Namorado de Ficção – Livro de Ruby Lace

Trecho do livro

Capítulo 1

“Pintava meu mundo de branco para tentar sair daquela escuridão. Com cada camada de tinta eu encobria imagens do passado, e com cada batida da música abafava meus pensamentos sombrios.”
Luke Moretti

Sorvi um longo gole do chocolate quente, o vapor embaçando as lentes dos óculos e aquecendo o meu rosto sonolento. Um novo bocejo rompeu da minha boca e balancei a cabeça, tentando findar a preguiça daquela manhã de domingo. Precisava ficar alerta, pois havia um prazo a cumprir e não podia mais adiar aquele trabalho.

— Está na hora de orquestrar um assassinato — cantarolei, forçando o ânimo a surgir ao impulsionar os meus pés cobertos por pantufas de pelúcia rosa pelo assoalho.

Percorri a pequena distância da cozinha americana até a sala onde o notebook me aguardava. Ele já estava ligado e parecia me encarar do sofá, pressionando-me a terminar o que comecei.

— Vamos lá, Serena… — Bebi um pouco mais do chocolate antes de colocá-lo sobre a mesinha, esticando as pernas logo em seguida ao apoiar os calcanhares na sua superfície e acomodar o notebook no colo. — Você consegue fazer isso — murmurei para mim mesma.

Inspirei fundo e abri o site de busca, desesperada por um cenário minimamente plausível de como matar alguém em meio a uma grande festa de final de ano e sumir sem deixar vestígios.

Droga, estou perdendo o jeito!

Ajeitei os óculos que escorregavam pelo arco do nariz depois de horas de pesquisas e arqueei as costas, sentindo a coluna estalar e gritar por ajuda.

— Desse jeito quem vai morrer sou eu — gemi e me levantei para alongar o corpo, parando diante da janela e espiando através do vidro.

Lá fora, nuvens carregadas encobriam o céu de Nova Iorque como um manto negro, dando a sensação de ser noite, apesar de saber não se passar do meio-dia. Faltava uma semana para o inverno chegar, mas parecia que a frígida temperatura e os pequenos flocos de neve não quiseram seguir com o calendário, antecipando a chegada da estação.

Um suspiro me escapou e, quando sentia os músculos finalmente começarem a relaxar e a tensão na nuca se dissipar, meu coração entrou em colapso com o som do meu celular tocando.

Por favor, não seja quem eu imagino ser…

Meu corpo se enrijeceu, a ansiedade se alastrando por minhas veias e me congelando no lugar.

No terceiro toque consegui forçar as pernas a se moverem, aproximando-me do aparelho mortífero. Com as mãos trêmulas apanhei o celular na mesinha de centro, amolecendo de encontro ao sofá em alívio ao ver quem era e atendi a chamada com um sorriso no rosto.

— Puta merda, Cora, você quase me matou do coração! — Espalmei o peito com a mão livre. — Pensei que fosse a minha mãe de novo com as suas chantagens emocionais.

— Nada disso, você não pode morrer, Serena. Não antes de terminar de escrever esse livro, preciso saber o final dele!

Joguei a cabeça para trás ao deixar escapar um riso.

Cora, além de ser minha fã número um, também era a minha beta e revisora. Nós nos conhecemos em um fórum de escritores iniciantes há cinco anos. Desde então nos tornamos melhores amigas e apoiávamos uma à outra.

Portanto sabia muito bem o motivo de ela estar me ligando…

— Não tenho nada para você hoje. — Suspirei, olhando para o teto como se de lá pudesse tirar inspiração. —Estou empacada na cena do assassinato.

— Como assim, sua louca? Jurava que já tivesse o esboço dela, não conseguiu escrever nadinha? — Choramingou no outro lado da linha. — Estava doida para ver aquele desgraçado morrer!

Outro riso escapuliu da minha boca, achando graça da situação.

Cora era a típica romântica sonhadora, tão romântica que vivia disso, consumia e escrevia livros sobre amor.

Eu era a sua única exceção, ela lia os meus thrillers e sempre me ameaçava para colocar algum tipo de romance no roteiro, mesmo que no fim os personagens não ficassem juntos.

Mas pelo visto acho que acabou pegando gosto pelo gênero de verdade.

— Para alguém que respira romance você está muito sanguinária — provoquei.

Ela riu do outro lado.

