Livro ‘Castelo de Sombras’ por MS Fayes

Castelo de Sombras - Livro de MS Fayes

Trecho do livro

Dum vita est, spes est.
Enquanto houver vida, há esperança.

Quando sua vida está prestes a mudar, o que você faz? Você se apavora diante das possibilidades, desistindo do que tiver que acontecer? Ou enfrenta de cabeça erguida e aceita de braços abertos, sabendo que a partir dali nada mais será o mesmo?

Eu sabia que algo estava vindo… só não sabia de onde.

Podia olhar para as folhas caindo das árvores, ao longe, sabendo que aquela era uma estação necessária e que era preciso destituir para substituir. Renovar.

Eu estava sozinha. Mais uma vez. Olhei para o lugar onde minha melhor amiga deveria se sentar, como sempre fazia, todos os dias, ao meu lado, antes de tudo mudar. Vago.

O lugar estava vazio fisicamente, mas emocionalmente ela já havia se retirado há muito tempo. Já não éramos mais as mesmas. Não dividíamos os momentos como fazíamos antes. Não compartilhávamos os mesmos ideais.

Ignorei as risadas de deboche das panelinhas da turma. Como eu queria que meu lugar pudesse estar vago também. Estar ausente e não ter que aguentar nem mais um dia sequer da tortura diária vinda em forma de palavras e piadas sutis.

Houve um tempo em que fui forte e poderia simplesmente ter ignorado numa boa toda e qualquer fonte de provocação. Esse tempo se foi. Eu precisava aprender a lutar minhas batalhas sozinha, já que minha companheira de batalhas não queria estar mais ao meu lado.

Levantei o rosto e me recusei a ficar por baixo. Eu estava ali para estudar, então era aquilo que faria. Buscaria o conhecimento que tanto desejava e seguiria em frente, disposta a sair de cabeça erguida, ostentando uma camiseta retró com os dizeres em latim: Veni. Vidi. Vici. Sim… Vim, vi e venci.

O ensino médio não me derrubaria, assim como as angústias que o acompanhavam. As cobras peçonhentas não conseguiriam acabar comigo. Ninguém roubaria meu orgulho, mesmo que eu sentisse que ultimamente estava sendo apenas a casca de quem já fui um dia.

Eu só não supus que a vida seria tão traiçoeira e me jogaria no chão, fazendo questão de me mostrar que ventos indomáveis e tempestades não podem ser controlados por ninguém.

A depressão não tem um rosto. Não tem uma expressão definida. Ou, ao menos, sempre imaginei que tivesse e acabei me enganando redondamente. A sociedade cria estereótipos para as feições que uma pessoa depressiva precisa ter, mostrando sempre, nos filmes, um ser humano prostrado, normalmente com olheiras marcadas, cabelo desgrenhado, fedorento — pela falta total de um banho adequado — e com o nariz entupido, de tanto chorar.

Nem sempre é assim. Muitas vezes a pessoa está super de boa, não demonstra absolutamente nada para ninguém, vive uma vida agradável aos olhos da sociedade, mas por dentro… por dentro ela está se esvaindo em uma maré de sentimentos tão tumultuados que se tornam difíceis de ser explicados.

Eu tenho dezoito anos. Sempre tive tudo do bom e do melhor. Nunca vivi traumas intensos na infância que justificassem nenhuma onda nebulosa de tristeza aguda. Mas ela apareceu. Do nada. No auge dos meus dezessete.

Bom, talvez possa ter sido uma soma de fatores ao longo dos meus anos vividos. Ao longo das quatro estações estavam começando a ficar mais fortemente concentradas nas duas mais sinistras e obscuras. As mais sombrias. O outono, onde tudo começa a cair, as folhas começam a morrer gradualmente e se esparramam pelo chão, pintando uma paisagem, embora bonita para alguns, triste e mórbida. E o inverno. O inverno frio e gelado. Carente de sentimentos quentes que aquecem a alma.

Por mais incrível que possa parecer, sempre fui uma criança feliz e sorridente. Um quadro perfeito de comercial de margarina, talvez com um leve mix de moleca, com enormes ralados nos joelhos, sempre disposta a disputar com os irmãos e os meninos da escola, quem levava a melhor nas corridas e esportes mais radicais. Eu tinha um lado doce e um lado selvagem. Um lado fofo e um lado irado.

