Retalhos Stefanos: Um conto de Paixões Gregas – Livro de Mônica Cristina

Trecho do livro

Os monitores estão com os olhos grudados na grande televisão da sala de convivência, sempre que tem futebol é assim, eles tomam a televisão e se esquecem de todo mundo, você pode fazer praticamente qualquer coisa que ninguém nota, eles não ligam se você quebra o nariz de alguém ou tenta pular o muro.

Tony perna de pau fugiu ano passado assim, foi bom, todo mundo já levou uma boa surra daquele idiota, mas agora não tem garoto maior que eu, isso é ainda melhor.

Quando se é grande e forte, está mais seguro, sei como é chegar aqui sendo o menor e mais indefeso, eu aguentei, mas agora não preciso, pelo menos não dos garotos, esses não me põem medo.

— Eles estão ficando bem bravos, príncipe! — a gatinha sussurra ao meu lado atrás das cadeiras dos monitores, dois guardas assistem ao jogo de pé, andando de um lado para outro enquanto xingam palavrões, os monitores ocupam o sofá e as duas poltronas.

— O time deles está perdendo — conto a ela, que sorri, satisfeita.

— Quem são os outros, os de verde?

— New York Jets, bem feito!

— Gosto desse time aí, que ganha deles e deixa eles se ferrarem. — Ela sorri encolhida ao meu lado, enquanto ficamos encostados na parede, assistindo quase escondidos. — Jets!

— Shiu! — peço a ela que fique em silêncio. Alguém chora muito ao longe, mas nem sempre eu ligo, todo mundo chora o tempo todo. Não dá para pensar em todos, agora só penso em mim e nela, na gatinha, ela é muito pequena e magra e isso é sinal de fraqueza. Os fracos sempre se ferram. — Acho que ele vai conseguir um Touchdown.

— Vai, vai, vai! — ela diz, apertando as mãos e dando soquinhos no ar, se o atacante conseguir já era, os Jets vencem o jogo e o campeonato e esses babacas vão comer poeira de ódio.

— Merda! — um dos homens esbraveja, quando o juiz ergue as duas mãos depois que o atacante cruza a linha.

—Touchdown! Touchdown! — Ela não aguenta, é bom demais vê-los furiosos e uma vez na vida, só uma vez, eu mando tudo para o inferno e participo da festa.

— Jets, Jets! — Ela e eu corremos em torno do grupo de homens furiosos, enquanto gritamos, felizes. — Jets!

— Campeão! — Ela ri, desviando de uma mão pesada que tenta alcançá-la. — Touchdown!

— Pega ela! — uma voz pesada grita, salto para cima do homem e recebo um soco nas costas, enquanto outro arrasta a gatinha pelo braço.

— Disciplina, atira esses dois lá, esquece para sempre! Malditos! — A voz do chefe da segurança ainda está nos meus ouvidos depois que me chutam para o buraco na parede.

— Ai! — ela grita, quando dá de cara com a parede sendo atirada logo depois de mim, antes de a única luz desaparecer com a porta sendo batida, ainda posso ver um fio de sangue escorrer da testa dela. Seu choro toma conta do lugar.

— Shiu, tudo bem, já vai passar, respira. — Passo minha camiseta na testa dela, depois toco, ela geme, mas não tem mais sangue, não é nada, só um arranhão que deve sarar em uns dias.

— Que dor nas pernas — ela reclama, já sem lágrimas. —Está muito calor, quero sair, quero sair.

— Shiu, só precisa respirar fundo. — Ela puxa o ar fazendo barulho, depois solta com cuidado e parece se acalmar ao meu lado, passo meu braço por seu ombro, ficamos em silêncio e ainda os ouvimos esbravejar, sinto seus ombros balançarem, estou pronto para consolar quando percebo que é seu riso. Foi mesmo muito engraçado.

— Foi engraçado! — ela diz, ainda rindo. Minha barriga dói de tanto rir com ela, mas as costas doem pelos socos, dor não é nada de mais, eu já sei como é, todo dia ela está comigo, perna, braço, rosto, empurrão, soco, cinto, madeira, não importa, tem sempre uma mão pesada sobre mim ou sobre ela.

— Você deu uma volta neles! — Lembro-me dela passando por baixo do braço pesado que tentou apanhá-la.

— Eu sou uma gatinha esperta! — ela diz, respirando fundo por conta do ar pesado e úmido.

O riso vai embora e ficamos em silêncio, sentados, lado a lado, no escuro e em silêncio.

— Vou torcer para os Jets para sempre! — ela avisa e balanço a cabeça concordando.

— Para sempre! — eu concordo.

Depois de algum tempo, o chão começa a ficar mais duro, o ar mais úmido, a garganta mais seca.

— Príncipe.

aqui — digo, apertando sua mão. — Levaram duas meninas do quarto de noite, elas só voltaram de manhã. — Uma onda de nojo me embrulha o estômago, sinto um calafrio percorrer meu corpo e meu coração dói.

— Tem que me prometer que vai lutar, gatinha. Não importa se vai vencer ou perder, só importa que vai lutar.

— Eu vou.

