Livro ‘A última festa’ por Lucy Foley

A ULTIMA FESTA
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Todo ano, nove amigos comemoram o réveillon juntos. Desta vez, apenas oito vão voltar para a casa depois da festa. Programado para acontecer em um cenário idílico, o réveillon que Miranda, Katie e os outros amigos que conheceram na faculdade passarão juntos este ano promete refeições deliciosas regadas a champanhe, música, jogos e conversas descontraídas. No entanto, as tensões começam já na viagem de trem — o grupo não tem mais nada em comum além de um passado de convivência, feridas jamais cicatrizadas e segredos potencialmente destrutivos. E então, em meio à grande festa da última noite do ano, o fio que os mantém unidos enfim arrebenta. No dia seguinte, alguém está morto e uma forte nevasca..
Páginas: 304 páginas  Editora: Intrínseca; Edição: 1 (19 de fevereiro de 2020)  ISBN-10: 8551005723  ISBN-13: 978-8551005729  ASIN: B083V7J7K1

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Lucy Foley estudou literatura inglesa e trabalhou durante anos no mercado editorial como editora de ficção, até se dedicar à escrita em tempo integral. A última festa é sua estreia na literatura de suspense, após a publicação de três romances históricos, que foram traduzidos para dezesseis idiomas. Já escreveu para veículos como ES Magazine, Sunday Times Style, Grazia e outros.

Leia trecho do livro

Para AC, meu parceiro no crime.

Deve um velho amigo ser esquecido
E nunca mais se pensar nele?

PRESENTE
2 de janeiro de 2019

Heather

Vejo um homem se aproximar em meio à neve que cai. A distância, através de uma cortina branca, ele quase não parece humano, é mais um vulto.

Conforme se aproxima, percebo que é Doug, o guarda-caça.

Noto que anda apressado em direção à sede, tentando correr. Mas toda aquela neve o impede. Ele tropeça a cada passo. Algo ruim aconteceu. Sei disso mesmo sem conseguir ver seu rosto.

Quando chega perto, percebo que sua expressão está congelada pelo choque. Conheço essa fisionomia. Já a vi antes. É o semblante de alguém que testemunhou algo horrível, algo que vai além dos limites de uma experiência humana normal.

Abro a porta da sede e o deixo entrar. Uma lufada de ar congelante e um monte de neve entram com ele.

— O que aconteceu? — pergunto.

Há um momento — uma longa pausa — durante o qual ele tenta recuperar o fôlego. Mas seus olhos se antecipam e contam a história por ele, uma comunicação muda de horror.

Finalmente, ele fala:

— Encontrei a pessoa desaparecida.

— Bem, que ótimo — digo. — Onde…

Ele balança a cabeça, e sinto a pergunta morrer em meus lábios.

— Encontrei um corpo.

TRÊS DIAS ANTES
30 de dezembro de 2018

Emma

Ano-Novo. Todos nós juntos pela primeira vez em séculos. Eu e Mark, Miranda e Julien, Nick e Bo, Samira, Giles e a filhinha deles de seis meses, Priya. E Katie.

Quatro dias no meio da floresta das Terras Altas escocesas em pleno inverno. Loch Corrin é o nome do lugar. Muito exclusivo: por ano, apenas quatro grupos têm permissão para se hospedar lá — o lugar é uma residência particular no resto do tempo. Essa época, como você deve imaginar, é a mais popular. Tive que reservar basicamente no primeiro dia de janeiro, assim que as reservas foram abertas. A mulher com quem falei me garantiu que, como nosso grupo ocuparia a maior parte das acomodações, provavelmente ficaríamos com o local só para nós.

Tiro o folheto da bolsa outra vez. Papel grosso, coisa cara. Um lago cercado de abetos, picos rosados surgindo ao fundo, embora já devam estar cobertos de neve a essa altura. De acordo com as fotos, a sede — a “Nova Sede”, como a propaganda a descreve — é uma grande construção envidraçada, ultramoderna, projetada por um arquiteto famoso que recentemente idealizou o pavilhão de verão da Serpentine Gallery. Acho que a ideia era que a construção parecesse se fundir com as águas calmas do lago, refletindo a paisagem e as linhas inflexíveis do grande cume, o Munro, erguendo-se atrás.