Nessa muvuca toda, ainda calhava de eu ser a caçula de três irmãos controladores. Filha de uma mãe mais controladora ainda, que ama de uma maneira peculiar e ao jeito dela. Posso dizer que não éramos tão chegadas, e meu relacionamento com meu pai também era mais distante. Sendo a mais jovem dos três, era óbvio que, para mim, vinham as sobras de muitas coisas, mas eu não reclamava, porque tracei meu próprio caminho, com uma personalidade própria e… bem, vou repetir a palavra que usei acima: peculiar.

No dia em que fiz 17 anos, tive um baque monstruoso que abalou minhas estruturas. Mentira. Abalou as estruturas de toda a família, mas creio que internalizei muito mais a porrada, já que senti na pele as emoções de maneira intensa. Era como se tivessem acontecido comigo.

Desde a infância, minha vida era ligada à de Katy. Onde uma ia, a outra ia atrás. Éramos uma equipe de duas garotas. No jardim de infância, no fundamental, no Ensino Médio.

Matamos nossa primeira aula juntas, beijamos garotos pela primeira vez, no mesmo dia, na mesma testa. Então deixamos de ser as BVs da escola ali, na casa de Sabrina James, com cerca de duas horas e meia de festa, na pista de dança… eu com Kieran Peterson e ela com Steve James, o irmão gêmeo da dona da festa. Péssima escolha, porque quando Sabrina descobriu que o irmão estava dando uns beijos no salão, gritou histericamente e tivemos que ir embora. Eu nem reclamei, afinal, Kieran nem foi lá um bom beijador mesmo. Foi mediano. Okay, naquela época eu nem podia comparar, mas meu lado garota ressentida quis menosprezar o evento. E nunca admitiria que sonhei três noites seguidas com ele e acordei suada em todas elas. Estávamos com 15 anos na época. Katy foi muito mais evoluída. Acabou perdendo a virgindade um ano depois, com o mesmo Steve, já que se engataram em uma espécie de namoro io-ió, mas segurei firme minha resolução de “eu resolvi esperar”. Pelo quê e por quem, não sabia ainda, mas estava esperando… até hoje. E nessa maré de convivência, de tantos anos ao lado da minha amiga, uma das coisas que aprendi com seu relacionamento com Steve foi que o amor às vezes pode detonar os outros relacionamentos. Ou seja, Katy destruiu a amizade que tínhamos, por conta do namoro que fazia questão de manter com Steve, pois ele cobrava uma maior atenção dela. Então, nossas noites de pipoca, Netflix, pijamas, fofocas e babação no Instagram de vários modelos gatinhos tinham acabado por completo. Katy era só dele e de ninguém mais. Passei a me isolar em meu quarto, mesmo que meus irmãos enxeridos tenham tentado de todas as maneiras me perturbar, mas, pelo amor de Deus, quem iria querer se jogar num papo-cabeça com seu irmão de 21, que só falava sobre engenharia mecatrónica, o outro de 22, que estava alistado no exército e só falava de armas e afins, e o mais velho, de 24, que só pensava em mulheres? Okay, ele trabalhava pra caramba, também, mas era mais safado que George Clooney em seus tempos de ouro. E, por favor, sei da vida do George porque sou meio stalker mesmo, e tenho uma tara por Onze homens e um segredo. Greg, Hunter e Jared eram três exemplares de machos alfas chatos e repugnantes que não saíam do meu pé, ainda mais agora. — Tillie! — Greg deu um grito que deve ter acordado a vizinhança inteira, mas fingi não ouvir. Eu sabia que dentro de alguns segundos um dos três irromperia pela minha porta, e pior, me chamaria pelo meu nome real.

3…2…1…

— Otília! — Greg arreganhou a porta do quarto. — Tillie, saia daí. Agora. Você já ficou tempo demais aí dentro.

Era engraçado que meus irmãos pensassem que eu tinha doze anos. Eu os deixava pensar, honestamente. Muitas vezes, dava-lhes o tratamento do silêncio profundo, aquele bem fúnebre mesmo, que vinha acompanhado de um olhar carrancudo e, dependendo do dia do mês, animalesco.

