O amor que sinto agora – Livro de Leila Ferreira

O amor que sinto agora - Livro de Leila Ferreira

Trecho do livro

Para meus irmãos

Cerâmica
Os cacos da vida, colados,
formam uma estranha xícara.
Sem uso, ela nos espia
do aparador.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Prefácio

Fazia tempo que um livro não me atravessava desse jeito. Ele me fez respirar com dificuldade, me deixou acanhada por estar espiando tão de perto a dor alheia e me comoveu com a potência das emoções que estão ali em jogo. Sentimentos duros e ferozes num relato doce e feminino — uma ambiguidade que só os grandes escritores sabem manejar.

O livro é narrado por Ana, uma mulher madura que finalmente abre a carta que sua mãe deixou para ser lida depois que morresse. Após o atordoamento, Ana se sente desafiada a respondê-la, como se não houvesse ausência entre as duas, nem distância no tempo. Tudo o que Ana passou, sofreu, silenciou e descobriu, da infância até os dias atuais, é relatado com uma verdade dilacerante. A personagem reconstrói sua vida através da memória e nos convida a entrar num universo tão particular e íntimo que não há como não se sentir honrado por ela ter nos dado essa permissão.

Ela quem?

Leila Ferreira é a autora por trás da história e à frente da história, a maestrina dessa orquestração literária. Com mão firme e corajosa, ela investiga a fundo as renúncias à felicidade que somos capazes de fazer por aqueles que amamos — que mãe e filha não reconhecem esse enredo? Porém, ninguém pode sofrer no lugar do outro, amar no lugar do outro. Viver é uma jornada solitária. Não por acaso, a personagem inclui, entre suas lembranças, uma peregrinação afetiva que fez sozinha pelo México, Egito e França, arrematando o livro com a certeza de que o longe e o perto dialogam constantemente durante nossa existência.

O amor que sinto agora é nervo exposto e coração na mão. A transformação de uma menina em mulher, e as consequências dessa viagem sem volta. Um livraço.

Martha Medeiros

Mãe,

Acabo de ler a carta que você escreveu para que eu abrisse depois de sua morte. Só hoje tive coragem. Só agora, mais de quatro anos depois daquele 15 de agosto em que eu descobri que é possível parar de respirar de tanta dor e, ainda assim, continuar viva — só agora meus dedos conseguiram percorrer a distância que os separava daquele envelope pardo. E foi como se você tivesse voltado. Ouvi, mais do que li, suas palavras, e tive vontade de ir até a cozinha fazer um café daqueles que tomávamos juntas, cada movimento da xícara servindo de vírgula, reticências, ponto de interrogação, ponto final. Exclamação, para você, jamais. Você nunca foi de exclamar. Era eu a exagerada, a rainha do drama e dos expletivos. O fato é que você, na sua contenção, e eu, nos meus transbordamentos, precisávamos do café para nos pontuar. E cheguei a me levantar agora para buscar nossas xícaras, mas, antes de completar o movimento, meu corpo entendeu que, apesar de estar ali comigo, você não tinha voltado. Fiquei órfã mais uma vez.

E a única saída, mãe, é te escrever. Porque agora que ouvi sua voz, cada palavra me dilacerando e abrindo as janelas do cômodo trancado onde guardei a dor de te perder, agora temos que retomar nosso diálogo de vida inteira. Quantos substantivos engoli ao longo destes quatro anos — porque só você os entenderia. Eles eram seus. Quantas frases condenei ao silêncio e arquivei no cômodo da dor — porque eram suas.

Agora vejo a chance de voltar a ser filha, de desenterrar o léxico do nosso afeto e devolver a cada sílaba e a cada sentimento o direito de existir. Eu me encarrego de garantir o estoque de envelopes pardos para guardar nossas conversas. E prometo que vou chorar pouco. Não quero desperdiçar nosso tempo com lamúrias — o que não quer dizer que a gente vá falar só de alegrias. Afinal, nunca foi o nosso forte. Mas quero te contar que fui ao Egito, de onde veio seu pai. À França, onde derramei lágrimas e mais lágrimas no túmulo da escritora que você amava. Voltei ao México, onde compartilhamos um terremoto e dois natais, para me tratar com curandeiros. E sempre, sempre, me lembrando de você. Minha depressão?

