Millos (Os Karamanlis Livro 4) – Livro de J. Marquesi

Millos (Os Karamanlis Livro 4) - Livro de J. Marquesi

Trecho do livro

PRÓLOGO

Millos

Oh mother, tell your children
Not to do what I have done
Spend your lives in sin and misery
In the house of the rising Sun

Atenas, 1997

Os sons sempre eram os mesmos, não importava onde quer que eu estivesse, dentro de um armário, debaixo da cama, deitado na banheira vazia do banheiro no final do corredor ou num quarto de motel barato. Não havia modo de fazer cessar o barulho dentro de mim.

Demorei muitos anos para entender o que me acordava no meio da noite quando criança, isso só foi possível à medida que fui crescendo. Meu sono era interrompido por algo que me assustava, mas eu acabava voltando a dormir, ou pelo menos foi assim até os seis anos de idade.

Talvez, se eu tivesse mantido sons e imagens em separado, conseguiria voltar a dormir normalmente, mas, em uma noite qualquer, fui despertado com o coração disparado e a boca seca. Levantei-me da cama e resolvi caminhar pela casa a fim de descobrir o que era aquela barulheira toda.

Foi aí que os sons mudaram para mim.

Antes, eu os ouvia e associava a alegria, a festas e logo voltava a relaxar. No entanto, não depois daquela noite em que fui atrás de respostas. Dizem que a curiosidade matou o gato, mas naquele momento percebi que, na verdade, a curiosidade matou minha inocência e meus sonhos.
Nada mais foi como antes! Nem eu nem minha família.

De certa forma, a ignorância me protegia, permitia que eu estivesse afastado de toda a podridão à minha volta. Eu em um inocente em seu mundo de sonhos, um Éden particular no meio do inferno. Então, assim como aprendi com giagia² que, ao comer a maçã, Adão e Eva foram contaminados pelo pecado, naquela noite, ao não voltar a dormir, fui jogado no meio do esgoto.

Tudo ruiu, o véu se rasgou, e as máscaras foram ao chão.

Quando o tormento se tornou insuportável, quando chorar já não era mais opção para um garoto de pouca idade, recebi consolo através da dor e me refugiei nela para fingir que nada anormal acontecia em minha vida.

A cada novo “evento”, eu criava uma lembrança dolorosa e focava nela e não nas atrocidades que via; a cada grito, a cada gargalhada, lembrava-me da dor e do sangue do meu próprio corpo, tentando esquecer as memórias atrozes do dia em que fui até o porão de nossa casa e minha inocência morreu.

O grito soa mais alto em minha memória, sobrepondo-se à música ensurdecedora que toca, e relembro as vozes embriagadas, as risadas nefastas como os ganidos de uma hiena. Sou transportado a um tempo em que, ao ouvir esse som, tampava os ouvidos e ficava com olhos arregalados, ressequidos pela mistura de medo e ódio que se acumulava a cada dia dentro de mim. Todos os músculos do meu corpo franzino ficavam tensos, minha pele se tornava pegajosa, embora fria, mesmo quando eu estava todo embolado em mim mesmo num canto escuro qualquer.

Endureci em meses o que deveria ter acontecido apenas a um velho que viu muita desgraça em sua vida. Aprendi a ser esperto e me manter longe dos olhos de pessoas que poderiam me prejudicar, a calar minha boca e fingir demência sempre que alguém tentava descobrir até onde eu sabia. Entretanto, minha falta de atitude teve um preço, e estou pagando por ela até hoje.

Minhas notas do colégio de repente ficaram todas negativas, as amizades que cultivava desde que usava fraldas se foram, e comecei a arrumar briga com quem quer que fosse apenas para aliviar um pouco o tormento que me consumia.

Quando tudo isso começou, há 10 anos, mamãe foi chamada à escola, mas ela já não tinha mais coragem para me repreender ou ensinar, ela mal me olhava. Meu pai provavelmente ficou sabendo, mas, como nunca se meteu nos assuntos domésticos – e minha educação era responsabilidade de sua esposa -, ignorou qualquer reclamação que uma “diretorazinha puta” ousou fazer sobre um Karamanlis.

Um Karamanlis era sempre intocável!

Um Karamanlis era sempre irrepreensível!

Pois é, sou um Karamanlis, o segundo neto de Geórgios, o homem mais rico da Grécia, e isso não tornou minha vida mais fácil ou agradável, apenas me destruiu lentamente. O velho pappoús³ achou que, me tirando à força daquela casa dos infernos, iria conter o monstro que eles plantaram dentro de mim, mas estava enganado. O monstro estava no meu sangue, e nada poderia contê-lo.