Greg sentou-se na minha cama com uma gentileza impressionante… Meu corpo quase foi arremessado do outro lado.

— Tillie… — dessa vez ele chamou baixinho. — Vamos lá… o pai está com tudo pronto. Mamãe colocou o jantar à mesa, eu e Hunter já combinamos que vamos lavar os pratos, Jared vai, inclusive, cantar para você, se precisar…

Continuei olhando para a parede, da mesma forma em que estava quando ele entrou.

Senti a movimentação na entrada do quarto.

— E aí? Nada? — Ouvi a voz de Jared.

— Ela nem responde.

Eu não estava com vontade. Estava anestesiada ainda.

Vejam bem… deixe-me explicar…

Eu disse que a tristeza foi se instalando aos poucos na minha vida, desde que eu tinha 17 anos, certo?

A perda gradual da minha amizade com Katy foi levando meu espírito a um estado de definhamento sinistro, que gerou uma onda de paralisia. Eu já nem fazia questão de manter amizade com outras pessoas.

Achava que seria ferida da mesma maneira que Katy me feriu. Ou me abandonou, sei lá.

Talvez isso tenha algo a ver com o fato de vincularmos a palavra abandono.

No dia do meu aniversário de dezessete, fiquei esperando que minha amiga de infância ao menos se lembrasse de mim, que sentisse a minha falta e que aquela data lhe desse um estalo, um despertar, algo assim. Mas ela passou por mim no colégio como se nem ao menos me conhecesse. Sei que comi um bolo preparado pela minha mãe, na companhia dos meus irmãos e meus pais, e só. Não fazia questão de ter outras pessoas. A ausência de Katy foi a que mais doeu. Ali senti que ela havia, realmente, renunciado à nossa amizade, jogando fora as memórias dos nossos risos, abandonando todo e qualquer plano de criarmos nossos filhos juntos, em casas vizinhas, para brincarem no parquinho no final da rua.

Ela não se contentou com aquilo, porém…

Porque quase um ano depois, Katy simplesmente deu fim à sua vida, me abandonando por completo. Não bastava que ela tenha feito aquilo emocionalmente, ela fez questão de assentar o prego no caixão, tomando um coquetel de pílulas para dormir que sua mãe deixava no armário do banheiro.

E tudo por causa de quê? Ou de quem? De Steve James.

Katy não havia resistido ao término do namoro vai-e-vem e a consequente nova namorada que Steve esfregou na cara dela, e num ato impensado, tomou uma puta dose de remédios, deixando uma carta de despedida enorme, endereçada a quem? A mim.

Daquele dia em diante, minha vida tomou um rumo esquisito.

Passei a questionar uma série de coisas… porque… eu perguntava… Será que ninguém tinha percebido que Katy não estava bem? Será que ninguém tinha visto que seu estado de espírito andava perturbado, que sua vida estava atrelada a um cara que não a valorizava em hipótese alguma e que aquilo poderia lhe fazer mal?

Não.

Ninguém viu.

Foi tudo muito silencioso.

Katy apenas disse que deixou a tristeza assumir o seu peito, que sentia minha falta, que Steve havia proibido nossa amizade, por me achar uma má-influência…

O quê? Eu? Onde eu era uma má-influência? Só se eu fosse influenciá-la a terminar com aquele babaca… Então, como uma erva daninha crescendo de maneira singular e rasteira, eu podia sentir a mesma tristeza se alastrando por dentro de mim, também. De maneira traiçoeira. Devagarinho…

Depois do enterro de Katy, eu me afastei de toda e qualquer diversão ou atividade que pudesse remeter a sorrisos e felicidade. Katy, que representava a vida, agora era a expressão da morte. E eu estava completamente mergulhada nos sentimentos que brotavam a cada dia.

As olheiras acompanharam passo a passo. Como uma estampa do meu verdadeiro humor. Mostravam no meu rosto a feição sombria de alguém que sofria por dentro, mas se recusava a falar, porque eu realmente me negava a dialogar com qualquer pessoa sobre o assunto. Expor meus sentimentos quando eu me sentia tão crua? De jeito nenhum.

