Tudo Que Mais Quero – Livro de Danielle Viegas Martins

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Trecho do livro

Capítulo 1

WOLFGANG

— Os corpos do incêndio já foram todos periciados? — Invado meu escritório sem bater, afinal é o meu escritório. Dr. Wolfgang Duque é o nome que está escrito no vidro, logo acima de Médico-legista chefe. Mas acabo assustando Aurora que, pelas olheiras, não deve ter dormido nada na última noite.

— Chefe, o senhor aqui? Não estava de férias na Áustria? A defesa do seu PhD não seria em uma semana e…

— Isso não importa agora, Aurora. Dominic me ligou contando do incêndio no Hotel Continental e, quando eu soube do número de vítimas, encerrei minha viagem e peguei o primeiro voo de volta para o Brasil. Imaginei que vocês estivessem com muito trabalho e, como eu já sabia que o médico-legista que foi aprovado para me substituir não assumiu a função até agora, decidi colaborar com as necropsias — respondo para a única perita em Medicina Forense em toda a cidade de Laguna.

— Pensei que daríamos conta, chefe. Recebemos, no meio da madrugada, os dois primeiros corpos. Algo assim nunca aconteceu aqui. Tantas pessoas perderam suas vidas… Os familiares estão em choque e assustados, e eu não tenho o que dizer a eles, além de “sinto muito”. Eu deveria ser forte para não tornar esse momento ainda mais difícil para as famílias das vítimas que estão vindo reconhecer os corpos, mas eu… Desculpe. Isso não é nada profissional. Eu só sou muito tola e…

— Não. Não é. Sensível é o que você é e isso não é um defeito. Voltei para Laguna por vocês, principalmente. Imagino que você e Bart devem estar exaustos.

Eu sabia quando ela tentava ser forte na minha frente. Ela desviava o olhar e não conseguia me encarar porque estava prestes a chorar. Isso só acontecia quando um determinado tipo de vítimas chegava.

— Ei! Vem cá. Nem te cumprimentei direito depois de tanto tempo sem nos vermos. Me desculpe. — digo, puxando-a para um abraço. Aurora foi a minha aluna mais dedicada e tinha minha total confiança no trabalho que executava. Por três anos, ela estagiou no necrotério de Laguna, sob minha supervisão, e era impecável em seguir os procedimentos, embora eu percebesse que ela chorava escondida nas primeiras semanas. Não por ter estômago fraco para realizar necropsias, muito pelo contrário. Cadáveres não a afetavam, a não ser casos de vítimas crianças. Mas isso afeta até mesmo a mim que sou médico-legista há mais de treze anos.

— Obrigada, chefe. Os hospitais ficaram em alerta para receber os feridos que ainda podem ser encontrados, porém ninguém sabe ao certo quantas pessoas estavam hospedadas. O incêndio destruiu os registros. Até agora, os poucos que foram encontrados com vida não resistiram e os corpos não pararam mais de chegar. Já são oito…

— Sabe que não é mais minha estagiária. — Seco as lágrimas dela e a vejo forçar um sorriso. — E já disse, quando concluiu o estágio, ano passado, que não precisa continuar me chamando de chefe.

— Aprendi tanto aqui com você. Gosto de te chamar assim, chefe.

Sorrio para ela e beijo sua mão com carinho.

— Somos colegas, Aurora, e eu tenho muito orgulho de ter alguém tão qualificado como você aqui como perita médica.

Ela beija a minha bochecha, e eu, sua testa. Não sou fácil de fazer amizades, mas Aurora e Bart são muito mais que minha equipe. Gosto muito dos dois e sempre posso contar com eles. Foi difícil tomar a decisão de tirar férias, após tantos anos, ir para a Áustria e finalmente defender a minha tese na Universidade de Viena. No entanto, fiquei bem mais tranquilo quando soube que Aurora foi transferida para o necrotério municipal para cuidar de tudo aqui, junto com meu auxiliar de necropsia.

— O incêndio foi criminoso, Aurora? A policia já tem certeza?

— Tudo indica que sim, chefe. O dono do hotel está entre as vítimas. O corpo foi totalmente carbonizado. Os bombeiros ainda estão no local realizando buscas. Felizmente, estamos na baixa temporada, nem imagino o cenário de guerra que seria, caso o hotel estivesse lotado.

— Sem sobreviventes, então, Aurora? Nenhum? E há crianças dentre as vítimas, estou certo? — Ela assente pesarosamente, e posso ver o semblante triste daquela jovem perita que tenta disfarçar baixando a cabeça. Coloco as mãos em seus ombros e digo:

— Você precisa permanecer firme. Conheço poucos profissionais que são tão impecáveis quanto você em análises de crimes e estou aqui para te ajudar. Durma umas duas horas para descansar um pouco. Já são quase trinta horas sem dormir. Depois, vamos fazer o nosso trabalho da maneira mais correta possível e ajudar a solucionar esse caso. É o melhor que podemos fazer por essas pessoas que perderam suas vidas, Aurora.

— Não, chefe. Não posso descansar ainda. Há muito trabalho a ser feito e jamais conseguiria dormir com tudo que aconteceu.

— Ok. Auxiliaremos um ao outro em mais duas necropsias, depois você descansa. Entenda isso como uma ordem. Fui claro?

Ela, embora contrariada, faz que sim com a cabeça. Sabia que a remanejaram apenas temporariamente para fazer o meu trabalho no necrotério após o incêndio. Apesar de não ser médica-legista, era muito qualificada e eu confiava no rigor em que ela exercia seu trabalho. Mas Aurora só aparecia aqui no necrotério do IML de Laguna em casos de mortes que não eram naturais. Então, se ela estava aqui significava que a investigação de um crime estava em andamento, o que raramente acontecia naquela pequena cidade de pouco mais de oito mil habitantes. Por isso que, por mais que apreciasse a presença de Aurora, preferia que minha ex-estagiária nunca aparecesse por aqui.

