Trecho do livro
CAPÍTULO 1
Jasmine
O sol parecia mais próximo da Terra naquela tarde tórrida, insuportavelmente quente. As solas dos meus pés descalços ardiam agonizantemente sobre as pedras pontiagudas e escaldantes da estreita rua no centro de Sanaã, capital do Iêmen. Minha garganta seca suplicava por um gole de água; as algemas em meus pulsos pareciam pesar toneladas, mas talvez fosse apenas o cansaço excessivo do meu corpo, extremamente fraco, depois de três dias comendo e bebendo apenas o suficiente para ser mantida viva.
À nossa volta, uma pequena multidão de pessoas se formava para nos observar passar, assistir nossa desgraça e agradecer a Alláh por não estar em nossa pele. Eram iemenitas molambentos e curiosos, entre os quais meus olhos desesperados procuravam por algum que estivesse nos apontando um celular, registrando aquela atrocidade, cujas imagens pudessem chegar ao conhecimento do nosso governo e assim recebermos ajuda. Mas não havia nenhum, ninguém fora daquele país, daquela cidade, saberia o que estava acontecendo conosco. Seríamos executados em praça pública, como nos tempos primórdios, sem que ninguém pudesse fazer nada para impedir.
Estávamos a caminho da praça onde seríamos enforcados, andando em fila com nossos pulsos algemados na frente do corpo, ligados aos dos outros por grossas cordas de fibra, escoltados por soldados fortemente armados, que também impediam as pessoas de se aproximarem.
Encabeçando a fila estava o responsável por tudo aquilo, Terry, nosso cameraman. Depois dele se encontrava Alonzo, o assistente de áudio; em seguida Anthony, o piloto do avião; Taylor, a assistente de redação; e, por fim, eu.
Era uma daquelas situações que até mesmo na ficção pareceria absurda. Pelo menos eu pensava assim quando via um desses filmes em que os personagens são aprisionados em um país distante, sem terem cometido crime algum e sem que lhes fosse dada nenhuma chance de defesa, ou mesmo de se comunicar com alguém do seu país. Absurdo sim, mas não impossível, pois estava acontecendo conosco. Perderíamos nossas vidas de forma bárbara e impiedosa, diante de dezenas de olhares sedentos por violência, simplesmente por estarmos no lugar errado, na hora errada.
Tudo começou quando encerrei a faculdade de jornalismo e saí espalhando meu currículo pelos grandes jornais de Nova Iorque. Devido ao fato de que falo fluentemente o idioma árabe, logo fui selecionada para fazer uma reportagem sobre a cultura muçulmana nos Emirados Árabes, um dos poucos países do Oriente Médio que aceita a presença de repórteres estrangeiros em seu território. Se eu soubesse onde tudo isso me levaria, teria escolhido outro idioma para aprender.
Tudo aconteceu muito rápido. Mal tive tempo de me preparar para a reportagem, ou de fazer a quantidade de pesquisas necessárias. Assim que descobriu que eu falava árabe, o chefe da redação me incumbiu de assumir a matéria, o que achei que seria um enorme pontapé inicial na minha carreira. No entanto, o sonho havia se transformado em um pesadelo, do qual eu não conseguia acordar.
De Nova Iorque voamos até o Egito, onde fretamos um avião particular de pequeno porte que nos levaria pelo restante do percurso. O piloto tinha apenas que atravessar a Arábia Saudita, mas aparentemente estava bêbado, ou drogado, pois além de nos levar na direção errada, permitiu uma falha técnica no avião que o levou a um pouso forçado no meio do deserto do Iêmen.
Sem água, nem comida, caminhamos durante quase um dia inteiro, à procura de qualquer vestígio de civilização, até que encontramos um pequeno rancho, uma moradia rural simples, perdida no meio do nada. Como os moradores não se encontravam, tomamos a liberdade de entrarmos e nos alimentarmos. Grande erro! Tão logo o morador apareceu, junto com suas duas esposas e os filhos, não quis saber de conversa, chamou a polícia e nos acusou de roubo e invasão. Para piorar a situação, Terry estava portando maconha para uso pessoal e com isto fomos acusados também de tráfico de drogas, certamente porque o chefe da polícia estava de mau humor naquele dia, a fim de cortar algumas cabeças, pois se fôssemos realmente traficantes jamais nos exporíamos de tal maneira e ele sabia disso.
