O Coração Desconfiado – Livro de Katherine York

O Coração Desconfiado - Livro de Katherine York

Trecho do livro

O Coração Desconfiado - Livro de Katherine York

Arrumei os pequenos amassados invisíveis do meu vestido e ajeitei a longa trança de meus cabelos tentando ganhar mais tempo. A cada manhã era menos tolerável estar aqui. O sino do andar de baixo anunciava que era hora de levantar e ir até a cozinha preparar o café da manhã, como todos os dias, em um balé perfeito, passos repetidos a exaustão. As mulheres me dão um olhar de repreensão porque permaneço sentada sobre a cama após o chamado. Tinha minhas pequenas rebeldias, sempre fingindo ser distração.

— Margarita! Ainda está aí! – Minha mãe disse em espanhol, surgindo na porta do quarto comunal. Claudia Martinez tinha 45 anos, mas sua beleza de cabelos e pele negra não havia envelhecido.

Quando chegamos ao Templo, seus fios cacheados fartos fa-ziam cachos por todos os lados e nossa pele exibia um bronzeado do sol. Éramos a cópia uma da outra. Tudo desbotou nos últimos anos, incluindo nossos traços, nossa pele, o volume de nossos cabelos. Agora, mesmo com a pudica trança e as roupas que deveríamos usar, minha mãe permanecia bonita, mesmo com o olhar triste que sempre esteve lá, mesmo antes de eu nascer.

— Alguns fios saíram do lugar e queria ajeitá-los – falei também em espanhol, olhando para minha trança e me levantando em sua direção – Vamos?

Dividia o cômodo com outras cinco mulheres, em uma casa com mais de vinte quartos – todos ocupados — e espaço amplos e comunais. Minha mãe ficava com as mais velhas enquanto eu permanecia com outras da minha idade. A grande maioria dos moradores do Templo era do sexo feminino. Os casais da comunidade compartilhavam quartos individuais ou tinham casas particulares perto da do Reverendo, um privilégio para poucos que estavam entre as lideranças do Templo da Divina Iluminação.

— É bom encontrá-la sozinha. Conversei com o Reverendo e tenho notícias.

— É mesmo? – perguntei dissimulada, apertando minha mão uma na outra, tentando abafar o sentimento de sufocamento sobre as decisões relacionadas a mim. Caminhávamos lado a lado e precisava parecer serena. Qualquer expressão diferente de obediência poderia ser interpretada de forma errada e geraria consequências.

— Já passou da idade, querida. Achamos que algum dos homens da comunidade a pediria em casamento, mas não aconteceu, então o reverendo decidiu escolher seu marido até o final do ano. Você é uma jovem muito bonita e participativa e qualquer homem do Templo ficaria feliz em tê-la como esposa. O que acha?

— O que o reverendo decidir, mãe… – respondi, olhando para o chão e sentindo a raiva borbulhar. Respirei fundo, dando um sorriso trêmulo e voltei a encará-la – Quando deve acontecer?

— Sabia que estaria animada! Convivendo com todas as crianças do Templo, achei que gostaria de ter uma só sua muito rápido! Acho que o reverendo não sugeriu antes porque talvez você seja a escolhida para Jacob! – minha mãe sussurrou, dando um pequeno aperto em meu ombro, uma demonstração de afeto que raramente acontecia pelas regras rígidas da comunidade – O reverendo disse que até o final do ano. Em poucos meses estará casada, minha filha, alegre-se!

— Devemos nos juntar às mulheres, acredito que estamos atrasadas – Desconversei, olhando para o corredor onde as mulheres já corriam com os deveres da manhã.

— Certamente… mas Jim não irá se zangar quando souber que estava apenas dividindo as boas notícias! – Ela me sorriu com um aceno de despedida e caminhou para as mulheres mais velhas, enquanto eu ia em direção a cozinha para preparar os alimentos para o café da manhã. Droga… estava ficando sem tempo.

Suspirei longamente, tentando controlar minhas reações para iniciar minhas tarefas sem chamar a atenção de curiosos. Precisava pensar. O Templo da Divina Iluminação ficava em um rancho cercado de poeira por todos os lados. Não existíamos para o mundo exterior, porque Jim, o reverendo, faz questão de não sermos “contaminados” pelo pecado dos outros. Nenhuma autoridade jamais entrou nas terras assim como qualquer outra pessoa que não fosse um dos seguidores de Jim. Nós vivíamos como pessoas de anos antes, banhos gelados, costurando nossas próprias roupas e torcendo para não ficarmos doentes, pois não haveria cuidado médico.