Tiro o paletó e o penduro atrás da porta. Foram quase doze horas de viagem, com duas conexões até chegar ao meu destino, contudo meu corpo parece nem sentir o efeito das longas horas de voo.

Tenho trabalho a fazer e sigo para a primeira sala de necropsia, com a luz vermelha acima da porta. Seguindo o protocolo exigido, faço a assepsia das mãos e braços até os cotovelos. Todo tempo sendo seguido por Aurora. Ela faz o mesmo e depois colocamos as luvas, touca, máscara, o capote cirúrgico e passamos pela porta de vai e vem, onde meu auxiliar de necropsia realizava o procedimento no corpo de uma das vítimas. Perceber que era uma criança faz com que eu abra e feche os punhos com raiva. Por isso, não era Aurora conduzindo o procedimento. Ele sempre a protegeu e eu percebi, desde que ela pisou aqui pela primeira vez, que ele se encantou pela jovem estagiária. E ela sempre o evitou de todas as formas possíveis.

— Bartolomeu, precisa de ajuda?

— Chefe? Graças a Deus! Eu e a Dra. Aurora já não sabíamos mais o que fazer. Tentamos priorizar os corpos que foram carbonizados pelo fogo, considerando que o estado de decomposição do tecido estava acelerado, mas os corpos não param de chegar.

A expressão aliviada dele ao me ver faz com que eu sorria e coloque a mão em seu ombro em sinal de apoio. Vi tristeza em seus olhos. Eu era uma das poucas pessoas que sabia que um incêndio também levou toda sua família há muitos anos e, dentre as vítimas, estava a sua irmã caçula. Porém, ele não permitiria que Aurora fizesse essa necropsia, porque tinha sentimentos por ela.

— Agiram muito bem, Bart. Quer que eu termine o procedimento para você dormir algumas horas? — pergunto, mesmo sabendo a reposta que ele me daria. Ele e Aurora eram muito parecidos nesse aspecto. Mas somente nisso também.

— Estou bem, chefe.

— Tem certeza, Bart?

— A Dra. Aurora já tinha me obrigado a descansar umas três horas e agora eu estou bem. — Depois sussurra para que apenas eu ouça: — A única coisa boa nisso tudo é que estou trabalhando sozinho com ela há dois meses, chefe.

— E algum progresso? — Não tinha nenhuma regra que os impedisse de se relacionar e não era por falta de tentativas de Bart.

— Pelo contrário, acho que não tenho chances mesmo com minha fada de ébano. Viu que turbante estiloso ela está usando hoje? Esse eu ainda não tinha visto.

— “Fada de ébano”? Bart, controle-se um pouco, tá bom?

— Desculpe, chefe. Melhor eu voltar ao trabalho que ela está olhando para a gente desconfiada.

— Os corpos ainda não periciados estão na sala 2?

— Sim. Com esta menina, são quatro corpos com perícia concluída. No entanto, não sabemos se ainda chegarão mais vítimas. Como o senhor sabe, não temos geladeiras para um número simultâneo de cadáveres maior do que este. Se chegar mais um corpo, não teremos como refrigerar e…

— Começarei a necropsia de uma das vítimas na sala 2 imediatamente. Aurora vai me auxiliar. Depois, irei auxiliá-la. Você pode começar a cuidar da papelada das certidões de óbito.

— Pode deixar, chefe. Ah! Dra. Aurora deve ter lhe contado da interferência do médico pessoal do dono do hotel, que quis participar da perícia. Ele queria atestar o óbito pessoalmente e não aceitou muito bem ter o acesso negado. A Dra. Aurora informou que o incêndio estava sendo tratado como caso policial e isso o fez mudar de opinião.

— Posso saber por que está tratando a Aurora com tanta formalidade agora?

— Ela pediu que eu a tratasse por seu título médico e é o que estou fazendo.

— Eu pedi. É verdade. E é assim que quero que seu auxiliar se dirija a mim.

— Ok. Não temos tempo para esse drama particular de vocês agora. Mas depois quero saber exatamente o que aconteceu aqui em minha ausência.

Eles se entreolham e depois assentem concordando. Eu descobriria depois o que estava acontecendo ali. Vou direto para a sala 2 e Aurora me acompanha.

— Recebemos dois corpos carbonizados primeiro. Homem caucasiano com mais de setenta anos e mulher com ascendência indígena na mesma faixa de idade. A identificação não pôde ser feita pelas impressões digitais, como deve imaginar, porém, através das alianças, identificamos o casal de idosos pela mesma mensagem de bodas de prata cravada nelas. A análise da arcada dentária confirmou seus nomes, as famílias foram localizadas e estão a caminho para confirmar a identificação — Aurora relata, já totalmente focada no trabalho, assim como eu.

Após me atualizar sobre os métodos que utilizaram para as necropsias, desengaveto o primeiro corpo. Dito os dados evidentes, como altura e peso aproximado, e, pela estrutura física delicada e o esmalte rosa nas unhas, provavelmente tratava-se de uma mulher jovem, com menos de trinta anos. Ainda havia fios loiros presos ao crânio.

Começo a necropsia abrindo os órgãos de três cavidades do corpo: crânio, tórax e abdômen, para descobrir as circunstâncias e as causas da morte. Só três situações exigem esse tipo de exame:


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