A Ex Namorada do CEO – Livro de Laura Ricci

Trecho do livro

1

Harvard, 15 anos atrás

DAMON

Ocampus fervilhava de gente àquela hora. Indianos e seus pares discutiam problemas matemáticos insolúveis em sua língua-mãe; chineses corriam para as suas aulas, mexicanos debatiam sobre projetos de ponta. Os alunos de uma das faculdades mais famosas do mundo vinham de todo o globo. Em comum, um único pensamento: se destacar no mundo. E embora eu estivesse entre os futuros players globais, a ausência de uma pessoa fazia o campus parecer vazio.

— Ha ha — a ironia fima de Madison me acordou —, falando assim parece que sou a vilã do grupo. Não vou carregar a coroa sozinha, todos aqui de alguma maneira também são — Ela girou a mão, apontando a imensidão do campus inteiro. — Você não precisa ser gênio para perceber, Damon. Ainda tem tempo de procurar uma turma melhorzinha.

— Você é a vilã do grupo! — Laura comentou baixo, levando o resto do suco à boca.

A discussão entre as duas sempre me fazia rir. Era estranho um cara solteiro ter feito amizade com uma turma de garotas, mas eu tinha perdido a conta de quantos colegas fiz desde que me mudei para Boston. Sem conhecer viva alma, achei que seria uma boa me juntar ao pessoal do futebol ou ao clube de matemática. Descobri logo que Harvard era tão receptiva quanto uma arena de gladiadores. Assim que as pessoas conheciam minha ambição, se afastavam. Era só começar a me sobressair nas matérias para, quase de imediato, virar um pária. Ninguém chegava a Harvard, umas das universidades mais concorridas do mundo, disposto a ser o segundo. Nem eu. O último grupo que restara eram aquelas três. Só ali, entre aquelas garotas — Madison, Laura e Julia — eu me sentia realmente aceito.

Olhei ao redor, procurando Julia. Na verdade, o motivo de continuar andando com o grupo era ela.

— Como assim? — replicou Madison no ato, esquecendo seu iogurte — Eu posso listar umas quinze atitudes malvadas em você antes que você consiga soletrar o meu nome!

Laura abriu teatralmente a boca — Pergunte a qualquer um! — ela se defendeu, apontando ao redor — Diga-me, Damon. Tem alguém mais maldosa que essa garota?

Fiz que sim. Sempre havia.

— Sua opinião então não vale — Laura reclamou, rindo.

Madison e Laura eram típicas garotas americanas. Altas, loiras, crescidas nos subúrbios ricos da cidade. Madison era ambiciosa e queria voar alto, como ele. Ela usava seu charme com professores e colegas, e conseguia sempre os melhores lugares, o resumo que o CDF fez, os melhores horários para se reunir com os orientadores. Eu não tinha dúvidas de que toparia com ela pelos corredores das melhores empresas no Muro — e talvez, um dia, precisasse derrubá-la em algum negócio. Mas no momento éramos amigos. Já Laura era feita de outra substância. Engraçada, era também criativa e não ligava muito para status. E nem precisava: seu pai era dono de uma empresa de tecnologia e podia, com um estalar de dedos, botar o Vale do Silício abaixo. Ela podia estar em um dormitório próprio, mas escolheu morar com as duas amigas porque foi amor à primeira conversa, e desde então, pelos próximos anos, as três se tornaram inseparáveis.

E havia Julia. A terceira garota. A que me fazia querer manter a amizade com as duas primeiras.

Eu nem me lembrava mais como começamos a passar o tempo juntos. Desconfiava que tinha a ver com minha ambição — isso certamente passou pela cabeça de Madison, que tanto se espelhava em mim quanto queria aprender meus métodos para copiar na cara dura. Talvez tivesse sido Laura quem puxou assunto primeiro — eu sentia ela olhar para mim de vez em quando. Nada de corações apaixonados nos olhos, nada disso. Se eu desse abertura, Laura me jogaria em cima de seu sofá repleto de almofadas peludas com dizeres “sou uma princesa” e faria sexo comigo por horas seguidas. Sem envolvimento emocional, porque alguma coisa nos podres de rico fazia eles extirparem o coração das equações.

A verdade era que eu comecei a andar com elas porque não conseguia mais ignorar a moça tímida e bonita que fechava a tríade. Desde o primeiro dia de aula, foi ela quem me chamou a atenção. Aliás, eu estava há minutos me segurando para não perguntar onde Julia estava.

— Não precisaria socializar, ficar de papo-furado — Madison continuava a tagarelar —, socializar pode ser mais do que conversar. Pode ser, por exemplo, despejar sobre as pessoas todo o seu desprezo.

Coisa muito comum, aqui em Harvard.

Olhei o relógio. Faltava pouco para a próxima aula, e tínhamos um longo caminho até o prédio. O professor Johnson marcava os alunos que chegavam depois que ele apagava as luzes do plenário, e o ano estava indo bem demais para estragar tudo com atrasos.

Ah, vai — Laura discordou —, não somos tão malvados.