— Esse personagem merece o que está por vir. — Estalou a língua. — Mas parece que você vai me torturar com a espera…

Fechei as pálpebras com força, sentindo a pressão para terminar o livro no prazo me consumir.

Após alguns segundos de silêncio, ela continuou com um tom mais suave:

— Precisa de ajuda, amiga?

— Não faço ideia de como posso matá-lo sem que ninguém perceba bem no meio de uma festa!

Se algum vizinho escutasse a nossa conversa ficaria horrorizado. O dia em que a polícia batesse à minha porta e apreendesse meu notebook eu estaria ferrada, o meu histórico de navegação era incriminador.

— Hum… — Cora murmurou, podia imaginá-la batucando os dedos sobre a boca de forma pensativa como era de costume. — Mas e aquela ideia de ele beber uma taça de champanhe envenenada?

— Não dá — neguei, fazendo uma careta. — Seria óbvio demais, além de difícil execução. Como garantir que a taça envenenada chegasse até ele e não à outra pessoa no meio do baile? Ah, e já usei morte por envenenamento no meu último livro, não quero repetir.

— Verdade…

— Será que esgotei a minha fonte de ideias?

— Não! Você vai conseguir pensar em algo fabuloso, amiga — ela disse veemente, acreditando mais em mim do que eu mesma acreditava no momento.

— E como vai o seu novo livro? — Coloquei o foco sobre ela.

apaixonada… — Suspirou. — Queria que o meu mocinho existisse na vida real.

Eu também estava apaixonada por ele, era o meu mais novo namorado literário. Minhas relações amorosas se resumiam em namoros de ficção ultimamente, desde que flagrei o meu ex me traindo no ano passado…

Personagens de livros não quebravam o meu coração.

— Quero um capítulo hoje no meu e-mail, viu? — incentivei de forma genuína.

Eu estava viciada no seu novo romance e aguardava ansiosa pela próxima cena onde os personagens finalmente ficariam juntos.

— Até à noite envio. — Soou animada. — E nem preciso dizer que espero por um e-mail seu também, né? Nem que seja a cena incompleta ou um outro capítulo, deixa fluir que as ideias chegam na hora certa.

— Pode deixar!

Encerrei a chamada depois de nos despedirmos, sentindo o estômago reclamar de fome, não conseguiria me concentrar na escrita nem por um decreto agora.

Por mais que estivesse apreensiva para sair daquele bloqueio e lançar o livro na data planejada, precisava tirar uma pausa para comer.

Carreguei o notebook comigo até a cozinha e o coloquei sobre a bancada enquanto preparava um almoço rápido. Minutos depois, com a barriga forrada e com os ânimos renovados, voltei minha atenção para o monitor aberto.

— Ok, Serena, vamos lá! — Ajeitei-me na banqueta após a breve automotivação, estalando os dedos para depois pousá-los sobre o teclado. — Acho melhor deixar esse capítulo empacado para depois e pular para algum mais fácil…

Aos poucos tive um vislumbre de uma cena, ela se desenrolava na cabeça de forma tênue e, antes que se dissipasse, bati as digitais sobre as teclas e deixei as palavras fluírem.

Um sorriso desabrochava em meus lábios conforme as linhas iam aumentando na página.

Estava prestes a finalizar o primeiro parágrafo, meus dedos competindo com a minha mente acelerada, quando um barulho alto de música me fez tropeçar no caminho. As palavras que antes corriam soltas na cabeça tiveram uma morte súbita, e a linha de chegada daquela cena sumiu completamente de vista.

— Mas que diabos? — Lancei um olhar fulminante para a parede à minha frente, de onde o som atravessava. — Ah, não… Não acredito que o vizinho aniquilando a minha concentração, de novo!

Não fazia nem uma semana que havia se mudado para o lado, mas desde então a minha paz acabou.

Há dias meus ouvidos eram alvejados por batucadas de martelos e o irritante ruído de furadeira durante a minha escrita. Já tentei usar fones a fim de abafar os barulhos, até experimentei sons binaurais para criatividade e foco, mas não era o tipo de escritora que consegue trabalhar com música. Precisava do silêncio.

Por todo esse tempo eu mordi a língua e guardei as queixas para mim, pois as obras foram feitas dentro do horário permitido, mas dessa vez não iria ficar calada.

