Livro ‘A Vida Só é Real Quando Eu Sou’ por George Ivanovitch Gurdjieff

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Os fragmentos incompletos que compõem a Terceira Série de Gurdjieff são tirados principalmente do material da sua própria vida. De ascendência grega e armênia, ele nasceu em Alexandropol, perto da fronteira da Rússia com a Turquia supostamente em 1877. A guerra turco-russa estava em curso e, enquanto era ainda uma criança, sua família mudou-se para a cidade de Kars, que tinha caído nas mãos dos russos. Desde o começo Gurdjieff distinguiu-se dos outros meninos na escola por seu questionamento insaciável. Procurou orientação de pessoas mais velhas entre as inúmeras seitas da região, leu vorazmente e, em tenra idade, deixou seu lar em busca de homens mais sábios ou irmandades.

Páginas: 214 páginas; Editora: Horus (1 de janeiro de 2000); ISBN-10: 8586204021; ISBN-13: 978-8586204029

Biografia do autor: George Ivanovich Gurdjieff (866 – 1877 – 29 de outubro de 1949) foi um filósofo russo, místico, professor espiritual e compositor de ascendência armênia e grega, nascido em Alexandropol, Império Russo (agora Gyumri, Armênia). Gurdjieff ensinou que a maioria dos humanos não possui uma consciência unificada e, portanto, vive suas vidas em um estado de “sono acordado” hipnótico, mas que é possível despertar para um estado mais elevado de consciência e alcançar o pleno potencial humano. Gurdjieff descreveu um método tentando fazê-lo, chamando a disciplina de “O Trabalho” ou “o Sistema”. De acordo com seus princípios e instruções, o método de Gurdjieff para despertar a consciência une os métodos do faquir, monge e iogue, e assim ele se referiu a ele como o ” Quarto Caminho “.

Leia trecho do livro

A vida só é real
quando “Eu sou”

Do Todo e de Tudo
Terceira Série

George Ivanovitch

Gurdjieff

Livro 'A vida só é real quando Eu Sou' por George Ivanovitch Gurdjieff
GURDJIEFF
Foto tirada a bordo do navio “Paris” quando da sua chegada em Nova York em 13 de janeiro de 1924 – (United Press International)

“Qualquer pessoa que se interesse por minhas
obras deve abster-se rigorosamente de lé-las
numa ordem diferente daquela que está indicada;
em outras palavras, nunca deveria ler nada
de meus novos escritos, antes de conhecer
bem minhas obras anteriores.”


G. I. GURDJIEFF

Do todo e de tudo

Dez livros em três séries

Primeira Série em três livros:
Relatos de Belzebu a seu neto
Crítica objetivamente imparcial da vida dos homens


Segunda Série em dois livros:
Encontros com homens notáveis

Terceira Série em cinco livros:
A vida só é real quando “Eu sou”

O conjunto, exposto segundo princípios inteiramente novos de raciocínio lógico, tende a realizar três tarefas fundamentais:

Primeira Série

Extirpar do pensar e do sentimento do leitor, sem piedade e sem a menor concessão, as crenças e opiniões, arraigadas há séculos no psiquismo dos homens, a propósito de tudo que existe no mundo.

Segunda Série

Fazer conhecer o material necessário a uma reedificação e provar sua qualidade e solidez.

Terceira Série

Favorecer, no pensar e no sentimento do leitor, a eclosão de uma representação justa, não fantasiosa, do mundo real, em lugar do mundo ilusório que ele percebe.

ATerceira Série”, obra inacabada, de G. I. Gurdjieff devia constar originalmente de cinco livros.

Segundo os testemunhos de seus alunos mais chegados, que trabalharam muitos anos a seu lado, só alguns capítulos parecem ter sido redigidos numa forma mais ou menos definitiva.

A Introdução e as cinco Conferências — das quais a quarta está claramente inacabada — eram destinadas ao primeiro livro.

Não há qualquer vestígio do quinto livro, tampouco do segundo e do terreiro, que deviam incluir, entre outros, os três capítulos anunciados em Encontros com homem notáveis (páginas 189, 218 e 237). Se nunca foram escritos, ou se o autor os destruiu mais tarde, como ele deixou entrever em várias ocasiões… Nunca se saberá.