Minhas crises de pânico? Vão bem e mandam lembranças. Meu casamento? Acabou. E vou ter que escrever uma carta longuíssima para você entender que não acabei junto. Ao contrário, nunca me senti tão acompanhada e inteira.


Sua filha,
Ana.

Mãe,

Releio sua carta para começar nossa conversa. E paro numa frase que resume tudo, ou quase tudo, que vivemos. Você diz: “Sempre me contentei com o essencial, mas para você eu quis também o supérfluo”. De fato, você sempre pediu pouco à vida — e ela fez questão de te atender. O bastante bastava, e o que para você era o bastante se avizinhava da falta. Lembro-me do seu guarda-roupa com meia dúzia de vestidos chemisier, feitos pela prima costureira. Seus dois ou três pares de sapatos. Um par de brincos (um, apenas), uma bolsa, um pote de creme Pond’s no armarinho do banheiro, um batom, duas ou três camisolas. Quando desmanchei sua casa (com certeza o dia mais triste da minha vida), eu me espantei ao ver que seus objetos pessoais cabiam num pequeno guarda-roupa, nas quatro gavetas da penteadeira herdada da sua mãe Tereza e em duas malas antigas, esquecidas debaixo da cama. O essencial bastando até o fim.

Comigo foi sempre diferente. Quando eu era criança, você sofria por não poder me dar brinquedos caros, refeições generosas e um quarto em que o vento implacável dos meses de inverno não entrasse pelas janelas. Na adolescência, fazia milagres para eu me vestir como minhas amigas — e se desculpava repetidamente por eu não ter o mesmo padrão de vida delas. Mas os chamados bens materiais eram só uma parte da nossa história. Porque o que você sempre quis que eu tivesse mesmo foi a felicidade que você não teve. O pai que agisse como pai, o marido que se comportasse como marido, e uma casa onde não houvesse tanta loucura e tanto sofrimento.

Só que a vida se encarregou de rasgar seu script. O pai que tentou me violentar foi só o começo (ou teria sido o fim?). E nós duas criamos uma coreografia insana, um pas de deux sem qualquer chance de dar certo. Eu fingia que estava bem, você decifrava meus movimentos sem alegria, e mais que nunca se esforçava para que eu fosse feliz. O que só aumentava minha infelicidade, porque eu não conseguia corresponder às suas expectativas, não via como retribuir seu esforço quase heroico, e me castigava por isso.

Quando eu tinha quinze anos, me lembro de em menos de três meses, e sem qualquer motivo aparente, ter emagrecido oito quilos. Você me levou ao médico e o diagnóstico foi: “Essa menina está emagrecendo de tristeza. Tem que nadar, fazer caminhadas, colocar essa tristeza para fora”. Voltamos para casa em silêncio. A tristeza entrou comigo no quarto e juntas fechamos a porta. De lá, eu ouvia seu choro — o choro da mãe que tinha a certeza de haver errado e não sabia por onde começar a consertar o estrago. E eu chorava junto, por fazê-la sofrer.

Mas chega de lágrimas. O que nós duas já choramos nesta vida daria para resolver o problema da seca em boa parte do planeta. O fato é que você se culpa imensamente por ter projetado seus sonhos nos meus, por ter deixado claro, desde muito cedo, que sua felicidade dependia da minha. E pede perdão na carta por ter me sufocado, tentando impedir de todas as formas que eu sofresse. Ah, mãe, como eu entendo o que você fez… e agora choro (de novo!) pela menina que você foi. Uma infância que ninguém, muito menos você, merecia ter tido. Mas essa conversa a gente deixa para amanhã. Vou ali irrigar uma região desértica e já volto, para tentar dormir. As janelas que tenho hoje não deixam o vento lá de fora entrar. Mas quem disse que não existem outros ventos?

Sua filha.


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