A arte de ser leve – Livro de Leila Ferreira

A arte de ser leve - Livro de Leila Ferreira

Trecho do livro

APRESENTAÇÃO

Uma revoada de andorinhas corta o céu de Cascais, pequeno paraíso português onde este livro foi escrito. Da janela da casa onde estou, vejo os pássaros riscando o azul sem nuvens e me lembro dos dias de inverno que passei aqui da outra vez, tentando acreditar num livro que eu não sabia como seria recebido pelos leitores. A gente nunca sabe, é verdade, mas a razão maior da minha insegurança era que, quando perguntavam o tema do que eu estava escrevendo, e eu citava a palavra “leveza”, a reação mais frequente era: “Leveza? Como assim?”.

Pois é. Como assim? Leveza, uma arte que as andorinhas dominam, é coisa que dificilmente se explica. Um livro sobre o assunto, menos ainda. Mas eu estava convencida da necessidade de aprendermos a viver com menos peso na alma, menos tralhas na bagagem, menos aspereza nas palavras e nos gestos, menos azedume, menos pressa e consumismo. E escrevi sem saber se, para outras pessoas, essa vontade de existir de forma mais suave, ou menos complicada, faria sentido.

A reação dos leitores foi, e tem sido, uma das experiências mais gratificantes da minha vida. Saber que tantos se identificaram com o que proponho neste A arte de ser leve reforça aquilo em que sempre acreditei: que é possível, e essencial, diminuir o peso do nosso cotidiano. Viver foi, é e será sempre difícil. Mas a leveza aumenta (muito) a chance de darmos conta da empreitada. Que os pássaros — seja na revoada de andorinhas no verão de Cascais ou no voo solitário de um beija-flor brasileiro — nos lembrem disso e nos inspirem.

Setembro, 2016

Duas rodas

Há pouco tempo, conversando com a dona de um salão de beleza que funcionários e clientes costumam descrever como uma pessoa leve, perguntei o que estava por trás daquela leveza. Como ela conseguia manter o bom humor e a calma em situações que normalmente causariam estresse (por exemplo, passar doze horas por dia ouvindo o barulho ininterrupto de secadores e de vinte mulheres falando ao mesmo tempo)? Conceição respondeu: “Tem gente que vem pro mundo de caminhão e tem gente que vem de bicicleta. Eu sou da turma da bicicleta”. Saí de lá morrendo de inveja.

Acostumada a arrastar baús cheios de ansiedade e de medos, tive certeza, naquela hora, de que estava na outra turma- a das carretas com excesso de carga, que trafegam perigosamente por estradas sem acostamento. Pensei no tamanho do Scania que usava para transportar minhas complicações, imaginei a bagagem compacta da dona do salão, e decidi que era hora de mudar de vida. Isso em um primeiro momento. Depois vi que “mudar de vida” era uma meta muito ambiciosa. Como jornalista, preferi escrever sobre a perspectiva da mudança (quem sabe depois…?). Foi assim que este livro nasceu. Ele é uma reflexão sobre a possibilidade de viver de forma menos complicada, carregando menos peso.

Não falo aqui sobre a leveza que aliena e nos condena à superfície. “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”, disse o escritor francês Paul Valéry. A mesma leveza que o italiano Ralo Calvino defende em suas Seis propostas para o próximo milênio. A pluma flutua — um voo sem plano, sem direção, sem desafios. Os pássaros riscam o ar com precisão, colocam a leveza a serviço do existir. Uma pedra pode interromper o voo, mas até que isso aconteça as asas sabem aonde e como ir. Calvino cita “o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo”. Quando penso em leveza, penso na possibilidade de sermos pessoas capazes de deixar o mundo menos opaco, menos pesado, menos inerte. Pessoas que se sentem melhor com elas mesmas e são mais agradáveis, mais delicadas, mais generosas. Acima de tudo, pessoas que conseguem também fazer a viagem (cada vez mais rara) de sair delas próprias para enxergar o outro — e o outro pode ser o colega de trabalho, o filho, a amiga de infância, o vizinho, o marido, a namorada, o paciente que esperou vários dias pela consulta, o porteiro do prédio.

Há tempos brinco com minhas amigas obcecadas por dietas sobre o perigo que corremos de emagrecer o corpo e ficar com obesidade mórbida de espírito. Corpos rijos e enxutos, construídos com disciplina mais do que espartana, circulam num mundo cheio de almas adiposas, engordadas pela autocomplacência. Com o corpo, todo o rigor é pouco, mas nos perdoamos com enorme facilidade por nossa impaciência, nossa falta de civilidade, nossa incapacidade de ouvir, nossa rispidez. Achamos natural agir de forma desagradável com os outros porque estamos estressados. Mas nossos comportamentos vão deixando o mundo mais estressante. E não são apenas os outros que nos rodeiam que saem perdendo. O peso na alma afeta profundamente a pessoa que o carrega — ainda que não perceba. Seres que passam a vida arrastando correntes são infelizes. Almas gordas, mais que intoxicar os outros, intoxicam-se.