Já fui um dos “outros”, os pecadores. Muitos anos antes de sermos trancadas nesta casa comunal. Tinha quase 15 anos na época que minha mãe decidiu deixar Houston para viver nesta cidade que não sei o nome. Ela fugiu de Ciudad juarez, no México, quando meu pai morreu em algum confronto com narcotraficantes e nunca mais foi a mesma. Ela chegou ao Texas grávida e ilegal e, depois de muito esforço, conseguiu o visto de residência. Claudia Martinez queria que eu tivesse um nome americano para deixar “minha vida mais fácil”, então me batizou Daisy e me deu um nome do meio em homenagem à enfermeira que ajudou no parto e não a denunciou. Nasci Daisy Rae Martínez, mas era “sua margarida”. Nós vivíamos uma vida modesta, porém confortável.

Eu a ajudava em casa, fazia pequenos trabalhos na rua e estudava para conseguir uma vida melhor. Minha mãe trabalhava muito e teve o primeiro contato com Jim Norman por meio de vídeos da internet. Seis meses depois, ela me falou que conseguiu uma oportunidade e precisávamos mudar de cidade. Achei que seria um novo emprego e quando notei, tínhamos deixado tudo para trás e mudado para este rancho sem a opção de sair.

Quase uma década usando vestidos de algodão costurados por nós mesmas e sapatos confortáveis que ganhamos a cada um ano ou mais. Meus cabelos castanhos estavam sempre pudicamente em uma trança até minha cintura, nenhum outro item de valor em nossos corpos. Minha mãe usava uma aliança no momento que chegou aqui, mas foi convencida pelo Reverendo a abrir mão dos itens materiais em nome de “sua salvação”. Roupas, bijuterias, todo o dinheiro que ela guardou. Tudo era do Templo, uma forma de aceitar a “boa-nova” para ser recebida nas graças de Deus. Parei de estudar pouco tempo depois, não tinha itens pessoas, fotos da infância. Não sabia como era o rosto do meu pai além das palavras da minha mãe.

Lembro-me de ver um filme em que pessoas se vestiam desse jeito e pensar sobre como nunca funcionaria no calor texano. Poucos meses depois, eu era a menina suando através do tecido de manga e tentando esconder meu corpo entre aquelas vestes de algodão. Conforme os anos passavam, aproveitava os poucos minutos antes de dormir para descosturar partes do meu vestido e transformá-lo em roupas mais largas para não atrair olhares de homens. Olhares do reverenda.

No instante que cheguei, tentei lutar, mas fui silenciada. Castigada e tomada como exemplo do que maus hábitos e o diabo poderiam fazer para alguém. Não podia sair, e minha mãe apoiava os ditames daquelas pessoas. Não acreditava em nada que saía da boca de Jim Norman, mas precisava me manter sã e salva, então comecei a jogar o jogo do templo. Mantive minha cabeça baixa a espera dos meus 18 anos com a certeza de que, ao ser adulta, teria um bilhete para sair daquele lugar. Aproveitava da desculpa de não falar bem em inglês para não conviver com as pessoas da comunidade. Fiz 18, 19, 20 anos e nada aconteceu. Nas poucas vezes que esbocei alguma frase sobre minha real vontade, fui levada até o reverendo e castigada por minha falta de fé.

Na hora que sua mão caiu sobre minha pele e ele tentou tocar meu corpo, eu me debati, gritei, chorei e alguém apareceu na porta. Ele me deu um tapa tão forte que não consegui abrir meus olhos por dias. Aquele era meu castigo, mas sabia que existia algo pior. Sabia em cada olhar, em cada conversa. Senti o peso de sua violência, mas não como outras mulheres de dentro do Templo. Existia um plano para mim dentro da comunidade, um que me mataria aos poucos. Era refém de um lugar que minha mãe depositou sua confiança sem pensar no que eu gostaria de fazer ao me tornar uma adulta. E ela concordava. O sonho da minha mãe era ter um papel proeminente naquela pequena sociedade, que eu casasse com algum dos dirigentes do culto e tivesse filhos presos no que quer que aquilo fosse.

Aos 22, cuidava das crianças e me mantinha o mais afastada possível dos homens importantes do Templo. Nos momentos que o reverendo falava comigo, minha pele se eriçava de medo e meus instintos gritavam para tentar fugir. Meu último ano foi dedicado a procurar por saídas naquele rancho. Com calma, um pouco a cada dia, mapeei todo o terreno, investigando cada pequeno caminho, cerca ou porta dos limites da propriedade. Sabia que quando a hora chegasse, teria apenas uma chance e precisaria agir rápido. Não contava com minha mãe para retornar à nossa vida e precisava tomar as rédeas da situação enquanto não era obrigada a me resignar a um destino naquele lugar.

