar esperança — acaba se tornando o principal projeto da nossa mente. Todos os significados, tudo que compreendemos sobre nós mesmos e sobre o mundo, são construídos com o propósito de manter a esperança. Por isso, ela é a única coisa pela qual qualquer um de nós está disposto a morrer. A esperança é o nosso modo de sermos maiores que nós mesmos. Sem ela, cremos que não somos nada.

Meu avô morreu quando eu estava na faculdade. Por alguns anos, fiquei com uma sensação intensa de que tinha que viver para deixá-lo orgulhoso. Por alguma razão profunda, isso parecia razoável e óbvio, mas não era. Na verdade, não fazia nenhum sentido lógico. Eu não tinha uma relação próxima com o meu avô, nunca conversamos pelo telefone e não trocávamos cartas. A gente nem tinha se visto nos últimos cinco anos antes de sua morte.

Sem contar que: ele estava morto. Como “viver para deixá-lo orgulhoso” traria alguma mudança?

A morte do meu avô me fez entrar em contato com a Verdade Desconfortável. Então, minha mente começou a trabalhar, tentando, a partir daquela situação, criar esperança, para me sustentar e manter o niilismo longe. Minha mente concluiu que, como meu avô já não tinha mais a possibilidade de ter esperanças e aspirações, era importante que eu continuasse a ter esperanças e aspirações para honrá-lo. Esse era o resquício de fé criado em meu subconsciente, a minirreligião pessoal que me dava propósito.

E funcionou! Por um tempo, a morte dele deu uma injeção de importância e significado a experiências que de outra forma seriam banais e vazias. E esse propósito me deu esperança. Você provavelmente já sentiu algo parecido quando alguém próximo faleceu. É um sentimento comum. Você diz a si mesmo que vai viver de forma a dar orgulho ao seu ente querido. Que vai usar a sua vida para celebrar a dele. Você diz a si mesmo que isso é uma coisa boa, importante.

E essa “coisa boa” é o que nos sustenta nesses momentos de terror existencial. Eu andava por aí imaginando meu avô me seguindo, como um fantasma bem fofoqueiro, o tempo todo observando tudo que eu fazia. Um homem com quem eu mal tivera contato enquanto vivo estava agora extremamente interessado em como eu tinha ido na prova de cálculo. Era algo totalmente irracional.

Nossas psiques constroem pequenas narrativas como essa sempre que enfrentam adversidades, inventamos para nós mesmos essas histórias de antes e depois. E temos que manter vivos esses vieses de esperança, o tempo todo, mesmo quando eles se tornam irracionais ou destrutivos, pois são a única força estabilizadora que protege nossa mente da Verdade Desconfortável.

São essas narrativas de esperança que dão à nossa vida um senso de propósito. Não só sugerem que existe algo melhor no futuro, mas também que é possível sair e alcançar esse algo melhor. Quando ficam tagarelando sobre a necessidade de encontrar “seu propósito na vida”, o que as pessoas realmente querem dizer é que não conseguem mais ver com clareza o que é importante, que não sabem mais o que é um uso válido do seu tempo limitado aqui na Terra — resumindo, não sabem mais em que depositar esperança. Essas pessoas estão com dificuldade para enxergar qual deveria ser o antes e depois da própria vida.

Essa é a parte complicada: descobrir o que o antes e depois significa para você. É difícil porque não há como ter a certeza de que você acertou. É por isso que muita gente busca a religião, porque tais doutrinas compreendem esse estado permanente de desconhecimento e exigem que você exercite a fé para encará-lo. Isso, em parte, talvez explique por que pessoas religiosas sofrem menos de depressão e cometem menos suicídios do que pessoas não religiosas: a prática da fé as protege da Verdade Desconfortável.

Mas suas narrativas de esperança não precisam ser religiosas. Podem ser qualquer coisa. Este livro é a minha pequena fonte de esperança, pois me dá propósito e sentido. E a narrativa que construí em torno dessa esperança é: creio que este livro pode ajudar algumas pessoas, tornar tanto a minha vida quanto o mundo um pouco melhor.

Eu tenho certeza disso? Não. Mas é a minha historinha de antes e depois, e vou defendê-la. Ela me faz levantar de manhã e me deixa animado com a vida. E isso não só é uma coisa boa, como é a única coisa que importa.

Para algumas pessoas, a história de antes e depois é criar bem os filhos. Para outras, é salvar o meio ambiente. Para algumas, é ganhar um monte de dinheiro e comprar um barco caríssimo. Para outras, é simplesmente aprimorar a tacada no golfe.