Ali perto, diminuídas pelo aspecto monumental da sede, é possível ver um pequeno aglomerado de casas que parecem se aconchegar umas às outras para se aquecer. São os chalés; há um para cada casal, mas vamos nos reunir para fazer as refeições na sede, a construção maior que fica bem no meio. A não ser pelo jantar típico das Terras Altas, na primeira noite — “uma degustação de produtos locais da estação” —, vamos preparar nossas refeições. Eles compraram comida para mim. Enviei uma longa lista com antecedência — trufas frescas, foie gras, ostras. Planejei um verdadeiro banquete para a noite de Ano-Novo e estou muito animada. Adoro cozinhar. A comida aproxima as pessoas, não é mesmo?

Esta parte do trajeto é especialmente tensa. De um lado, há o mar, e de tempos em tempos a terra recua, dando a impressão de que um único movimento em falso pode nos fazer despencar do precipício. A água é cinza-ardósia e parece agitada. Em uma campina no topo do penhasco, ovelhas se aglomeram em bando como se também tentassem se manter aquecidas. Dá para ouvir o vento; volta e meia ele se choca contra as janelas, e o trem estremece.

Todos os outros parecem ter pegado no sono, até mesmo a bebê Priya. Giles chega a roncar.

— Vejam — tenho vontade de dizer —, vejam como é bonito!

Planejei esta viagem, então tenho uma sensação de que ela me pertence — a preocupação de que as pessoas se divirtam, de que as coisas possam dar errado. E também uma espécie de orgulho dos pequenos sucessos… Como este: a beleza selvagem do lado de fora da janela

Não me surpreende que estejam todos dormindo. Acordamos muito cedo hoje de manhã para pegar o trem — Miranda pareceu particularmente irritada com o horário. E então todos começaram a beber, claro. Em algum ponto perto de Doncaster, Mark, Giles e Julien foram até o carrinho de bebidas, mesmo sendo onze da manhã. Todos ficaram alegremente embriagados, afetuosos e barulhentos (as pessoas sentadas perto não pareciam satisfeitas). Eles passam a impressão de conseguir retomar a camaradagem espontânea de muitos anos atrás, não importa quanto tempo tenha transcorrido desde que se viram pela última vez, sobretudo depois de algumas cervejas.

Katie já tenha dito que não é apenas por isso, mas por uma homofobia velada dos outros homens. Acima de tudo, Nick é amigo de Katie. Às vezes tenho a nítida impressão de que ele não gosta muito da gente, que nos tolera apenas por causa dela. Sempre suspeitei de que havia certa frieza entre Nick e Miranda, provavelmente porque ambos têm personalidade muito forte. No entanto, hoje de manhã eles pareciam unha e carne, passando apressados pela multidão na estação de trem, de braços dados, para comprar “suprimentos” para a viagem — o que se revelou ser uma garrafa bem gelada de Sancerre, que Nick tirou de uma bolsa térmica diante dos olhares um pouco invejosos dos que bebiam cerveja. — Ele tentou comprar aquelas latinhas de gim-tônica — nos contou Miranda —, mas não deixei. Temos que começar como queremos continuar.

Miranda, Nick, Bo e eu tomamos vinho. Até Samira decidiu beber uma tacinha, no último minuto, comentando:

— Várias pesquisas novas dizem que você pode beber quando está amamentando.

De início, Katie balançou a cabeça; ela estava bebendo uma garrafinha de água com gás.

— Ah, por favor, Kay-tee — implorou Miranda, com um sorriso charmoso, oferecendo-lhe uma taça. — Estamos de férias!

É difícil recusar quando Miranda tenta persuadi-lo a fazer qualquer coisa, então Katie aceitou, é claro, e tomou um gole tímido.

As bebidas ajudaram a suavizar um pouco o clima; tinha ocorrido uma pequena confusão com os assentos quando entramos no trem. Todos estavam cansados e irritados, tentando resolver a questão meio que de má vontade. Descobrimos que um dos nove assentos da reserva tinha de alguma forma sido marcado no vagão seguinte, completamente isolado. O trem estava cheio, por causa do feriado, então não havia possibilidade de rearrumar as coisas. — Obviamente é o meu — disse Katie.

certa forma, acho que posso dizer que hoje ela é mais intrusa do que eu.

