Trecho do livro
Querido leitor, A filha do pastor é um romance ficcional, porém, inspirado em acontecimentos reais. Algumas cenas foram baseadas no cotidiano da pequena cidade onde moro, no interior da Bahia; outras, através de conversas e relatos de pessoas próximas a mim. As próximas páginas te apresentarão Matheo e Giulia, duas pessoas de mundos distintos, porém destinadas a ficarem juntas. Ela, a filha de um pastor muito rígido e tradicional; e ele, um homem rico, libertino e muitos anos mais velho que ela. A história se passa em uma cidade fictícia do interior de São Paulo, Novo Céu, e qualquer semelhança com nomes e cenários é mera coincidência.
2015, São Paulo
Giulia Salgueiro
Sentada ao lado de mamãe e da minha irmã, dentro da igreja lotada de irmãos da congregação, observo meu pai pregar o sermão do culto da quarta-feira com aparente sabedoria e confiança, deixando todos ali admirados.
Ajeito a barra do meu vestido, alinhando-o na cadeira, e continuo focada na pregação, tentando fingir que não estou incomodada com os olhares de Antônio na minha direção.
O rapaz de vinte e poucos anos, filho de Teodoro Rodrigues, um velho amigo de meu pai, sempre deixou claro seu interesse em me ter como sua esposa. Todos aqui presentes sabem e apoiam a união, incluindo meu pai. Apesar de não lhe dar nenhuma esperança, vez e outra sou alvo de seus olhares apaixonados e desconcertantes.
— Eu irei respirar um pouco de ar fresco lá fora — informo para a minha mãe, que está concentrada no sermão do meu pai e mal percebe o que digo. Levanto-me e saio discretamente para a frente da igreja, tomando cuidado para não esbarrar em ninguém.
Ao chegar no pequeno jardim verdejante e bem podado, respiro aliviada por conseguir fugir da atenção de Antônio por alguns instantes.
Ele é um rapaz honesto, de boa família. Não quero magoar seus sentimentos, mas também não posso alimentar suas ilusões sobre algo que nunca poderei oferecer.
Não quero me casar, cuidar de uma casa, ter filhos e passar o resto da minha vida me dedicando a ser uma boa esposa, vivendo debaixo dos pés do marido como minha mãe sempre fez.
Inspiro tristemente ao imaginar a verdadeira realidade dentro de minha casa. Não, definitivamente não. Eu quero ser mais que apenas uma boa esposa. Repito essas palavras inúmeras vezes no meu subconsciente.
Deixo os meus ombros caírem em desânimo e olho para a rua bem iluminada, mas pouco movimentada. Novo Céu é uma cidade encantadora… mas é tão pequena. Quando penso na minha vida daqui a dez anos, não é aqui que me vejo. Passar o resto de minha existência nesse lugar é algo que foge completamente do que anseio e do que busco, embora eu ame as paisagens deslumbrantes e o clima daqui.
Mas será que a vida é apenas isso? Acordar pela manhã, arrumar os filhos para a escola, servir o café para o marido e me entreter com os afazeres domésticos antes que chegue a hora do almoço?
A vida é apenas isso?
Levo a mão até o meu cabelo comprido, arrumando os fios loiros que se desalinharam com o soprar do vento. É uma noite agradável, a temperatura está amena e a brisa refresca a minha pele com suavidade.
Devagar, desço meus dedos até o quase inexistente decote do meu vestido, puxo a gola para baixo para poder alcançar o que quero e retiro o pedaço de papel que coloquei dentro do sutiã. Releio o rascunho que fiz mais cedo antes do culto começar, quando tive uma súbita ideia sobre uma cena do livro que estou escrevendo.
Meus lábios se curvam em um breve sorriso, orgulhosa de mim mesma. Porém, sinto que falta algo para que a cena fique perfeita. Está bem-feita, descritiva, mas e as sensações? Como expressar em detalhes, coisas que nunca vivi ou senti? Nunca toquei ou fui tocada intimamente por um homem, as experiências que tive não passaram de beijinhos inocentes quando ainda estava no colegial.
Suspiro, sentindo o desânimo me tomar novamente. Como sou patética. Em plenos dezenove anos e não sei nada sobre a vida.
Posso dizer que essa é a consequência que devo carregar por ser a filha do pastor. Um homem rígido e respeitado, que coloca os valores da família tradicional acima de tudo em sua vida.