Percebendo ou não, todos temos essas narrativas em que decidimos acreditar por qualquer razão que seja. Não importa se o alimento da sua esperança provenha da fé religiosa, de teorias baseadas em evidências, de uma instituição ou de discussões com bons argumentos — tudo isso produz o mesmo resultado: você tem uma crença de que (a) existe potencial para crescimento, melhora ou salvação no futuro, e (b) existem maneiras de abrir caminho para chegarmos lá. É isso. Dia após dia, ano após ano, nossas vidas são feitas de intermináveis interseções entre essas narrativas de esperança. Elas são as cenouras psicológicas na ponta da vareta.

Se tudo isso soa niilista, por favor, não me entenda mal. O propósito deste livro não é defender o niilismo. Pelo contrário, meu argumento é contra ele — tanto o que vem de nós quanto o que parece emergir do mundo moderno. E, para argumentar de forma bem-sucedida contra o niilismo, tenho que começar por ele. Preciso começar na Verdade Desconfortável, para, a partir daí, construir aos poucos minha defesa da esperança. E não só qualquer esperança, mas uma forma de esperança que seja sustentável e benevolente. Uma esperança que pode nos unir, em vez de separar. Uma esperança robusta e poderosa, e ao mesmo tempo baseada na razão e na realidade. Uma esperança que pode nos alimentar até o fim dos nossos dias com um senso de gratidão e satisfação.

Não é uma tarefa fácil (óbvio). E, no século XXI, talvez seja mais difícil do que nunca. O niilismo e a pura indulgência do desejo que o acompanha dominam o mundo moderno. É o poder pelo poder. O sucesso pelo sucesso. O prazer pelo prazer. O niilismo não abarca nenhum “porquê” mais grandioso. Não adere a nenhuma grande verdade ou causa. É um simples “porque é gostoso”. E isso, como veremos, é o que está fazendo tudo parecer tão ruim.

O paradoxo do progresso

Vivemos em uma época interessante, na qual podemos dizer que as coisas estão melhores do que nunca em relação a questões materiais. Mas, ao mesmo tempo, a sensação que temos é de que estamos todos enlouquecendo, pensando que o mundo é um imenso vaso sanitário e que alguém está prestes a dar descarga. Ou seja, uma sensação irracional de desesperança se espalha pelo mundo rico e desenvolvido. É um paradoxo do progresso: quanto melhores as coisas estão, mais ansiosos e desesperados todos parecemos ficar.

Nos últimos anos, escritores como Steven Pinker e Hans Rosling têm argumentado que estamos errados ao abraçar tamanho pessimismo, que as coisas, de fato, estão melhores do que nunca, e que a probabilidade é melhorarem ainda mais. Os dois autores fizeram livros enormes com inúmeros gráficos e tabelas que começam em um canto e sempre parecem, de alguma forma, terminar no canto oposto. Os dois explicaram detalhadamente as predisposições e suposições incorretas que todos nós temos e fazemos e que nos levam a achar que tudo é muito pior do que está na realidade. O progresso, defendem, seguiu sem interrupções por toda a história moderna. As pessoas têm mais acesso à educação do que nunca. A tendência de queda na violência vem de décadas, se não séculos. Racismo, machismo, discriminação e violência contra mulheres estão no ponto mais baixo de que se tem registro na história. Nunca tivemos tantos direitos. Metade do planeta tem acesso à internet. A pobreza extrema está numa baixa histórica mundial. As guerras têm proporções menores e são menos frequentes do que em qualquer outro período analisado. As crianças morrem menos, e as pessoas em geral vivem mais. Existe mais riqueza do que nunca. Nós meio que temos cura para uma porção de doenças. E eles têm razão. É importante saber desses fatos. Por outro lado, ler esses livros também é um pouco como ouvir aquele tio chato tagarelar sobre como as coisas eram muito mais difíceis quando ele tinha sua idade. Ele pode até estar certo, mas isso não necessariamente faz você se sentir melhor sobre seus problemas.