Como o tráfico é punido com pena de morte no Oriente Médio, cá estávamos nós, prestes a sermos enforcados. Em um prazo de apenas cinco dias fomos julgados e sentenciados, sem qualquer direito de defesa.
A todo momento, eu tentava me convencer de que tudo aquilo não passava de um sonho ruim, tinha esperança de despertar a qualquer momento e descobrir que era tudo mentira. Mas não era, estava acontecendo de verdade.
Logo alcançamos a praça e fomos levados para o alto de uma estrutura de madeira antiga e ruidosa, dois policiais à nossa frente, outros dois atrás, todos armados com metralhadoras, nos impossibilitando de sequer cogitar uma tentativa de fuga.
O desespero me atacou com ferocidade, fazendo-me gelar e estremecer, quando soltaram nossos pulsos e nos posicionaram lado a lado, de frente para o público que lotava a praça, para que logo as cordas com laços na ponta fossem baixadas diante de nós.
Meu Deus! Havia chegado a hora! Íamos mesmo ser mortos, tudo estava acabado.
Tudo que eu conseguia pensar naquele instante era no meu pai, lutando contra um câncer na vesícula, que o consumia de dentro para fora. Eu não sabia o que seria dele sem mim, pois só tínhamos um ao outro.
Ao meu lado, Taylor chorava, copiosamente, tremendo, implorando por misericórdia, mas em nosso idioma. Mais adiante, Alonzo rezava em espanhol. Acredito que os outros dois também faziam orações silenciosas.
A multidão diante de nós se virou na direção oposta, reverenciando alguns homens que se colocavam na varanda de um edifício em ruínas do outro lado da praça. Estavam todos vestidos de branco, com o lenço tradicional na cabeça e, embora os raios do sol contra os meus olhos não me permitissem enxergar seus rostos, pela forma como os iemenitas agiam presumi ser os líderes da cidade, talvez até o rei. Dois deles acomodaram-se em assentos, enquanto os demais permaneciam em pé, logo atrás, como se fizessem a segurança.
No instante seguinte, um dos policiais — aquele que parecia comandar toda a macabra cerimônia —, deu início a um discurso, falando sobre a necessidade de se eliminar criminosos como nós, com o intuito de dar o bom exemplo a quem ousasse praticar aquele tipo de crime e blá-blá-blá. Falou também sobre estrangeiros tentando trazer o pecado para a sua terra e sua gente.
Ele ainda falava quando os outros soldados nos fizeram aproximar ainda mais das cordas, de modo que os laços ficaram bem diante dos meus olhos e entrei ainda mais em desespero. Como uma última tentativa de sobrevivência, elevei o meu olhar para os homens na varanda e comecei a implorar, no idioma deles.
— Eu suplico misericórdia… pelo amor que vocês têm a Alláh… não nos deixem morrer hoje… tenham piedade. — Era um martírio forçar as palavras a atravessarem minha garganta seca e dolorida demais, em um tom de voz alto, mas sem ter certeza de que era ouvida daquela distância.
Em resposta, um dos policiais veio por trás de mim, com um chicote na mão, porém se deteve diante de um gesto de mão de um dos homens na varanda. Apesar do medo, não me calei, continuei implorando pela minha vida e a dos outros, sem que aqueles homens demonstrassem qualquer reação, apenas conversavam entre si, de maneira enérgica, como se discutissem.
O discurso do chefe de polícia por fim encerrou. A corda foi colocada em volta do nosso pescoço e apenas fechei os olhos. Imagens da minha infância passaram-se como cenas de um filme em minha mente. Pude me ver correndo livremente na praia com os meus pais, ainda bem pequena, tão feliz e alheia às crueldades do mundo; pensei também nas coisas que queria ter feito e não tive tempo, ou apenas adiei, lamentando por não tê-las realizado. Como aquela viagem para Porto Rico, por exemplo, com meu namorado da faculdade, ou as festas que deixei de ir para ficar no quarto da república estudando sozinha, a fim de me destacar na profissão que havia escolhido. Do que adiantou tudo aquilo, se eu não levaria nada? Antes tivesse aproveitado mais a vida. Lembrei-me também da minha mãe indo embora quando eu tinha dez anos, alegando que não era feliz com o meu pai; dos sacrifícios que ele fizera para se dividir entre os cuidados comigo, com a casa e seu trabalho na construção civil. Por fim, pensei em como ele ficaria sozinho, doente, sem ninguém para cuidá-lo e essa foi a constatação mais triste de todas.