— Não pode se render, entendeu?! Não pode deixar que pensem que se rende fácil, tem que espernear, gritar! — Deixo meu lugar ao seu lado para andar pelo cubículo de cabeça baixa, porque já cresci demais para caber de pé aqui. Chuto a porta com toda força. Solto um grito de horror e raiva, eu quero acabar com esse inferno. — Odeio este lugar, odeio! — grito, sentindo a garganta arder, meu pé dói depois de outro chute que faz a porta balançar.

Escuto seus soluços em uma crise de choro e isso me traz de volta do surto de ódio, volto a me sentar ao seu lado, enquanto ela chora desconsolada e eu não sei o que dizer a ela. Porque não tem nenhuma mentira que possa contar para acalmá-la, não tem nenhuma verdade que seja boa para nós, somos os esquecidos do mundo, somos lixo e não tem escolha, é o inferno de muros altos e paredes sujas, é só isso que temos e não tem jeito de ficar melhor.

Passo meu braço por seu ombro e ficamos os dois quietos, perdidos em lágrimas e medo, valeu a pena aquele momento de alegrias, se acabamos aqui? Não sei mais, só o que sei é que ela é tudo que me importa, tudo que tenho e sou tudo que ela tem.

— Queria estar lá na biblioteca, lendo — ela diz, com a voz cansada das lágrimas.

— Faz de conta que estamos lá — peço, fechando meus olhos e encostando a cabeça na parede úmida, não deve faltar muito para nos tirarem daqui, nunca ninguém morreu aqui dentro, uma hora somos libertados e isso me mantém firme. Uma gota de suor escorre por minha testa e sinto ainda mais sede.

— Queria saber fazer magia.

— Eu também — concordo com ela. — Queria que o padre estivesse aqui. — Quando ele vem, tudo é bom, a comida é boa, as camas ficam limpas, as crianças não choram e os homens nos tratam bem, ele é legal, conversa, pergunta se estamos bem, se vê algum machucado fica insistindo com medo da gente ter apanhado, pergunta mil vezes e a gente mente mil vezes, porque ele fica um dia ou dois e vai embora e sabemos o que acontece depois.

— Ah! — ela grita, dando um salto. Sinto o rato esbarrar em mim antes de desaparecer. Ela sempre fica com medo deles.

— Calma, não esquece. É uma gatinha, gatos devoram ratos, eles é que têm medo de você! — Ela está encolhida e chorando, mas acredita, sempre acreditou, tem pelo menos dois anos que está aqui e desde a primeira vez que acabamos juntos neste lugar, tudo que a mantém firme é a certeza de que é uma gata e os ratos têm medo dela.

Os olhos azuis dela me lembram os olhos de um gato, desde que disse isso a ela, eu a chamo assim, ela não pode se esquecer disso, porque volta e meia acabamos aqui e os ratos não gostam muito de ter seu espaço invadido.

Ninguém sai deste buraco inteiro, mas isso é só da primeira vez, depois que este lugar te desmonta você não se importa mais, aguenta, não tem outro jeito.

No abrigo infantil Sant Peter não tem um aviso de que se pode deixar a disciplina, a porta é aberta, a luz invade o ambiente, uma lufada de vento fresco e limpo chega e você se arrasta para fora sozinho.

Arrasto minha gatinha pela porta, ela cai sentada do lado de fora, agora que posso ver melhor seu rosto, percebo a boca branca, as olheiras profundas e o machucado na testa.

— Água. — É tudo que consigo dizer enquanto seguimos cabisbaixos até o bebedouro. Ela bebe primeiro, depois eu, meu corpo dói, mas a água fresca tem sabor de liberdade e eu adoro isso.

É noite, escuto o barulho de panelas e pratos, nenhuma criança pelos corredores, devem estar jantando.

— Vem, príncipe, vamos correr para comer, senão só amanhã.

Corremos até o refeitório, felizmente ainda estão na metade da fila da comida, depois que o último é servido, azar o seu se não está na fila, acaba tudo e só na próxima refeição.

Pegamos nossos pratos, feijão e purê de batata. Até que está bom, esse feijão enlatado sempre tem uns pedacinhos de carne no meio, é bom.

Ficamos na mesa de sempre, uma pertinho da janela, com vento e distante dos monitores, eles sempre distribuem uns tapas em que está por perto.

A gatinha nunca come tudo, ela é pequena demais e magrinha, eu fico sempre com metade do seu prato, é bom para ela, porque não tem isso de deixar sobrar comida no prato, eles te obrigam a comer tudo, mas também é bom para mim, porque não tem isso de repetir, é o que tem no prato e acabou.

Quando Tony ainda estava aqui, ele arrancava o prato de quem estava do lado e ninguém dizia nada, até o dia que ele tentou tirar o meu e acabamos trancados na disciplina depois de trocarmos meia dúzia de socos no refeitório rolando pelo chão na frente de todo mundo.

Fico com ela até o último segundo, quando as luzes começam a apagar e somos separados para dormir em lados opostos do abrigo. Solto sua mão toda noite com medo, ela me acena com olhos tristes e desaparece nas escadas, os olhos de gato e os cabe-los dourados que eu tenho que ajudá-la a prender quando ela passa mal por conta da comida ruim.


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