— Ah, Katie — falei. — Me desculpe… Estou me sentindo uma idiota. Não sei como isso foi acontecer. Eu jurava que tinha reservado todos os lugares no meio, para tentar garantir que todo mundo ficasse junto. O sistema deve ter mudado os assentos. Olha só, pode sentar aqui… Eu vou para o outro vagão.

— Não — disse Katie, erguendo a mala, um pouco desajeitada, por cima da cabeça dos passageiros que já estavam em seus assentos. — Não faz o menor sentido. Eu não ligo.

O tom dela sugeria o contrário. Pelo amor de Deus, eu me peguei pensando. É só uma viagem de trem. Faz tanta diferença assim?

Os outros oito assentos ficavam uns de frente para os outros em torno de duas mesas no meio do vagão. Logo adiante, havia uma senhora sentada ao lado de um adolescente cheio de piercings — dois viajantes solitários. Parecia improvável que conseguíssemos fazer alguma coisa para resolver aquela confusão. Mas então Miranda se debruçou no banco para falar com a senhora, o cabelo brilhoso como uma cortina dourada, e fez sua mágica. Eu vi como a mulher ficou encantada com ela: a aparência, o sotaque lapidado — quase uma relíquia. Quando quer, Miranda consegue exercer um encanto poderoso. Todos que a conhecem já foram alvo de seus feitiços.

Ah, sim, disse a mulher, claro que ela trocaria de lugar. O vagão seguinte devia inclusive estar mais tranquilo.

— Vocês, jovens! — disse ela, embora nenhum de nós seja mais tão novo assim. — E eu prefiro mesmo me sentar virada para a frente.

— Obrigada, Manda — disse Katie, com um breve sorriso.

(Ela soou grata, mas o sentimento não parecia exatamente verdadeiro.)

Katie e Miranda são melhores amigas há séculos. Eu sei que elas não têm se visto muito ultimamente; Miranda diz que Katie anda ocupada com o trabalho. E como Samira e Giles estão presos na terra dos bebês, Miranda e eu temos passado mais tempo juntas do que nunca. Fazemos compras, saímos para beber. Fofocamos. Comecei a sentir que ela me aceitou como amiga, e não apenas como a namorada de Mark, que só entrou para o grupo quase uma década depois dos outros.

No passado, Katie estava lá para usurpar meu lugar. Ela e Miranda sempre foram inseparáveis, a tal ponto que pareciam mais irmãs do que amigas. Antes eu me sentia excluída por toda essa proximidade e todo o passado que as duas compartilhavam. A intimidade delas não deixava espaço para nenhuma amizade nova. Então, uma parte secreta de mim está… bem, muito satisfeita.

Realmente quero que todos se divirtam nesta viagem, que seja um sucesso. A viagem de Ano-Novo é um acontecimento importante. Eles fazem essa viagem todos os anos. Já faziam muito antes de eu entrar em cena. E acho que, de certa forma, planejar esta viagem é uma tentativa um tanto patética de provar que realmente faço parte do grupo. De dizer que eu deveria finalmente ser aceita em seu “círculo íntimo”. Era de se esperar que três anos — o tempo que Mark e eu estamos juntos — fossem o suficiente para isso. Mas, não. Eles todos se conhecem há séculos: de Oxford, onde viraram amigos.

É complicado — qualquer um que já tenha estado nesta situação vai entender — ser o último a entrar para um grupo de amigos de longa data. Parece que vou ser para sempre a garota nova, não importa quantos anos se passem. Sempre serei a última a ter entrado, a intrusa.

Olho novamente para o folheto no meu colo. Talvez esta viagem — planejada com tanto cuidado — mude as coisas. Prove que eu sou um deles. Estou muito animada.