A questão é que, apesar de todas as boas notícias publicadas hoje em dia, também temos algumas estatísticas preocupantes: nos Estados Unidos, sintomas de depressão e ansiedade estão em alta nos últimos oitenta anos entre os jovens e em alta entre a população adulta nos últimos vinte anos. Não só as pessoas estão ficando deprimidas em maior número, como isso está acontecendo cada vez mais cedo a cada geração. Desde 1985, homens e mulheres relatam níveis menores de satisfação pessoal. Parte disso talvez tenha a ver com o fato de que os níveis de estresse só aumentaram nos últimos trinta anos. Recentemente, overdoses bateram recorde histórico conforme a crise dos opiáceos destruiu parte considerável dos Estados Unidos e do Canadá. Na população norte-americana, sentimentos de solidão e isolamento social estão em alta. Quase metade dos norte-americanos hoje relata se sentir isolada, excluída ou sozinha na vida. A confiança social não está só em baixa no mundo desenvolvido, ela está despencando, o que significa que as pessoas nunca confiaram tão pouco no governo, na mídia e umas nas outras. Nos anos 1980, quando os pesquisadores perguntaram aos participantes com quantos indivíduos eles haviam discutido questões pessoais importantes nos seis meses anteriores, a resposta mais comum era “três”. Em 2006, a resposta mais comum foi “zero”.

Enquanto isso, o meio ambiente também está completamente fodido. Toda sorte de malucos tem acesso a armas nucleares ou está a um triz de conseguir. O extremismo continua a crescer no mundo, de todas as formas, religiosas ou seculares, em todos os pontos do espectro político. Conspiracionistas, milícias civis, “sobrevivencialistas” e “preparadores” (pessoas que estão se preparando para o Armagedom) vêm se tornando ícones de subculturas populares, a ponto de se tornarem quase comuns.

Basicamente, somos os seres humanos mais seguros e prósperos da história do mundo, mas sofremos com um nível sem precedentes de desesperança. Quanto melhores as coisas ficam, mais parecemos cair em desespero. Eis o paradoxo do progresso. E talvez ele possa ser resumido em um fato alarmante: quanto mais saudável e seguro é o lugar onde você mora, maior é a probabilidade de você cometer suicídio.

* * *

O incrível progresso alcançado nas esferas da saúde, da segurança e da riqueza material nos últimos séculos é inegável, mas essas estatísticas são do passado, não do futuro. E é justamente aí que temos que encontrar nossa esperança: nas visões do futuro.

Porque a esperança não se baseia em estatísticas. Ela não liga para a tendência de queda das mortes relacionadas a armas de fogo ou a acidentes de trânsito. Não se importa que não tenha havido uma queda de avião comercial durante todo o ano passado ou que a alfabetização tenha batido recorde na Mongólia (bem, a não ser que você more na Mongólia).

A esperança não liga para os problemas que já foram solucionados. A esperança só se importa com o que ainda precisa ser resolvido. Porque, à medida que o mundo melhora, mais temos a perder. E quanto mais temos a perder, menos achamos que devemos ter esperança.

Para criar e manter a esperança, precisamos de três coisas: a sensação de controle, a crença no valor de algo, e uma comunidade. 32 Controle significa a sensação de tomar as rédeas da própria vida, de que podemos comandar nosso destino. Por “Valor”, queremos dizer acreditar que algo seja importante o bastante para nos dedicarmos a isso, que seja melhor, algo pelo que vale a pena lutar. E “comunidade” é fazer parte de um grupo que valoriza as mesmas coisas que nós e que está trabalhando para conquistá-las. Sem uma comunidade, nos sentimos isolados e nossos valores deixam de ter sentido. Sem valores, nada parece valer a pena. E sem controle, nos sentimos impotentes para perseguir seja lá o que for. Perdendo um desses três elementos, você perde os outros dois. Você perde a esperança.

Para que possamos entender por que estamos passando por uma crise de esperança dessa magnitude, precisamos compreender os mecanismos da esperança, como ela é gerada e o que é preciso fazer para mantê-la. Os próximos três capítulos vão se debruçar sobre como desenvolvemos essas três áreas da nossa vida: a sensação de controle (capítulo 2), nossos valores (capítulo 3) e nossas comunidades (capítulo 4).

Depois voltaremos à questão original: o que está acontecendo no nosso mundo que faz a gente se sentir pior, apesar de tudo estar melhorando de maneira consistente.

E a resposta vai surpreender você.

2

Autocontrole é uma ilusão

Tudo começou com uma dor de cabeça.

“Elliot” era um homem bem-sucedido, executivo de uma empresa próspera. Querido pelos colegas de trabalho e vizinhos, era encantador, irresistivelmente divertido. Um marido, um pai, um amigo que tirava férias dos sonhos na praia.