Nesse ponto, precisei discordar.

— Somos todos muito malvados — falei. — Só que em diferentes gradações.

As meninas me olharam, curiosas. A discussão ia até o momento por caminhos divertidos, mas meu tom não tinha nada de diversão. Parecia mais um alerta — e talvez fosse. Eu era um cara extremamente ambicioso, e todo o resto da faculdade já tinha percebido porque era também. Enquanto associassem ambição com maldade, eu seria considerado um cara mau. Se queriam de mim algum pedido de desculpas, não teriam.

O quê? — Perguntei, saltando da mesa e ajeitando a mochila nas costas quando vi que elas continuavam a me olhar.

— Pelo menos alguém admite que é, de fato, um cara mau – Laura lançou um olhar cheio de segundas intenções para mim.

Qual era o problema em aceitar que o garoto pobre, bolsista na faculdade mais elitista do mundo, não estava ali para ser artista ou trabalhar no terceiro setor? Eu queria vencer, e nunca escondi isso de ninguém. Assim que vencesse, o mundo seria meu. Se isso era ser mau, eu era um cara muito mau.

— Cruzes. Vocês são bem mais malvados que eu — Madison estremeceu.

— Ah, tá bom — Laura olhou para ela —, digamos então que está disposta a desperdiçar essa educação toda em um voluntariado na África? Me poupe. A gente sabe muito bem o que você quer da vida.

— E mais — Laura completou —, antes malvada que estranha.

Eu ri. Gostava das meninas. Elas brigavam o tempo todo, era divertido. Por um só segundo, enquanto ouvia as duas discutirem agora sobre quem era a mais estranha, pensei em Julia. Um cara podia ser mau, mas ele só era mau até certo ponto. Bem na linha que separava a ambição (ok, maldosa) da redenção existia, geralmente, uma mulher.

Julia era o oposto do mau. Julia era o bem. Ela era boa. Por ela, um cara como eu daria o mundo inteiro.

Madison abriu a boca horrorizada para Laura, como se tivesse ouvido a maior besteira do mundo:

— Eu, mais estranha que você? E aquele seu almoço de estivador? Vai me falar que aquilo é normal?

— Não existe nada de errado em claras de ovos!

— Em comer duas talvez, não quinze!

Segurei o riso ao ver Laura bater a mochila nas pernas de Madison.

— Não acredito que estão discutindo sobre quem é mais estranho sem a minha presença.

Assim que ouvi a voz macia e feminina atrás de mim, me virei. A garota mais bonita do campus vinha com passos apertados em direção ao grupo. Ela abraçava alguns cadernos, e as costas pareciam discretamente envergadas pelo peso da mochila. Estava de jeans, o que sempre me deixava maluco, camiseta clara e camisa de flanela por cima. Tudo nela era simples e perfeito. Todas as linhas que a compunham eram delicadas e descomplicadas. Só um gênio podia ter criado, com tão pouco rebusque, uma garota tão bonita. Era a única hora em que eu acreditava em Deus.

— Ué, onde você estava? — Madison perguntou.

— Estudando, oras — Julia respondeu. Ela olhou para mim e seus lábios se curvaram para cima. De todas, ela era a mais tímida comigo.

Laura deu um sorriso cheio de malícia para ela.

— Pode falar — instigou —, você estava com alguém, não estava?

Julia colocou o cabelo atrás da orelha e soltou um riso sem graça.

— De onde você tira essas coisas? — Julia perguntou.

Você estava com alguém? Meu coração ambicioso bateu mais rápido. Porque, se estivesse, meu coração pararia.

— Claro que não — Julia respondeu. — Estava estudando. Vocês viajam nas teorias, credo.

— Bem, nossas teorias vêm do que a gente vê, né, amiga — Madison disse. — E já que estamos falando de gente estranha…

Julia olhou para mim. Ela sabia que chegaria sua hora.

Sorri de volta. Era impossível que ela não notasse como meus sorrisos — e olhares — sempre duravam mais quando iam na direção dela. Faltava pouco pra chamá-la para sair. Faltava só um emprego. Mas, duro como sempre era, o que faria se a chamasse? Eu queria impressionar Julia, e não ter vergonha da minha roupa e falta de recursos. Ela tinha crescido em uma família abastada — não tanto quanto a de Laura ou mesmo a de Madison — e estava acostumada a jantar em lugares legais. Eu nunca tinha entrado em lugares legais, a não ser pra fazer algum bico de garçom.

Por isso eu aguardava.

— Não tenho nada de estranho — Julia passou por nós, forçando a gente a apressar o passo. Ao contrário de mim, que insistia em ser o melhor porque era competitivo e tinha um mundo inteiro pra conquistar, Julia queria ser a melhor porque só sabia ser boa em tudo que fazia. Ela era uma graça. Não tinha coisa que ela fazia que eu não achava bonito, bom, legal. Chegava a ser patético.

Oh, por favor — Madison escarneceu, andando atrás dela. Todos nós a seguimos. — Julia, — suspirou — Por onde começar?