Os antigos egípcios tinham uma crença interessante: achavam que, na longa viagem que os mortos enfrentariam até chegar a seu destino, seriam obrigados a participar de um ritual chamado pesagem da alma. Na cerimônia, presidida pelo deus Osíris, o morto fazia sua defesa e se declarava inocente de vários pecados. Em seguida, passava por uma prova: seu coração, considerado a sede da consciência, era colocado numa balança. Se pesasse mais que uma pena de avestruz, o morto estaria condenado a uma série de castigos e poderia até ser devorado por um monstro. Almas leves, em paz com a consciência, tinham a chance de seguir seu caminho e eventualmente chegar ao paraíso.

Se a pesagem da alma fosse feita hoje, pouquíssimas pessoas seguiriam viagem. Independentemente dos pecados, carregamos o peso de cotidianos desgastantes, ambientes de trabalho competitivos, relações pessoais conflituosas, problemas financeiros —tudo que vai nos deixando com o espírito balofo e a alma cinzenta.

O que este livro pretende é refletir sobre valores e comportamentos que podem ajudar a diminuir a opacidade da alma e o peso do espírito — atitudes que aumentem a possibilidade de escaparmos dos monstros, ainda que não garantam a chegada ao paraíso. Fala de uma leveza que inclui a angústia, a tristeza, as inseguranças, a precariedade da existência. A insustentável leveza do ser, como propõe o escritor tcheco Milan Kundera? Não sei. Talvez a leveza de ser quando a vida permite ser leve. Que sejam cinco minutos, que seja o tempo de um entardecer ou que dure a paixão mais breve — não importa. Mas que, pelo menos parte do tempo, possamos fazer deste mundo um lugar menos complicado, menos estressante, em que seja possível conviver com mais cordialidade e menos impaciência, e aprender a nos respeitar e a nos conhecer — um lugar, enfim, em que estejamos mais em paz com os outros e com nós mesmos.

Atualmente, a fila anda até para os problemas. Por isso, a leveza que proponho aqui é aquela que reconhece a existência das sombras e as incorpora. Aquela que admite que a vida é barra-pesadíssima e que nem sempre é possível ver um lado bom no que nos desgasta, nos amedronta, nos faz sofrer. Mas que, mesmo enquanto estivermos tristes, ansiosos ou deprimidos, possamos ser pessoas que não abrem mão da civilidade, da compaixão e do mínimo de elegância para conviver. Travel light, recomendam os guias de viagem, ou seja, viaje leve. Não é sair pelo mundo sem bagagem. É simplesmente eliminar o excesso de peso.

Vamos à viagem, pois — lembrando sempre que estamos tratando do mais relativo dos conceitos: a leveza de uns pode ser o peso de outros e vice-versa. O roteiro inclui Portugal, Estados Unidos, Holanda, França, Rio, Belo Horizonte, São Paulo, Araxá e até um povoado chamado Tragédia. Entre as pessoas com quem conversei estão filósofos, educadores, uma atriz, um estilista, um dono de funerária, um grupo de manicures, uma empresária, um sociólogo, um veterinário e uma turma de viúvas que se encontra para rezar o terço, jogar buraco e torcer pelo Cruzeiro — não necessariamente nessa ordem. As conversas vão e vêm, e muitas foram acompanhadas por mesas fartas. Dieta, ali, somente a da alma. Entre bolos, cafés, taças de vinho, um peixe em Estrasburgo, um brunch em Baltimore, um risoto em Belo Horizonte e uma rapadura com queijo em Araxá, cada um contava suas histórias, fazia suas reflexões e, juntos, tentávamos destrinchar algumas estratégias de “bem viver”.

O resultado não é um livro de receitas — nem de verdades. É apenas um caderno de anotações feitas a partir dessas conversas. Algumas pessoas que aparecem aqui são leves, outras ensaiam ser. Mas todas acreditam na importância de refletir sobre a quantidade (e a qualidade) da bagagem que transportamos nessa brevíssima passagem por este planeta. Começando por um item tão frágil quanto essencial, que muitos preferem levar na bagagem de mão para não correr o risco de extravio: a gentileza.


Tags: , ,