Trecho do livro
Horror, medo e o mais puro desespero me açoitavam, assim como uma das tempestades mais fortes que já testemunhei na vida.
Corri por minutos, depois continuei pelo que pareceram horas. O frio entrava em meus ossos, assim como a água da chuva impiedosamente encharcava minha roupa. Não conseguia enxergar um palmo à minha frente, só havia mato e mais mato por todos os lados.
Tropecei em um buraco e caí com tudo em uma poça de lama. Tentei me levantar, mas o que estava preso em minha garganta se libertou. Vomitei tudo que ainda restava em meu estômago.
Passei o dorso da mão pela boca, uma das poucas partes ainda limpas, e mais uma vez comecei a chorar. Não conseguia dizer se saíam lágrimas dos meus olhos ou se por dentro eu já estava tão vazia quanto meu estômago, mas meu peito doía tanto que eu sequer consegui me mover.
Meu coração estava sendo arrancado, aquela era a sensação. A dor latente se espalhou por todo meu corpo que começou a tremer ainda mais de frio, cada centímetro da minha pele doía, assim como minha cabeça, mas eu não podia parar, tinha que continuar fugindo.
Não posso desistir!
Estremeci. A chuva aumentou drasticamente e eu não fazia ideia de onde estava, mas tinha certeza de que se continuasse caminhando, provavelmente conseguiria chegar a uma das estradas.
Levantei-me, sem saber o que faria quando chegasse a alguma estrada, e percebi que estava com mais medo daquela resposta do que da escuridão que me cercava.
Com todo aquele breu, seria fácil cair em uma vala, ou um buraco mais profundo. Então comecei a caminhar um pouco mais devagar. Tentei me convencer de que aquele era o motivo pelo qual começava a arrastar os pés e não o frio absoluto unidos ao cansaço extremo que sentia.
Andei, vagando em pensamentos, pelo que me pareceu uma eternidade. Estava exausta, com frio, com medo. Meu casaco estava pesado de tão encharcado, mas, se o tirasse, perderia a proteção contra os ventos fortes, e não sabia o que poderia ser pior.
Depois de um longo tempo imersa em escuridão, minha mente cogitou a hipótese de desistir. Sentia-me fraca demais, gelada demais. Não era assim que as pessoas morriam? De frio no meio de uma tempestade e perdida nas matas?
Cambaleei, em dúvida se conseguiria sair dali viva e como uma resposta divina, vi ao longe uma luz clara, piscando. Um fio de esperança brotou em meu peito, mas a dor lancinante da incerteza continuava me cercando.
Comprimi os lábios, contendo a súbita vontade de me abaixar e chorar até perder o pouco de força que ainda me restava.
Precisava continuar correndo, mas estava tão cansada.
Tão zonza!
Não consigo sentir meus dedos, o pensamento me ocorreu.
Quanto mais eu olhava para aquela pequena luz, mais longe dela eu parecia estar. Minhas pernas começaram a fraquejar e, de repente, eu caí!
Meus joelhos bateram estrondosamente no chão de pedras e lama. Tombei para a frente e me apoiei nas mãos, lutando para conseguir me levantar, mas a fraqueza me venceu. Ergui o rosto a tempo de ver uma figura escura vindo rápido em minha direção.
Era um animal?
Fiquei tonta e perdi as forças dos braços, assim como meu apoio. Minha visão embaçou, mas ainda tive tempo de ver a figura se aproximar, grande, enorme.
Fechei os olhos incapaz de mantê-los abertos por mais um segundo e senti minha mente se desligar.
É tarde demais para mim.
Ninguém sabe como é
Ser uma pessoa ruim
Ser o amargurado
Por trás de olhos tristes
Behind Blue Eyes — Limp Bizkit
Virei mais um copo de conhaque em uma das madrugadas mais chuvosas que já presenciei desde que cheguei àquele lugar. O breu ao redor da casa principal da fazenda Kannenberg fazia brotar em meu peito a mais pura sensação de solidão.