Já estava com 22 anos e “muito velha” para não ter virado esposa e mãe e, mais cedo ou mais tarde, seria subjugada a assumir um papel que não queria. Com a notícia que Jim Norman estava procurando um pretendente para mim, era questão de semanas antes de não ter mais oportunidades de fugir. Se minha mãe tivesse certa e estivesse destinada a Jacob, o filho de Jim, que acabava de completar 19 anos, eles nunca me deixariam ir.

Após o café da manhã, caminhei para a construção em que ficávamos com as crianças por todo o dia, do lado de fora da casa comunal. Era uma creche onde apenas os menores de sete anos poderiam ficar. As crianças acima dessa faixa etária eram ensinadas dentro do preceito da religião, uma versão escolar resumida e adaptada para que os jovens da comunidade aprendessem o suficiente sobre a lida da terra, contas simples, mas não o bastante para se rebelarem contra o Templo da Divina Iluminação. Detestei cada minuto que fui obrigada a estar ali, até que, no ano seguinte à nossa chegada, o Reverendo declarou que eu já havia aprendido o suficiente: era uma mulher, mesmo não tendo chegado aos 16 anos.

Temi todos os dias depois disso, esperando a imposição de um marido e uma vida na comunidade, mas ela nunca chegou.

— Noah, não corra, por favor! – Pedi para o menino loiro, de cerca de cinco anos, que detestava nossos dias na creche.

Conforme foi crescendo, Noah se tornou a criança desafiadora que não queria respeitar as regras. Sentia um misto de alegria e tristeza por ele, que seria esmagado pela filosofia da comunidade. Por enquanto, eu o tolerava, mesmo que Beth, uma das outras mulheres que permaneciam comigo no cuidado com as crianças, esboçasse a necessidade de castigo físico. Como Layla, uma das novas irmãs da comunidade não apareceu para nos ajudar, estávamos ainda mais ocupadas. Éramos mais de 100 adultos e 19 crianças ficavam sob nossa tutela durante parte do dia. A rotina era rígida: dormir antes das dez da noite. Acordar às seis da manhã. As mulheres cozinhavam e cuidavam das crianças. Os homens cuidavam do rancho e da plantação.

Quando a noite caía, nós nos juntávamos na igreja localizada ao lado da casa comunal e ouvíamos o reverendo falar de todas as formas dolorosas que morreríamos se desrespeitássemos seus ensinamentos. Era como um exército de homens e mulheres que eram guiados espiritualmente por um homem autoritário que gostava de ouvir sua própria voz.

Noah correu para fora e fiz um gesto para Beth não se levantar. Iria atrás dele, pois sabia que ela não seria tão misericordiosa quanto eu.

Olhava atentamente ao redor da casa, procurando pelo menino sem chamar atenção das outras pessoas – Já era o suficiente Beth saber sobre a indiscrição de uma criança brincalhona. Quando ouvi sua pequena risada infantil, aproximei-me de um dos celeiros nos fundos do rancho. Uma das minhas escolhas de rota de fuga. Ali havia uma saída para a estrada que não passava por nenhuma das janelas das casas da comunidade, afastada o suficiente para sair sem ser notada.

— Noah! – Sussurrei, procurando pelo menino, tentando baixar minha voz o máximo possível. Ouvi um barulho atrás de mim e me virei vendo sua pequena cabeça loira – Você não pode fazer isso! Vamos… vamos voltar!

— Senhorita Daisy… Está quente na casa – Ele confessou com sua voz infantil, limpando o suor de sua testa.

— Eu sei… mas não podemos chamar atenção… vá… estou atrás de você! – Sugeri e ele confirmou com a cabeça, um olhar triste. Noah sabia. Ele já havia sido castigado antes, mesmo sendo tão pequeno.

O garoto correu em direção à creche, indo muito a frente de mim. Ouvi um barulho de porta se fechando e a voz do reverendo. Congelei em meu lugar, não querendo sair de trás do celeiro e encontrá-lo. Já era o suficiente no sermão de todas as noites quando todos estávamos juntos, não queria vê-lo em um lugar tão isolado como este.

Apenas uma vez estive completamente sozinha com ele, e não queria que isso acontecesse novamente, nunca mais.


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