Só que tinha dores de cabeça. O tempo todo. E não eram dores de cabeça comuns, do tipo toma-um-Advil-que-passa. Eram dores excruciantes, violentas, como se houvesse uma bola de demolição pendurada dentro dele, golpeando seus olhos.

Elliot tomava remédios. Tirava sonecas. Tentava relaxar, ficar na boa, deixar para lá, aguentar firme. Mas as dores continuavam. Aliás, só pioravam. Chegaram a um ponto em que Elliot não conseguia dormir à noite ou trabalhar de dia.

Finalmente ele foi ao médico, que fez lá aquelas coisas de médico, passou uns exames, recebeu os resultados e deu a Elliot a má notícia: ele tinha um tumor cerebral, bem ali no lóbulo frontal. Bem ali. Viu? Aquela mancha cinzenta, ali na frente. E, rapaz, é grande. Do tamanho de uma bola de beisebol, pelo que estou vendo.

O cirurgião retirou o tumor, e Elliot foi para casa. Voltou ao trabalho. Voltou para a família e os amigos. Tudo parecia tranquilo e normal.

E aí tudo deu muito errado.

Elliot não rendia no trabalho. Tarefas que antes ele fazia com o pé nas costas passaram a exigir uma alta dose de concentração e esforço. Decisões simples, como escolher entre uma caneta azul ou preta, tomavam-lhe horas. Cometia erros básicos e levava semanas para consertá-los. Sua agenda virou um buraco negro; ele perdia reuniões e estourava prazos como se cada um deles fosse um insulto ao próprio espaço/tempo.

Inicialmente, seus colegas ficaram com pena e seguraram a barra. Afinal, um tumor do tamanho de uma pequena cesta de frutas tinha acabado de ser retirado da cabeça do sujeito. Mas logo a barra começou a ficar muito pesada, e as desculpas de Elliot, muito descabidas. Você faltou a uma reunião de investidores para comprar um grampeador novo, Elliot? Sério? O que você tem na cabeça?

Após meses de reuniões feitas de qualquer jeito e muita enrolação, a verdade era inegável: a cirurgia havia retirado mais do que um tumor de Elliot e, na visão dos colegas, esse algo era uma grana preta da empresa. Elliot acabou sendo demitido. Enquanto isso, em casa, as coisas não estavam muito melhores. Siga a receita: pegue um pai negligente, deixe-o no sofá vegetando, tempere com uma pitada de reprises de game shows e leve-o ao forno a 175° C, 24 horas por dia. Essa era a nova vida de Elliot. Ele perdia as partidas de beisebol do filho. Faltou a uma reunião de pais e professores para assistir a uma maratona de James Bond na TV. Esquecia que a esposa gostava que ele falasse com ela mais de uma vez por semana.

Cada nova e inesperada rachadura deixava vazar uma briga — só que não dava para chamá-las propriamente de brigas. Uma briga requer o engajamento de no mínimo duas pessoas. E, enquanto sua esposa cuspia fogo, Elliot tinha dificuldade de acompanhar a situação. Em vez de agir com urgência para mudar ou consertar as coisas, para mostrar que amava e se importava com a família, ele continuava isolado e indiferente. Era como se habitasse outro fuso, fora do alcance de qualquer pessoa na Terra.

Até que sua esposa não aguentou mais. Na cirurgia, tiraram de Elliot mais do que aquele tumor, ela gritava. Tiraram a droga do coração também. Ela pediu o divórcio e levou as crianças. Elliot ficou sozinho.

Abatido e confuso, começou a procurar formas de recomeçar a carreira. Deixou-se levar por algumas empreitadas de risco. Um golpista abocanhou grande parte de suas economias. Uma interesseira o seduziu, convenceu-o a morar com ela e divorciou-se um ano depois, ficando com metade dos seus bens. Elliot vagou pela cidade, indo morar em apartamentos cada vez mais baratos e xexelentos, até que alguns anos depois se viu praticamente sem teto. O irmão o acolheu e passou a sustentá-lo. Amigos e família assistiam, estupefatos, a um homem que admiravam basicamente jogar a vida fora num curto espaço de tempo. Ninguém conseguia entender. Era inegável que algo em Elliot havia mudado, que aquelas dores de cabeça debilitantes haviam lhe causado mais do que dor.

A questão era: o que havia mudado?

O irmão de Elliot o levou a vários médicos. “Ele não está normal”, dizia. “Tem algum problema. Ele parece bem, mas não está. Juro.”