De certa forma, até gostava daquilo. Estava tão cansado de ver todos que conhecia ao meu redor esperando que algo em minha vida mudasse repentinamente, que estar sozinho era de longe minha opção predileta, assim não precisava encarar ninguém, dar satisfações ou sequer me preocupar com o que estivessem pensando sobre mim. Já me bastavam os tormentos que tiravam minhas noites de sono.
Observei com precisão as gotas ricocheteando da beirada da varanda até sua ponta. O vento balançava com força o matagal ao redor da casa, que transformava a vinícola no horizonte em uma cena de um filme de terror.
Nunca fui fã de chuva. Preferia um sol ameno que mantivesse as estradas secas e com fácil acesso do que o lamaçal em que se encontravam agora, além do mais, tempestades também causavam desastres naturais que costumavam levar muitas vidas e eu não gostava nem um pouco delas. Enchentes, desmoronamentos, trombas d’água e…
— Tsc! — interrompi meus devaneios, quando percebi que mais uma vez estava pensando como um bombeiro.
Precisava abandonar aquele tipo de pensamento, assim como abandonei a profissão. Levei o copo novamente até os lábios, lembrando-me que fazia anos que tentava e não conseguia me desapegar daquilo.
Recostei-me na cadeira de balanço que ficava na varanda principal e sorvi um grande gole da bebida quente. Uma risada estranha escapou por meus lábios quando constatei o quão patético havia me tornado. Trinta e cinco anos, às 3 horas da manhã, balançando meu corpo para frente e para trás em um vaivém rotineiro, em uma daquelas cadeiras que os idosos adoravam, mas que frequentemente causavam algum tipo de acidente e…
Merda! Lá fui eu de novo. Inferno!
Balancei a cabeça, prestes a me amaldiçoar pelo resto da madrugada quando vi o matagal à direita da fazenda balançar com mais intensidade do que antes. Comprimi as sobrancelhas, buscando entender se aquilo era mesmo real ou algum delírio causado pela bebida. As folhas do mato se moviam rápido e em minha direção.
Não! Crispei os olhos, não era uma miragem causada pelo álcool. Era real.
Ergui-me em um salto.
E se fosse algum animal? Deveria ser grande para lutar contra todo aquele mato, e ainda mais sob aquela chuva forte.
— Porra! — praguejei, ao perceber que não dava tempo de alcançar o antigo rifle do meu pai no escritório.
A segunda opção era quebrar a garrafa de conhaque e usá-la para me defender.
Ergui a garrafa no ar no mesmo instante em que uma sombra, bem mais fina do que imaginara, escapou do matagal.
Foi então que eu a vi. Os cabelos longos e escuros cobriam grande parte do rosto claro. O pequeno corpo lutava para continuar correndo e precisei de mais alguns segundos observando aquela cena para entender o que de fato acontecia.
É uma mulher!
A porra de uma mulher no meio daquele matagal dos infernos!
Ela me olhou por um segundo, ou menos, e eu soube que ela não resistiria mais.
Larguei a garrafa no chão que fez um som oco do vidro contra a madeira e corri em sua direção. Entrei na tempestade que açoitou meu rosto com fervor. Infelizmente não fui rápido o bastante para evitar que seu corpo fosse ao chão com um baque surdo.
— Ei! — Ajoelhei-me ao seu lado. — Está me ouvindo? — Segurei seu rosto entre minhas mãos e afastei seus cabelos.
Ela estava pálida, gelada demais. Ainda assim, poderia jurar que, por um lapso de segundo, aquela mulher viu meu rosto antes de apagar de vez.
— Mas que porra… — rosnei.
Quem era ela? Por que estava correndo no meio da madrugada em um lugar ermo e completamente tomado pela mata daquele jeito?
Peguei-a no colo, sem pensar duas vezes. Seu corpo estava tão gelado que temi por sua vida.