Desde pequena, fui ensinada a seguir as doutrinas da Igreja à risca. Aprendi que sexo só pode ser feito depois do casamento, e casamento somente com membros da Igreja. Aprendi que o meu corpo é a casa de Deus, que devo honrá-lo, respeitá-lo e não cair em desgraça, jamais, ou estarei condenando toda a minha família à vergonha.
Por muitos anos, fui a filha obediente que por vezes meu pai se orgulhara. Mas então eu cresci e as responsabilidades da vida adulta chegaram até mim. Agora, segundo ele, devo me casar e construir minha própria família. Entretanto, meus pensamentos mudaram e meus sonhos mais profundos tomaram rumos diferentes daqueles que cultivei quando criança.
Percebi que por mais que eu tente me manter fiel às normas da Igreja e aos ensinamentos de meu pai, minha alma e coração estão cada vez mais distantes da minha realidade. Por mais que eu lute para afastar o desejo de correr atrás dos meus sonhos, não consigo.
Com o peito sufocado pelo peso da culpa, aperto o papel entre meus dedos, mal percebendo a umidade que se formou em meus olhos.
É como se eu visse meus sonhos sendo esmagados e destruídos antes mesmo de começarem.
Estou absorta em pensamentos, quando ouço passos lentos atrás de mim. Seco meus olhos depressa, viro-me e encontro o olhar preocupado de minha irmã, Clara.
Clara é um ano mais nova que eu. Ë obediente, linda e doce, a versão sem defeitos de mim. Ela aproxima-se com as mãos cruzadas em frente ao corpo. O vestido azul-celeste rodado a deixa tão bonita quanto um anjo. Seus olhos amendoados me fitam, interrogativos, e descem até minha mão fechada. Em um súbito, levo a mão às minhas costas.
— O que tem aí, Giulia? — pergunta curiosa.
Em um primeiro momento, não sei bem o que responder. Clara e eu sempre fomos cúmplices uma da outra, mas agora nada é tão simples.
Sei que posso confiar nela, mas papai não pode descobrir o meu segredo, e quanto mais pessoas souberem, maiores serão as chances disso acontecer… Se ele descobrir que estou escrevendo um livro erótico, nem posso imaginar o que será capaz de fazer. Certamente me expulsaria de casa.
— Não é nada, Clara. São só algumas anotações que fiz sobre o culto… — minto e sorrio de lado, buscando mudar o foco da conversa — O que faz aqui?
— Queria ver como estava. Você nunca sai no meio do culto, pensei que pudesse estar sentindo algo.
Passo um braço pelo seu ombro e aproveito a distração para embolar o papel na palma da minha mão. Assim que tiver uma chance, passarei tudo para o caderninho de anotações que tenho guardado a sete chaves.
— Deveria estar lá dentro com a mamãe, Clara. Eu só vim tomar um ar, a noite está agradável, não acha? — minto mais uma vez e a guio na direção da porta.
— Giulia, espere — pede assim que encurtamos a distância da entrada.
— O que foi?
Paro na calçada e a encaro. Percebo que Clara está mais calada do que deveria. O olhar está opaco e sem vida, seu semblante reflete tristeza.
— Eu vi Antônio olhando para você — diz baixinho, para que somente eu possa ouvi-la. — Ele gosta de você, Giulia, e todos aqui querem ver esta união. Mas você não aparenta estar muito entusiasmada com essa possibilidade…
Sou pega de surpresa pelo assunto abordado por ela. Clara nunca havia conversado comigo sobre Antônio ou meus sentimentos com relação a ele. Eu sentia como se ela não desse importância para as minhas escolhas ou para o fato de ele ser apaixonado por mim. No entanto, agora, me dou conta que há algo mais.
Puxo ar para os pulmões lentamente e decido ser sincera.
— Eu não sinto nada por ele, Clara. Não há a mínima possibilidade de me casar com Antônio — sussurro de volta.
Clara esboça um sorriso de orelha a orelha e segura minha mão. Ela está trêmula e gelada. Constato que está nervosa.
Suas bochechas ficam vermelhas e seus olhos brilham como estrelas.
— Por que esse assunto agora? — questiono desconfiada. — Você nunca me perguntou sobre ele…
— Eu o amo, Giulia. O amo muito e… desculpe se nunca disse nada, mas, depois de hoje, de vê-lo te olhando tão esperançoso, eu precisava saber se você sentia o mesmo. Precisava saber se eu teria uma oportunidade com ele algum dia.
Continua…