Quanto ao quarto livro, tudo leva a crer que seria constituído por dois capítulos: o Prólogo (que, depois de muitas deliberações, preferimos finalmente publicar no começo da obra, onde mantém seu pleno significado) e o texto incompleto, que devia servir-lhe de conclusão, intitulado O mundo exterior e o mundo interior do homem.

Deve-se assinalar que, no curso da terceira conferência, Gurdjieff fez sua secretária ler duas passagens do último capítulo da Primeira Série.

O leitor pode achar estranho descobrir nelas uma versão um pouco diferente da que conheceu em Relatos de Belzebu a seu neto. Quando se recordar que Relatos foi publicado em inglês em 1950, alguns meses depois da morte de Gurdijieff, ele encontrará nesse texto, datado de 1930, uma confirmação do contínuo trabalho de revisão e polimento ao qual o autor várias vezes faz alusão nesta obra.

Ainda que os textos aqui apresentados só constituam um esboço fragmentado e apenas delineado do que G. I. Gurdjieff propunha-se a escrever sob o título da Terceira Série: A vida só é real quando “Eu sou”, sentimo-nos obrigados a atender ao pedido de nosso parente em seu desejo de compartilhar, com seus semelhantes, tudo que havia aprendido sobre o mundo interior do homem.

Cremos seguir fielmente suas intenções quando escreveu sua Introdução e responder, dessa maneira, à expectativa do numeroso público interessado em seu ensinamento.

Pelos Herdeiros

VALENTIN ANASTASIEFF

Prefácio

“Meu último livro, por meio do qual quero compartilhar com meus semelhantes, criaturas de Nosso Pai Comum, quase todos os segredos do mundo interior do homem que permaneceram até então ignorados e dos quais tomei conhecimento acidentalmente…

Gurdjieff escreve essas linhas em 6 de novembro de 1934 e se entrega de imediato ao trabalho. Durante vários meses se consagra inteiramente à elaboração desta obra.

De repente, em 2 de abril de 1935, para definidamente de escrever.

Por que, perguntarão, ele abandona dessa maneira seu projeto, para nunca mais voltar a ele?

Por que deixa inacabada esta Terceira Série e, segundo parece, renuncia a publicá-la?

Não é possível responder a essas perguntas se não se esteve engajado no trabalho intenso que Gurdjieff empreendeu com um certo número de alunos durante os últimos quinze anos de sua vida, aportando-lhes diariamente, condições necessárias para um estudo direto e uma efetiva colocação em prática de suas ideias.

Ele deixa bem claro, aliás, na última página de Relatos de Belzebu a seu neto, que só permitirá o acesso à Terceira Série àqueles que forem selecionados como “capazes de compreender as verdades objetivas” que ele coloca em evidência nesta Série.

Gurdjieff se dirige ao homem de hoje, àquele que já não sabe reconhecer a verdade através das diversas formas sob as quais ela lhe foi revelada desde as épocas mais remotas a esse homem profundamente insatisfeito, que se sente isolado, sem uma razão de ser.

Mas, como despertar nele uma inteligência capaz de discernir o real do ilusório?

Segundo Gurdjieff, alguém só pode aproximar-se da verdade quando todas as partes que constituem o ser humano o pensamento, o sentimento e o corpo — são tocadas com a mesma força e da única maneira que convém a cada uma delas, sem isto o desenvolvimento continuará sendo unilateral e mais cedo ou mais tarde deverá deter-se.

Sem uma compreensão efetiva desse princípio, todo trabalho sobre si estará condenado a desvirtuar-se. As condições essenciais serão falsamente interpretadas e a pessoa verá repetir-se mecanicamente as formas de esforço que não ultrapassarão o nível ordinário.

Gurdjieff sabia servir-se de cada circunstância da vida para fazer sentir a verdade.

Eu o vi em ação, atento tanto às possibilidades de compreensão de seus diferentes grupos como às dificuldades subjetivas de cada pessoa. Eu o vi acentuar deliberadamente um aspecto do conhecimento, depois um outro, segundo um plano bem determinado — atuando, ora por intermédio de um pensamento, que estimulava a inteligência até abri-la a uma visão inteiramente nova, ora por intermédio de um sentimento que exigia o abandono de todo artifício em proveito de uma sinceridade imediata e total, ou, ainda, através do despertar e da colocação em movimento de um corpo que respondia livremente ao que lhe era pedido servir.