Os médicos fizeram lá aquelas coisas de médico e receberam resultados, que, infelizmente, só diziam que Elliot estava totalmente normal — em ao menos algo que se encaixava no que eles entendiam como normal, talvez até acima da média. As tomografias computadorizadas não acusavam nada. Seu QI ainda era alto. Seu raciocínio estava coerente. A memória, ótima. Era capaz de se estender sobre efeitos e consequências de suas más escolhas. Conversava sobre uma ampla gama de temas com bom humor e charme. Segundo o psiquiatra, Elliot não estava deprimido. Pelo contrário, tinha uma autoestima sólida e nenhum sinal de ansiedade crônica ou estresse — exibia uma calma quase zen, mesmo estando no olho do furacão causado pela própria negligência.

O irmão não conseguia aceitar. Algo estava errado. Algo estava faltando.

Finalmente, no desespero, Elliot foi encaminhado a um famoso neurocientista chamado António Damásio.

* * *

De início, Damásio fez as mesmas coisas que os outros médicos: submeteu Elliot a uma série de testes cognitivos. Memória, reflexos, inteligência, personalidade, relações espaciais, raciocínio moral — tudo normal. Elliot foi aprovado com louvor.

Então o neurocientista fez algo que nenhum outro médico havia cogitado: conversou com ele; conversou de verdade. Queria saber tudo: cada equívoco, cada erro, cada arrependimento. Como Elliot havia perdido o emprego, a família, a casa, as economias? Me explique cada decisão, a lógica de pensamento por trás de cada uma delas (ou, naquele caso, a falta de lógica).

Elliot era capaz de explicar em detalhes quais decisões havia tomado, mas não conseguia explicar o motivo. Rememorava fatos e sequências de eventos com uma fluidez perfeita e até mesmo certa carga dramática, mas quando lhe pediam que analisasse seu processo de tomada de decisão — por que achara que comprar um grampeador era mais importante do que encontrar um investidor?, por que havia considerado James Bond mais interessante que seus filhos? —, dava um branco. Não tinha respostas. E não só isso: não parecia sequer abalado. A verdade é que ele não dava a mínima.

Ali estava um homem que havia perdido tudo por causa de más escolhas e erros, que apresentava uma ausência total de autocontrole e tinha plena consciência do desastre em que sua vida se transformara, e no entanto não aparentava qualquer remorso, qualquer autorrepulsa, nem sequer um pouco de constrangimento. Muita gente cometia suicídio por menos. E ali estava ele, não apenas confortável com o próprio infortúnio, mas indiferente.

Foi quando Damásio teve uma percepção brilhante: os testes psicológicos a que Elliot fora submetido eram concebidos para medir sua capacidade de pensar, não sua capacidade de sentir. Todos os médicos haviam se preocupado tanto em identificar se ele estava apto a raciocinar que nenhum havia imaginado que os danos de Elliot talvez estivessem na sua capacidade emotiva. Mas mesmo que tivessem se dado conta disso, não existia uma forma padronizada de medir tais danos.

Um dia, um dos assistentes de Damásio imprimiu uma série de fo­tos grotescas e perturbadoras. Vítimas de queimaduras, cenas de assassinato horrendas, cidades devastadas pela guerra e crianças morrendo de fome. Então as mostrou para Elliot, uma a uma.

Elliot ficou completamente indiferente. Não sentiu nada. E sua falta de reação foi tão chocante que até ele mesmo comentou que era doentio. Admitiu que tais imagens com certeza o teriam abalado no passado, que seu coração teria se contorcido de empatia e horror, que teria virado o rosto com aversão. Mas naquele momento… Sentado ali, diante das mais sombrias distorções da experiência humana, Elliot não sentia nada.

E este, concluiu Damásio, era o problema: embora o conhecimento e o raciocínio de Elliot estivessem intactos, o tumor e/ou a cirurgia para removê-lo haviam debilitado sua capacidade de empatia e sentimento. Seu mundo interior já não abarcava luz e sombra, mas se resumia a um infinito miasma cinzento. Assistir ao recital de piano da filha evocava nele toda a vibração e o esfuziante orgulho paternal de comprar um par de meias. Perder um milhão de dólares lhe causava tantas emoções quanto encher o tanque do carro, pôr os lençóis para lavar ou assistir a um game show. Ele havia se tornado uma máquina ambulante de indiferença. E sem dispor da habilidade de fazer juízos de valor, de diferenciar o melhor do pior, independentemente de quão inteligente fosse, Elliot havia perdido seu autocontrole.

* * *


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