Entrei em casa com seu corpo mole colado ao meu. Parecia tão indefesa, tão machucada que estremeci só de pensar o que podia ter acontecido a ela.
— Genosvaldo do céu, corre aqui! — uma voz gritou e logo em seguida passos apressados vieram do primeiro andar pela lateral da casa. Nicolina e Geno apareceram no meu campo de visão em menos de um minuto.
— Santo Deus! — A mulher levou a mão à boca assim que me viu passar correndo com um corpo em meus braços. — O que houve, menino?
Ela sempre me chamava assim, com algumas pequenas variações entre querido, garoto, e o pior de todos… criança.
Nicolina era a governanta daquela casa quando minha mãe ainda era viva. Tanto ela quanto Geno me viram crescer. Eles me conheciam de trás para frente.
Nicolina eracomo se fosse uma segunda mãe para mim e esteve comigo desde que nasci, até o momento em que fiz a maior besteira da minha vida. E, pelo visto, as surpresas não acabariam nunca mais. Ao menos, daquela vez, eu não era culpado pela expressão horrorizada presa ao rosto da mulher.
— Nicolina… — Corri em direção ao segundo andar com a mulher no colo e entrei no primeiro quarto que encontrei pelo caminho.
— Diz logo, menino, antes que eu morra do coração. — Ela se empertigou em meu encalço.
— Traga roupas quentes e cobertas, rápido!
— Ai, meu Jesus!
Coloquei a jovem cautelosamente sobre a cama de um dos quartos de hóspedes e comecei a retirar sua roupa. Seus lábios estavam roxos demais, temia que o grau de hipotermia estivesse evoluindo.
— Aqui, menino! — Ela parou ao meu lado e começou a me ajudar, tirando as calças da jovem. Agi rápido e profissionalmente, evitando qualquer parte íntima exposta do seu corpo e, Geno, quando viu o que acontecia, saiu do quarto imediatamente e ficou aguardando parado rente à porta.
Quando retirei o casaco preto, pesado de água e sujo de lama, assim como o rosto da jovem, parei por um segundo e encarei o arroxeado enorme que tomava grande parte do seu ombro esquerdo.
— Meu Deus! — Nicolina levou a mão à boca quando notou o mesmo que eu.
— Não podemos perder tempo. Precisamos esquentá-la. Prepare um chá.
— É pra já! — Ela saiu trêmula.
Tentei ignorar o hematoma que parecia recente e tirei todas as peças de roupa, envolvendo-a logo a seguir com uma manta quente. Não era térmica, mas serviria por hora. Cobri a jovem com mais alguns cobertores na esperança de aumentar a temperatura de seu corpo o mais breve possível.
— Você também está todo molhado. O que aconteceu, patrãozinho? — Nicolina retornou com uma garrafa de chá fumegante e uma xícara, só então me lembrei de que “criança” não era o meu apelido menos favorito no leque de opções de Nicolina, não. O pior de todos era aquele.
Patrãozinho… Acaso o meu tamanho dava espaço para diminutivos?
— É exatamente o que estou me perguntando. — Passei as mãos entre os cabelos úmidos. — Estava na varanda quando ela chegou correndo, passando pela mata.
— Que mata? A do riacho? — Geno questionou, surgindo na porta, e eu meneei um aceno confirmando. O semblante do homem se transformou em pura descrença. — Impossível! É difícil andar por aquele lugar durante o dia. De noite é… impossível — ele repetiu a palavra.
— E o riacho sobe muito com as chuvas. Quais as chances de ela ter conseguido escapar da ribanceira que termina naquelas águas? — Nicolina levou a mão até a testa dela. — Se isso for verdade, patrãozinho, essa menina chegou aqui por um milagre.
— Não acredito em milagres, Nicolina. O que acredito é na verdade, e essa garota vai ter que me contar o que estava fazendo nas minhas terras — vociferei, ainda abalado pelo susto.