Sendo assim, qual era sua intenção ao escrever a Terceira Série?

O papel que ele lhe atribuía era indissociável de sua maneira de ensinar. No preciso momento em que considerava necessário, fazia ler em voz alta, em sua presença, tal capítulo ou tal passagem, proporcionando a seus alunos sugestões ou imagens que de repente os colocavam frente a si mesmos e às suas contradições interiores.

Era um caminho que não os isolava da vida, mas que passava pela vida, um caminho que levava em conta o sim e o não, todas as oposições, todas as forças contrárias, um caminho que os fazia compreender a necessidade de lutar para manter-se acima da batalha sem deixar de participar dela. A pessoa se encontrava diante de um umbral a transpor e pela primeira vez sentia a exigência de uma sinceridade total. A passagem podia parecer dura, mas o que se abandonava já não tinha mais o mesmo atrativo. Diante de certas hesitações, a imagem que Gurdjieff dava de si mesmo nos obrigava a avaliar o que era necessário assumir como compromisso e a que bem era necessário renunciar para não se desviar do caminho.

Aí, já não era mais o ensino de uma doutrina, mas sim a ação encarnada de um conhecimento.

A Terceira Série, mesmo incompleta e inacabada, revela a ação do mestre, daquele que, unicamente por sua presença, obriga você a se definir, a saber o que você quer.

Antes de morrer, Gurdjieff me chamou para dizer-me Como ele via a situação no seu conjunto e me deu certas instruções.

“Publique à medida que estiver segura de que chegou o momento. Publique a Primeira e a Segunda Séries. Mas o que é essencial, antes de tudo, é preparar um núcleo de pessoas capazes de responder à demanda que surgirá.

Enquanto não houver um núcleo responsável, a ação das ideias não ultrapassará um certo umbral.

Isto levará tempo… muito tempo mesmo.

Não é necessário publicar a Terceira Série.

Ela estava destinada a outros fins.

Entretanto, se um dia você julgar que deve fazê-lo, publique-a.

A tarefa era evidente. Desde que a Primeira Série fosse publicada, seria necessário trabalhar sem trégua para formar um núcleo capaz de fazer viver, por seu nível de objetividade, de devoção e de exigência em relação a si mesmo, a corrente que havia sido criada.

JEANNE DE SALZMANN

Prólogo

Eu sou… Em que então se converteu aquela sensação inteira da totalidade de mim mesmo, que eu experimentava antigamente assim que pronunciava estas palavras em estado de lembrança de si?

Será possível que essa aptidão interior, adquirida ao preço de tantas renúncias e de automortificações de todo tipo, hoje, quando sua ação sobre meu ser é mais indispensável do que o próprio ar que respiro, tenha desaparecido sem deixar vestígios?

Não, não pode ser.

Com certeza existe outra coisa… ou então tudo, no mundo da Razão, é ilógico.

Não — o poder de fazer esforços conscientes e assumir um sofrimento voluntário ainda não se atrofiou em mim.

Todo meu passado e tudo que me aguarda exigem que eu seja, ainda.

Eu quero… eu ainda serei.

Tanto mais porque meu ser é necessário não só para meu egoísmo pessoal, mas para o bem de toda a humanidade. Meu ser é realmente mais necessário aos homens do que todas as suas satisfações e toda a sua felicidade atual.

Eu quero ser ainda… Eu sou ainda.

Pela insondável lei das associações do pensar humano, no momento de começar a escrever este livro que constituirá a Terceira Série, denominada instrutiva, de minhas obras, série que, aliás, será a última — e por meio da qual quero compartilhar com meus semelhantes, criaturas de Nosso Pai Comum, quase todos os segredos do mundo interior do homem que até agora permaneceram ignorados e dos quais tomei conhecimento acidentalmente — , acabam de ressurgir em meu consciente aquelas dramáticas reflexões que se fizeram em mim, num estado próximo ao delírio, há exatos sete anos, neste mesmo dia e, parece-me até, nesta mesma hora.