Katie

Então estamos aqui, finalmente. E, no entanto, tenho uma súbita vontade de estar de volta à cidade. Até minha mesa no escritório seria uma opção melhor. A estação de Loch Corrin é risivelmente minúscula. Uma plataforma solitária, com a encosta de aço da montanha se erguendo por trás, o topo encoberto pelas nuvens. O letreiro-padrão da National Rail parece uma piada. A plataforma está coberta por uma fina camada de neve, nem uma única pegada perturbando o branco perfeito. Penso na neve de Londres — em como ela fica suja quase imediatamente depois de cair, pisoteada por milhares de solas. Se eu precisasse de mais alguma prova de como estamos distantes da cidade, seria esta: o fato de que a neve não foi pisada por ninguém, muito menos retirada. Totó, acho que não estamos mais no Kansas. Passamos por quilômetros e quilômetros desta paisagem selvagem quando estávamos no trem. Não me lembro da última vez que vimos uma estrutura construída pelo homem antes desta, muito menos uma pessoa.

Caminhamos com cautela pela plataforma congelada — dá para ver o brilho do gelo negro em meio à neve — e entramos na minúscula estação. Parece completamente deserta. Eu me pergunto com que frequência a SALA DE ESPERA, com seu letreiro pintado e sua estante de livros, é usada. Passamos por uma cabine com um guichê de vidro sujo: uma bilheteria, ou um pequeno escritório. Dou uma espiada, fascinada com a ideia de haver um escritório bem aqui no meio de toda essa natureza selvagem, e fico ligeiramente surpresa quando me dou conta de que não está vazio. Na verdade, tem alguém sentado lá dentro, na penumbra. Consigo ver apenas a silhueta: ombros largos, curvados, e então o breve reluzir de olhos que nos observam enquanto passamos.

— O que foi? — Diante de mim, Giles se vira.

Com a surpresa, devo ter feito algum barulho.

— Tem alguém lá dentro — sussurro. — Um guarda ferroviário ou algo do tipo… Só tomei um susto.

Giles espia pelo vidro do guichê.

— Tem razão. — Ele finge tocar na borda do chapéu imaginário em sua cabeça careca. — Uma bela manhã para vocês — diz ele, com um sorriso e um sotaque irlandês.

Giles é o palhaço do grupo: adorável, bobo — às vezes até demais.

— A gente está na Escócia, seu idiota — diz Samira, carinhosamente.

Esses dois fazem tudo carinhosamente. Nunca tenho tanta consciência de como estou encalhada quanto nos momentos em que estou com eles.

O homem no guichê não responde de início. E então, lentamente, ergue uma das mãos em uma espécie de cumprimento.

Há um Land Rover esperando por nós: modelo antigo, coberto de lama. Vejo a porta se abrir, e um homem alto sai do carro.

— Deve ser o guarda-caça — diz Emma. — No e-mail dizia que ele viria nos buscar.

Ele não parece um guarda-caça, penso. Mas o que eu estava esperando? Acho que no fundo eu imaginava que ele seria velho. Mas ele provavelmente tem a nossa idade. Deve ser o porte: os ombros, a altura, característicos de uma vida ao ar livre, e o cabelo escuro e desgrenhado. Quando nos recepciona, com um murmúrio baixo, sua voz sai um pouco rouca, como se não fosse usada com muita frequência

Percebo que ele nos olha de cima a baixo. Acho que não gosta muito do que vê. Será desdém em sua expressão conforme ele observa a imaculada jaqueta impermeável de Nick, as galochas de Samira e a gola de pele de raposa de Miranda? Se for, não quero nem imaginar o que ele acha das minhas roupas de moradora da cidade e da minha mala Samsonite de rodinhas. Quase não pensei no que coloquei na mala, de tão distraída que estava.

Observo enquanto Julien, Bo e Mark tentam ajudá-lo com a bagagem, mas ele os dispensa. Do lado do guarda-caça, eles parecem uns engomadinhos no primeiro dia de aula. Aposto que não gostam muito do contraste.

— Acho que vamos ter que fazer duas viagens — diz Giles. — Não vai dar para acomodar com segurança todos nós no carro.

O guarda-caça ergue as sobrancelhas.

— Como quiserem.

— Vocês, mulheres, vão na frente — diz Mark, em uma tentativa de cavalheirismo. — Nós vamos depois.

Eu espero, constrangida, que ele faça uma piada sobre Nick e Bo serem mulheres honorárias. Por sorte isso não parece lhe ocorrer — ou ele segura a língua. Estamos todos muito bem-comportados hoje, no modo “feriado com os amigos”, mais tolerante.