— Julia é antissocial… — Laura enumerou com os dedos o número um, indicando que haveria estranhezas suficientes para encher uma mão.

— Não, não, não — corrigiu Madison rindo —, anti significa uma ação contrária, uma oposição. E, contra a sociedade? É exatamente o oposto ao que Julia prega.

— Verdade — Laura concordou. — Julia quer mudar o mundo, desde que para isso não precise interagir com ninguém.

Julia gargalhou alto, e eu precisei fazer força para não dizer, ali, na frente de todo mundo e entre dezenas de alunos que iam e vinham, que estava apaixonado pela garota mais espetacular que conheci na vida.

Madison e Laura também caíram na risada.

— Julia não come nada que tenha olhos — Madison comentou, como se explicasse para o grupo a esquisitice que, talvez, um dia pudesse mudar o mundo.

— Ou mãe e pai — Laura complementou.

Julia deu de ombros, sorrindo para mim. Puta que pariu, Julia. Por que você precisava ser tão linda assim?

O que a transforma no eterno comentário da cafeteria — Madison falou.

Julia continuava a rir da provocação das amigas, sem desconfiar que, ao lado, um coração malvado batia por ela.

— Sou estranha por causa disso, Damon? — Ela perguntou para mim, me pegando no flagra.

Sorte que meu raciocínio sempre foi rápido. Eu seria pego por ela quantas vezes ela quisesse me pegar no futuro, mas no momento ainda não podia.

— Não comer carne por gostar de animais? Muito estranho. De onde alguém tiraria tal ideia?

O sarcasmo agradou Julia. Foi bom encontrar seus olhos interessados nos meus.

— Muito engraçadinho —, disse Madison — mas quando você não come nada que tem olhos e acha graça quando vê um bichinho vivo na sua salada, você passa a ocupar o primeiro lugar da lista de gente esquisita da cafeteria.

— Em minha defesa, se uma salada tem bicho vivo significa que não recebeu pesticidas — Julia respondeu.

— Não, amiga — Laura completou —, significa que alguém não lavou a salada.

— De qualquer maneira, achei essa lista muito restrita — Julia lamentou —, achei que estivesse na lista da faculdade inteira, e não só da cafeteria.

— Existem duas —, Madison avisou — e você encabeça ambas, sinto muito.

A gente riu, inclusive Julia.

— Não sou sempre tão esquisita, Damon — ela se defendeu olhando em minha direção. Eu sabia que não era. Mas estava gostando dessa preocupação dela em mostrar aquilo para mim. — Não deixem elas formarem uma imagem negativa de mim.

Ela só podia estar de sacanagem. Nada que ela fizesse seria capaz disso.

Laura voltou à contagem: — Sem contar que Julia não socializa, não aceita amigos fora do grupo, e não dá bola para ninguém.

— Isso não é verdade — Julia reclamou. — Apenas evito o drama que a turma adora. Não gosto de amizades fúteis, de bate-papos sem nexo e sem conteúdo. E não gosto de toda essa ambição que o povo daqui tem.

Ela olhou ao redor, sem notar que sua última frase reverberava em mim.

Se não gosta de ambição, como gostaria de mim? Pensei.

— Somos mulheres, não evitamos o drama — Madison disse como se tivesse achado o comentário de Julia tolo. — Fazer os outros se sentir um lixo é o que fazemos de melhor. Você se sentiria muito melhor se tentasse o mesmo.

O olhar de Julia alcançou o meu. Era um olhar brincalhão, de quem dizia: eu avisei. Fuja. Mas a única coisa que conseguia pensar era que nós dois éramos como água e vinho.

— Mais algum sábio conselho? — Julia perguntou às duas, usando uma nota de sarcasmo disfarçado na voz.

— Acho que foram suficientes — Laura respondeu.

— Epa, ainda tenho um último! — Madison falou.

— Ah, é? Qual? — Julia esticou o rosto para ver o da amiga.

— Você precisa urgentemente dar uns beijinhos e tirar essas teias de aranha da boca.

Madison olhou para mim, e em seguida para Julia de volta.

— E se eu fosse você, começava por esse gostoso aqui.

A porta abriu e os alunos da aula anterior deixaram em debandada o plenário, o que foi bom para disfarçar o acesso de tosse que atacou Julia e a sensação de marteladas no meu peito. Era assim tão óbvio que eu estava arrastando uma asa para ela? Eu podia ter me adiantado e me colocado à disposição para a “remoção das teias de Julia”, mas aquilo teria sido vulgar.

Eu ainda estudava os riscos de gostar dela. Nada podia ficar no caminho para a minha ascensão e ela, definitivamente, era algo que tinha um poder imenso de me tirar do eixo. Além disso, eu sabia que ela estava esperando o cara certo, e eu não era esse cara.

Mas um dia seria.

— Parem de me amolar — Julia deu uma cotovelada de brincadeira na amiga, balançando a cabeça para mim como se eu não devesse ouvi-las.

Mas eu ouvia. E pelo resto da aula pensei na boca dela, e o que faria se um dia pudesse beijá-la.


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