Esse fantástico monólogo se impôs a mim em 6 de novembro de 1927, de manhã bem cedo, num dos cafés noturnos de Montmartre, em Paris, no momento em que, cansado até o esgotamento por meus “pensamentos negros”, preparava-me para voltar para casa e tentar, uma vez mais, dormir, ainda que fosse um pouco.

Nessa época, minha saúde estava longe de ser boa, mas naquela manhã sentia-me particularmente mal; meu mal-estar devia-se ao fato de que durante as duas ou três últimas semanas não dormira mais do que uma ou duas horas por noite, e na noite anterior não havia podido fechar o olho.

A verdadeira razão dessas insônias e do desarranjo geral de quase todas as funções importantes do meu organismo devia-se ao fluxo ininterrupto de pesados pensamentos que fluíam por meu consciente sobre a situação aparentemente sem saída em que, de repente, me encontrava.

Para explicar, ainda que aproximadamente, em que consistia essa situação sem saída, devo dizer, antes de tudo, o seguinte:

Durante mais de três anos, submetendo-me a um esforço constante, havia trabalhado noite e dia nos livros que decidira publicar.

E isto havia me exigido um constante esforço, porque o acidente de automóvel que sofrera justo antes de começar a escrever essas obras tinha me deixado muito doente e debilitado. Nada, portanto, me facilitava qualquer trabalho ativo.

Contudo, eu não me poupara e, apesar do meu estado, tinha trabalhado intensamente, impulsionado por uma “ideia fixa” que se formara em meu consciente depois do acidente, quando me dei conta da situação em que me encontrava.

“Visto que não consegui, quando estava cheio de força e saúde, introduzir, de maneira prática, na vida dos homens as verdades que elucidara para seu bem, tenho de, custe o que custar, conseguir fazê-lo antes da minha morte, ao menos em teoria!”

Tendo esboçado em linhas gerais, durante o primeiro ano, o material destinado à publicação, resolvi escrever três séries de livros.

Com o conteúdo da Primeira Série, eu queria conseguir destruir as convicções arraigadas no consciente e no sentimento dos homens, convicções, para mim, falsas e absolutamente contrárias à realidade.

Com o conteúdo da Segunda Série: provar que existem outros caminhos para a percepção e o conhecimento da realidade e indicar sua direção.

Com o conteúdo da Terceira Série: fazer conhecer as possibilidades que havia descoberto para entrar em contato com a realidade e fundir-se com ela à vontade.

Com essa intenção, desde o segundo ano me dispus a retomar todo esse material para dar-lhe uma forma acessível à compreensão geral.

Antes dos acontecimentos de que estou falando, já havia terminado todos os livros da Primeira Série e trabalhava nos da Segunda Série.

Como tinha a intenção de publicar os livros da Primeira Serie a partir do ano seguinte, decidi, ao mesmo tempo em que trabalharia nos livros da Segunda Série, organizar de maneira regular leituras públicas dos livros da Primeira Série.

E decidi agir assim para poder dar-me conta, antes de enviar os livros para o prelo, do efeito que produziriam sobre homens de diversos tipos, pertencentes a todos os níveis de inteligência, as diferentes passagens de minhas obras, de acordo com a forma que lhes havia dado, para poder revisá-las.

Com esse fim, convidava a meu apartamento em Paris diversas pessoas que por sua individualidade correspondiam ao projeto que havia planejado. Então, na presença delas, alguém lia em voz alta o capítulo que me propunha corrigir.

Nessa época, minha residência principal e de toda minha família era em Fontainebleau; mas, como ia frequentemente a Paris, precisava manter um apartamento lá.

Durante tais reuniões, enquanto observava esses ouvintes de tipos diversos, escutando a leitura de minhas obras já prontas para serem publicadas, aos poucos se estabeleceu em mim a seguinte convicção definitiva:

A forma adotada para expor as minhas ideias só poderia ser compreendida por aqueles leitores que já tivessem um certo conhecimento da forma particular de meu pensar.

Em compensação, os outros leitores, aqueles pelos quais havia me mortificado dia e noite durante todo esse tempo, não compreenderiam quase nada.