Faz muito tempo que não ficamos todos juntos assim — talvez desde o réveillon passado. Sempre me esqueço como é. Incorporamos com muita rapidez, com muita facilidade, nossos antigos papéis, aqueles que sempre desempenhamos neste grupo. Eu sou a reservada — em comparação com Miranda e Samira, com quem eu dividia apartamento, as extrovertidas. Volto a ser quem era. Todos nós voltamos. Tenho certeza de que Giles, por exemplo, não chega nem perto de ser tão palhaço na emergência médica na qual trabalha como residente sênior. Entramos no Land Rover. O interior do carro cheira a cachorro molhado e terra. Imagino que o guarda-caça tenha o mesmo cheiro. Miranda se senta na frente, ao seu lado. De tempos em tempos sinto uma lufada de seu perfume: forte, defumado, misturando-se estranhamente ao aroma terroso. Só ela era capaz de usar algo assim. Viro a cabeça para respirar o ar fresco que entra pela janela aberta.

De um lado da estrada, uma encosta bastante íngreme desce em direção ao lago. Do outro, embora ainda não esteja escuro, o negrume da fl oresta já parece impenetrável. A estrada não passa de uma trilha, esburacada e bem estreita, de forma que um movimento em falso pode nos atirar na água lá embaixo ou de encontro aos arbustos. Chacoalhamos pelo caminho, e de repente o carro freia com força. Todos somos atirados para a frente e em seguida de volta para nossos assentos.

— Merda! — grita Miranda, enquanto Priya, que passara o caminho todo em silêncio, começa a berrar nos braços de Samira.

Os faróis iluminam um veado na trilha diante de nós. Deve ter saído das sombras sem que percebêssemos. A enorme cabeça, coroada por uma vasta galhada de aparência ao mesmo tempo majestosa e letal, parece quase desproporcional ao corpo esbelto e acastanhado. À luz dos faróis, seus olhos cintilam com um verde estranho e assustador. Por fim, ele para de nos encarar e se afasta com elegância, sem pressa, em direção às árvores. Ponho a mão no peito e sinto meu coração batendo forte e acelerado.

— Uau — sussurra Miranda. — O que foi aquilo?

O guarda-caça se vira e olha para ela, inexpressivo.

— Um veado.

— Eu quis dizer — retruca ela, um pouco agitada, o que é incomum —, eu quis dizer que tipo de veado.

— Vermelho — responde o guarda-caça. — Um veado-vermelho.

Ele se volta novamente para a estrada. Fim de papo.

Miranda gira o corpo para nos olhar por cima do encosto do assento e murmura sem emitir som:

— Ele é gato, não é?

Samira e Emma fazem que sim com a cabeça. Então, em voz alta, ela diz:

— Você não acha, Katie?

Ela se inclina e cutuca meu ombro, um pouco forte demais.

— Não sei — respondo.

Observo a expressão impassível do guarda-caça no espelho retrovisor. Será que percebeu que estamos falando dele? Caso tenha percebido, não dá nenhum sinal de que esteja ouvindo, mas mesmo assim é constrangedor.

— Ah, mas você sempre teve um gosto estranho para homens, Katie — diz Miranda, rindo.

Miranda nunca gostou de verdade de nenhum dos meus namorados. Um sentimento que, curiosamente, costumava ser mútuo: eu com frequência tinha que defendê-la quando estava com eles.

— Acho que você os escolhe — disse ela certa vez — para serem o anjinho que fica no seu ombro, dizendo: ela não é uma boa companhia, essa aí. Fique longe dela.

Mas Miranda é minha amiga mais antiga. E nossa amizade sempre superou qualquer relacionamento romântico — quer dizer, da minha parte. Miranda e Julien estão juntos desde a faculdade.

Eu não sabia direito o que pensar de Julien quando ele entrou na nossa vida, no fim do primeiro ano. Nem Miranda. Ele era uma espécie de anomalia, em comparação com seus ex-namorados. Devo admitir que houvera apenas um ou dois que servissem de comparação, ambos projetos como eu, nem de longe tão bonitos e sociáveis quanto ela, caras que pareciam viver em um estado permanente de incredulidade por terem sido escolhidos. Mas Miranda sempre gostou de um projeto.

Então Julien parecia óbvio demais para ela, com sua predileção por pobres e desamparados. Ele era impetuosamente bonito, autoconfiante demais. E essas foram palavras dela, não minhas.