Uma coisa era fazer reparos no apartamento, outra coisa era ligar o som alto e esperar que o prédio inteiro quisesse ouvir Guns N’ Roses!

Não importava se essa era uma das minhas bandas favoritas, eu não queria escutar Patience naquele momento.

Porque a minha paciência havia se esgotado! Arrastei a banqueta para trás, marchando até a parede que separava o meu apartamento do dele, ergui uma mão em punho e desferi três socos.

Aguardei alguns segundos, mas a canção continuou no mesmo volume. Esmurrei algumas outras vezes na esperança do vizinho me escutar por trás daquele barulho insuportável, no entanto, nada aconteceu.

— Droga. — Inalei fundo e massageei as têmporas, coagindo-me a ficar calma.

Embora eu escrevesse histórias repletas de conflitos, mortes e vinganças, eu não gostava de confrontos na vida real.

Prova disso era a minha ansiedade toda vez que meu celular tocava, e o motivo por não atender as chamadas insistentes da minha mãe.

Talvez pudesse ignorar a barulheira e tentar usar os fones de novo…

— Não — interrompi meus pensamentos, meneando a cabeça. — Se eu não reclamasse, os sons continuariam me incomodando e nunca terminaria o livro a tempo.

Por isso, antes que a coragem se esvaísse, rumei a passos firmes até o corredor lá fora.

Hesitei por um instante antes de tocar a campainha do apartamento, erguendo o queixo e estufando o peito por baixo da camiseta geek que, coincidentemente, exibia a frase “Minhas habilidades interpessoais são ótimas, é minha tolerância para idiotas que precisa ser aprimorada”.

Segundos depois a porta se abriu e…

— Ah, oi. Eu, hã…

A primeira coisa que vi foi o rosto digno de capa de livro.

Deus, como ele era lindo.

Seu cabelo escuro e desalinhado caía sexy sobre a testa, como se ele tivesse acabado de sair da cama. Íris de um azul extraordinário, a maneira como cintilavam à luz pareciam dois diamantes, me encaravam com curiosidade. E a barba por fazer emoldurava o maxilar proeminente.

Sem que eu pudesse controlar, meus olhos desceram por seu corpo, percorrendo sem demora pelo abdome nu cheio de gominhos, os músculos se tensionando como se pudessem sentir a carícia do meu olhar sobre eles. A calça jeans dependurava-se nos quadris estreitos, deixando à mostra aquelas entradas nas laterais que eram pura devassidão. Havia respingos de tinta branca em sua pele e uma grande mancha no jeans, bem onde um longo volume demarcava o tecido, roubando minha atenção para aquela área.

Qualquer palavra que estivesse em minha mente evaporou, e continuei muda enquanto me familiarizava com a anatomia do novo vizinho.

O que eu estava fazendo ali mesmo?

— Como posso ajudar? — Sua voz foi abafada pela música ao fundo, lembrando-me cia razão de eu estar ali. Balancei a cabeça, recuperando-me da surpresa em vê-lo pela primeira vez, e desviei rapidamente minha atenção para o seu rosto.

Seus olhos me fitavam risonhos.

— Pode me ajudar abaixando esse som altíssimo. — Senti as minhas bochechas corando, mas preferia pensar que ficaram assim pelo aborrecimento, e não porque ele me flagrou cobiçando o seu corpo. — Estou tentando trabalhar.

— Ah… — Levantou os braços e puxou o cabelo para trás, lançando-me um sorriso mordaz. — Você é a vizinha que bateu na parede.

Minha boca se abriu em choque.

— Então você me ouviu e não fez nada?

Seus ombros largos subiram e desceram, num gesto de indiferença.

O que ele tinha de lindo tinha de babaca.

— Estava ocupado pintando — disse por fim. — Mas posso abaixar o volume agora já que fui interrompido.

— Bem, você me interrompeu primeiro! — Dei as costas antes que fizesse algo que me arrependesse. marchando de volta ao meu apartamento.

— Foi um prazer te conhecer também — ele falou alto, divertindo-se às minhas custas.

— Idiota — resmunguei baixinho, batendo a porta atrás de mim e me recostando nela. Meu coração retumbava e calor se espalhava por toda parte do meu corpo, deixando-me com falta de ar.

Culpei meu descontrole pelo aborrecimento, não tinha nada a ver com o fato de eu estar atraída por meu vizinho.


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