Greg, Hunter e Jared tentaram de todas as formas extrair qualquer reação que pudessem. Nós sempre fomos irmãos unidos. Eu era a protegida, a princesinha do lar. Odiava o título, mas tinha que admitir que amava ser o objeto de atenção daqueles três garotos. Bem, não quando eles resolviam se infiltrar totalmente na minha vida sentimental e interferir em absolutamente tudo. Aí eu detestava. Como quando Greg me trancou no quarto para que eu não fosse ao cinema com Simon Convey, aos quinze anos. Eu já achava que tinha idade suficiente para tomar minhas decisões, mas meus irmãos pensavam o contrário.

Os idiotas ainda tiveram a capacidade de prever que eu tentaria fugir pela janela, então Jared já estava de plantão, sentado confortavelmente em uma espreguiçadeira, logo abaixo, comendo uma maçã, tranquilamente. Nem bem consegui colocar uma perna para fora… só escutei o “hum, hum, hum…”. Foi uma merda. Hoje eu agradeço, porque Simon nem se ofendeu com o bolo que levou e acabou saindo com Selena Fairchild no mesmo dia, sendo objeto de fofoca na escola por mais de dois meses, pelas fotos indecentes que tiraram dos dois se agarrando no escurinho do cinema. O que significava que aquele ali, provavelmente, seria o meu destino… ou eram os planos dele… digo, eu ser a pessoa agarrada. Argh! Vocês entenderam…

A mão de Greg passou pelo meu cabelo, mas era como se eu estivesse em um sonho, e estivesse vendo tudo de cima. Em uma imagem distorcida mesmo.

— Tillie… nós precisamos que você saia desse quarto — Greg insistiu. — Você já está aqui há quatro dias, no escuro, só comendo porcaria.

Bom, eu estava deprimida, mas também não queria ficar anoréxica, então peguei alguns salgadinhos da cozinha e levei para o quarto. Assim eu não precisava descer e dar de cara com ninguém, enfrentar nenhum dos meus parentes à mesa. Eu podia ficar isolada com a minha própria angústia.

— Me deixa em paz, Greg — falei, baixinho. Talvez assim ele saísse dali e me deixasse em paz.

— Pelo menos ela respondeu — Jared disse e se sentou na ponta da cama. Eu tinha plateia. Que ótimo. — Você está um lixo.

— Obrigada — retruquei com uma risada rouca, mesmo sem querer rir.

— Sério, Tillie. Já deu. Você tem que superar isso e sair daqui — Greg falou.

Nenhum deles entendia. Provavelmente ninguém nunca entenderia.

— Eu não quero comer.

— Você precisa comer. Ou a mãe e o pai vão te internar — Jared ameaçou.

Hunter entrou no quarto naquele momento, trazendo uma bandeja de comida. O cheiro imediatamente fez meu estômago revirar, mas fingi que estava tudo bem.

— Vão me internar, por quê? Gente, eu só estou curtindo um momento de tristeza — admiti com relutância.

— Não, Tillie. Você está se arrastando nessa merda já tem tempo. Katy já se foi e você tem que superar.

Cobri a cabeça com o edredom e tentei não ouvir mais nada.

Hunter se agachou ao lado da minha cama e puxou as cobertas.

— Tillie… Nós só queremos o seu bem, boneca.

Meus pais entraram no quarto e parecia que uma reunião estava formada.

— E então? — minha mãe perguntou, nervosa. Eu sabia que ela mesma nem conseguia entender o meu estado. Ou sequer sabia como conduzir a situação.

Meu pai se agachou ao lado de Hunter e nossos olhos se conectaram naquele momento. Azul com azul. Os dele, tristes; os meus, embaçados e opacos. Sem vida, muito provavelmente.

— Você vai se levantar daí? Comer para que vejamos que está bem? Vai sair do quarto?

— Pai, deixa ela respirar — Greg pediu.

Tentei me sentar na cama, ignorando o desconforto por estar sendo observada de perto por todos eles.

Hunter pegou a bandeja que havia depositado na minha escrivaninha e colocou no meu colo.

— Agora, coma.

— Vocês são muito mandões.

— E você é mimada.

Eu não era mimada. Estava anestesiada. Era diferente. À medida que mastigava o alimento, as lágrimas desciam pelo meu rosto e se misturavam ao sabor da comida.

Katy havia ido embora e levado um pedaço do meu coração com ela. Não havia nada que meus irmãos pudessem fazer àquele respeito.


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