— Ele é muito arrogante — disse ela. — Mal posso esperar para fazê-lo engolir essa atitude da próxima vez que ele vier para cima de mim.

Eu me perguntava se ela realmente não percebia como ele espelhava com precisão a arrogância e a autoconfiança dela.

Julien continuou tentando. E todas as vezes ela o repelia. Ele vinha falar conosco — com ela — em um pub. Ou “esbarrava” nela por acaso depois de uma aula. Ou entrava de um jeito casual no bar da sala comum dos estudantes do primeiro ano da nossa faculdade, supostamente para encontrar uns amigos, mas passava a maior parte da noite sentado à nossa mesa, dando em cima de Miranda com uma franqueza constrangedora.

Mais tarde entendi que, quando Julien quer muito alguma coisa, ele não deixa que nada fique no caminho. E ele queria Miranda. Muito.

No fim, ela se rendeu à realidade da situação: também o queria. Quem não ia querer? Ele era lindo, ainda é, talvez ainda mais, agora que a vida aparou um pouco sua perfeição e sua desenvoltura. Eu me pergunto se seria biologicamente possível não desejar um homem como Julien, ou pelo menos não sentir atração por ele.

Eu me lembro de quando Miranda nos apresentou, no Baile de Verão — quando enfim começaram a namorar. Eu sabia exatamente quem ele era, é claro. Tinha testemunhado a saga toda: a caça dele a Miranda, as recusas dela, as tentativas intermináveis dele… até o momento em que ela aceitou o inevitável. Eu sabia muitas coisas a seu respeito. A faculdade que ele frequentava, o que estudava, o fato de que jogava rúgbi. Eu sabia tanto que tinha quase me esquecido de que ele não tinha ideia de quem eu era. Então, quando ele me deu um beijo na bochecha e disse “É um prazer conhecê-la, Katie” — de forma bastante formal, apesar de estar bêbado —, pareceu uma grande piada. A primeira vez que Julien dormiu na nossa casa — Miranda, Samira e eu moramos juntas no segundo ano da faculdade —, dei de cara com ele saindo do banheiro com uma toalha amarrada na cintura. Eu me esforcei tanto para parecer normal, para não olhar seu peito nu, os ombros largos e musculosos ainda molhados e reluzentes depois do banho, que falei:

— Oi, Julien.

Ele pareceu segurar a toalha com um pouco mais de força.

— Olá. — Ele franziu a testa. — Ah… isso é um pouco constrangedor. Acho que não sei seu nome.

Eu me dei conta do meu erro. Ele tinha esquecido quem eu era, provavelmente tinha esquecido inclusive que me conhecera.

— Ah — falei, estendendo a mão. — Eu sou a Katie. Ele não apertou minha mão, e percebi que cometi outro erro: fui formal demais, esquisita demais. Em seguida, me ocorreu que também poderia ser porque ele segurava a toalha com uma das mãos e a escova de dentes com a outra.

— Desculpe. — Então ele abriu aquele sorriso encantador e ficou com pena de mim. — E aí. O que você fez, Katie?

Eu o encarei.

— Como assim?

Ele riu.

— Que nem no livro — disse ele. — O que Katy fez. Sempre gostei desse livro, mas não sei se deveria.

Pela segunda vez ele abriu aquele sorriso, e por um instante pensei ver parte do que Miranda enxergava nele.

Essa é a questão quando se trata de pessoas como Julien. Nas comédias românticas, alguém tão bonito quanto ele provavelmente seria escalado para interpretar o canalha que talvez se regenerasse e se arrependesse de seus pecados no fim. Miranda seria a rainha do baile escrota que guardava um segredo sombrio. A menina insignificante e tímida — eu — seria a personagem boa, inteligente e totalmente incompreendida que no fim das contas salvaria o dia. Mas as coisas não são assim na vida real. Pessoas como eles não precisam ser desagradáveis. Por que eles dificultariam a própria vida desse jeito? Eles podem ser pessoas incrivelmente encantadoras. E pessoas como eu, insignificantes e tímidas, nem sempre se revelam as heroínas da história. Às vezes temos nossos próprios segredos sombrios.

fim da amostra…


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