Eu esperava que meu pescoço fosse quebrado a qualquer momento, mas os minutos se passaram e não aconteceu. Antes disso, a voz masculina partiu alta e áspera da direção da varanda do outro lado da praça, ordenando o encerramento da cerimônia e mal pude acreditar. Abri os olhos contra a luz forte do sol e enxerguei o vislumbre de um dos homens ali de pé, comunicando-se com os policiais, ordenando que fôssemos levados de volta para a delegacia, sem dar muitas explicações. Em seguida, ele desapareceu para o interior do prédio, seguido do seu companheiro e dos seguranças.
Pouco tempo depois estávamos de volta à precária sede da delegacia, trancafiados em uma sala imensa, mobiliada com apenas uma mesa e algumas cadeiras. Não sabíamos se aquela soltura era mérito das minhas súplicas e tampouco nos sentíamos encorajados a comemorar, visto que as coisas podiam apenas ter sido adiadas. Nenhuma explicação foi nos dada.
Ali finalmente recebemos água em abundância para beber, de um dos soldados, e alguns sanduíches que devoramos com apetite. Pouco depois a porta foi novamente aberta e, desta vez, quem entrou foi um homem que parecia ligeiramente mais civilizado que os policiais. Tinha uma estatura baixa, usava óculos fundos de garrafa e um traje branco impecável, típico árabe.
— Sou Mohamed Ayad, advogado do príncipe Jawad Nazir, da Arábia Saudita. Venho em nome do meu príncipe trazer-lhes uma proposta. Podemos nos sentar? — falava de forma mecânica, inexpressiva, como se o fato de estar diante de um grupo de pessoas desesperadas não o abalasse nem um pouco.
Nos acomodamos à mesa e o sujeito sentou-se do outro lado, depositando uma pilha de papéis sobre o tampo de madeira grotesco.
— Qual é a proposta? — Teriy indagou.
— O príncipe comprou a liberdade de todos vocês, do rei do Iêmen, por uma pequena fortuna. Está disposto a enviá-los em segurança de volta para os Estados Unidos, em um de seus aviões particulares, desde que a Srta. Jasmine Campbell fique aqui e pertença a ele, de forma definitiva e irrevogável, mediante um contrato assinado.
Nos acomodamos à mesa e o sujeito sentou-se do outro lado, depositando uma pilha de papéis sobre o tampo de madeira grotesco.
— Qual é a proposta? — Terry indagou. — O príncipe comprou a liberdade de todos vocês, do rei do Iêmen, por uma pequena fortuna. Está disposto a enviá-los em segurança de volta para os Estados Unidos, em um de seus aviões particulares, desde que a Srta. Jasmine Campbell fique aqui e pertença a ele, de forma definitiva e irrevogável, mediante um contrato assinado.
O homem parou de falar e um silêncio quase tocável recaiu sobre a sala, todos os olhares fitando-o com perplexidade. Até que Terry o quebrou:
— Nós concordamos.
Todos os olhares se voltaram para mim.
— Eu acho que não entendi — falei, realmente com dificuldade de processar aquela informação. Não era possível que esse tal príncipe queria realmente me comprar, como se eu fosse uma mercadoria. — Ele quer que eu seja dele como? Tipo uma mercadoria? Mas para fazer o que comigo?
— O que você acha, mulher? — Taylor se adiantou e as intenções dele ficaram subentendidas.
— Se aceitarem o acordo, sua vida pertencerá completamente ao príncipe, para ele fazer o que quiser, sem que isso seja especificado — continuou o advogado — Você será transportada para a Arábia Saudita, passará a viver na casa de Al Saud, a residência real, como uma funcionária e de acordo com nossas crenças e cultura. Não terá mais qualquer direito sobre a sua vida. Esse direito será do príncipe. …