À medida que fui crescendo, fui engolido pela raiva, atropelado pela fúria, forjado pela violência. Sentia que nada poderia me atingir, pois toda merda que fazia era imediatamente limpa, e assim me tornava mais sujo e mais astuto.

Bem que tentei ser parecido com Theodoros, o garoto prodígio, certinho, o sucessor do grande Geórgios, o filho mais velho de Nikkós Karamanlis. Sinceramente, invejei Theodoros por um tempo!

Crescemos juntos na casa de pappoús, dois fodidos, cada um a seu modo. Theo aprendeu a se curvar diante da vontade do velho e se esmerava em ser aquilo que nosso avô desejava que ele fosse.

Eu não!

Nossas férias em família foram espetaculares até um tempo atrás, quando os netos do todo-poderoso Geórgios Karamanlis se reuniam na mansão para conviverem, ao menos um pouco, e cada um encenava seu papel de criança feliz, ainda que todos soubéssemos que tudo era fingimento.

Konstantinos vinha de Londres, um garoto grandalhão, três anos mais novo que eu, que parecia um peixe fora d’água no meio dos outros; uma dúzia de garotos da nova geração de Karamanlis, cada um tentando parecer menos fodido que o outro, mas todos tão podres por dentro quanto eu mesmo.

Apesar de não ter sido de todo ruim a convivência com meus primos, uma hora tudo desmoronou, e nossa maldição nos deixou expostos, quando Theo, o neto amado, criado por pappoús como se fosse um filho, surpreendeu a todos ao se mostrar a reencarnação do próprio Édipo e quase matou o velho Karamanlis de desgosto.

Confesso que ri bastante da situação, porque me senti menos errado dentro daquela família, embora soubesse que, em algum momento, todos passaríamos pelo inferno de ter nascido um Karamanlis.

Enfim, chega de história, chega de me lembrar do passado, enquanto meu presente continua podre. Não tenho muito mais a falar de mim ou da minha história, a não ser que enumere todas as merdas que deixei pelo caminho nesses meus poucos anos de vida.

Este sou eu: um verdadeiro retalho humano, fodido de pai e de mãe, Millos Panagiotopoulos Karamanlis.

— Millos! — A voz esganada me faz parar de viajar nos pensamentos e voltar à realidade da maldita noite de foda em um motel barato nos arredores de Atenas.

Olho para o rosto da mulher com quem estou fodendo desde ontem, quando entramos neste quarto há 12 horas. Ela está praticamente irreconhecível, toda roxa, marcada em vários lugares, os olhos esbugalhados, a boca aberta buscando ar.

— Millos! — suplica de novo, a voz cada vez mais fraca, e é preciso uma força enorme para eu parar de mover meus quadris e tirar a mão de sua garganta.

Porra!

Pulo da cama e acabo batendo de costas contra um móvel vagabundo e bambo. Olho ao redor, notando a destruição que promovi no quarto, a sujeira ao redor, as garrafas de bebidas deixadas no chão, os pacotes de fast food abertos e espalhados com restos de sanduíches e molhos caídos pelo carpete.

Mal consigo respirar, não sei há quantos dias estou virado, entrando de quarto em quarto com mulheres diferentes, causando dor e destruição. Olho para a que está na cama, cujo nome não faço ideia, vejo-a massagear o pescoço dolorido, mas sem reclamar dos chupões, mordidas e marcas pelo seu corpo.

Filho da puta desgraçado!, o resto de consciência que me resta me acusa ao imaginar a dor que lhe infligi enquanto trepávamos. E tudo isso para quê? Para causar prazer e saciar o tesão? Porra nenhuma! Há muito tempo não sei o que é sentir alguma coisa, vou no automático, enfio meu pau em qualquer buraco quente, soco até gozar, tomo algumas pílulas de sedativo com bebida na esperança de que consiga dormir, mas só fico ainda mais agitado e volto a trepar de novo.

— Seu porco desgraçado! — a mulher grita ao se olhar no espelho. — Olha o que você fez comigo! Eu te amei, e olha o que você fez comigo! Você está me matando!

— Seu porco desgraçado! — a mulher grita ao se olhar no espelho. — Olha o que você fez comigo! Eu te amei, e olha o que você fez comigo! Você está me matando!

Encaro-a de volta através do espelho, tento ignorar os olhos verdes cheios de lágrimas, o corpo coberto de hematomas, o sangue escorrendo do lábio inferior e a cara lavada de porra enquanto ela chora e tenta chegar perto de mim para me implorar por sua vida, por sua segurança e proteção.

Crispo minhas mãos, tentando não me deixar ir por esse caminho, tentando não lembrar, então afundo minhas unhas na palma da mão até que a dor comece a me puxar de volta para a realidade.

Eu sou a porra de um monstro, sou podre, condenado ao inferno, filho do capeta, uma aberração.


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