E foi durante esses leituras públicas que, pela primeira vez, dei-me conta de que forma esses livros deveriam ser escritos para que fossem acessíveis a compreensão de cada um.

Quando tudo isto tornou-se claro, porém, ergueu-se diante de mim, em toda sua grandeza e todo seu esplendor, a questão da minha saúde.

Primeiro passaram por meu consciente os seguintes pensamentos:

“Se tudo o que escrevia dia e noite no decorrer de três anos de um trabalho quase incessante, tiver de escrevê-lo de novo de uma forma acessível a compreensão de todo leitor, isto me tomará, pelo menos, o mesmo tempo. Também precisarei de tempo para redigir a Segunda e a Terceira Série, e mais tempo ainda para introduzir na vida dos homens a essência de minhas obras…

“Onde encontrar todo esse tempo?

“Se meu tempo dependesse só de mim, naturalmente tornaria a escrever tudo, ainda mais que teria então, desde o princípio, a segurança de poder morrer tranquilo, porque, sabendo como deveria escrever, teria todo o direito de esperar que a meta principal de minha vida seria efetivamente realizada, ainda que fosse depois de minha morte.

“Porém, as circunstâncias em que minha vida transcorreu fazem com que meu próprio tempo já não dependa mais de mim, mas exclusivamente do caprichoso anjo Gabriel.

“De fato, restam-me talvez uns ou dois anos de vida, ou no máximo três…

“E que me reste tão pouco tempo de vida, cada um dos especialistas, entre as centenas que me conhecem, pode hoje confirmá-lo.

“Aliás eu próprio sempre fui considerado como um diagnosticador acima da média e não sem razão: não foi em vão que durante toda minha vida tive que conversar com milhares de candidatos a uma próxima partida para o outro mundo…

“Dois ou três anos… Para ser franco, não seria natural que fosse de outra maneira. Pois há muito tempo os processos de involução da minha saúde são muito mais rápidos e intensos que os processos de evolução.

“É um fato: todas as funções do meu organismo que sempre foram ‘de aço’, como diziam meus camaradas, aos poucos degeneraram em consequência de uma constante sobrecarga de trabalho, até o ponto em que, hoje em dia, nenhuma delas trabalha mais ou menos corretamente.

“Não há, nisto, nada de surpreendente… Ainda que não se leve em consideração a quantidade de acontecimentos extraordinários que se sucederam em minha vida, constituída por acaso de maneira tão singular, basta recordar a estranha e incompreensível fatalidade que me perseguiu e fez com que, em três oportunidades e em condições completamente diferentes, eu fosse ferido, e cada vez quase mortalmente, por uma bala perdida.

“Por si só, as consequências desses três incidentes, que deixaram em mim marcas indeléveis, teriam sido suficientes para me conduzir, há muito, ao meu último suspiro.”

O primeiro desses três acontecimentos incompreensíveis aconteceu em 1896, na ilha de Creta, um ano antes da guerra greco-turca.

Quando eu ainda estava inconsciente, uns gregos desconhecidos me haviam transportado, não sei por que, de lá para Jerusalém.

De Jerusalém, tendo recobrado totalmente a consciência, mas ainda com uma saúde vacilante, parti para a Rússia em companhia de outros jovens da minha espécie,”buscadores de pérolas numa estrumeira”. Não viajávamos por mar, como teriam feito as pessoas normais, mas por terra, a pé.

Esses deslocamentos, que duraram aproximadamente quatro meses, através de regiões quase impraticáveis, quando minha saúde ainda era precária, deviam naturalmente implanta em meu organismo, para o resto da vida, certos “focos” de ação crônica perniciosa.

Além disso, durante toda essa louca aventura, meu organismo teve o prazer de receber a visita, e algumas vezes até hospedar por longo tempo, “encantadores hóspedes locais” de caráter específico, entre os quais tive a honra de acolher o famoso “escorbuto curdo”, a não menos famosa “disenteria armênia” e, é claro, a grande favorita, a dama dos mil nomes, que também é conhecida por “gripe espanhola”.

Depois disso, de bom ou mau grado, tive que passar vários meses na Transcaucásia sem poder sair de casa; logo retomei minhas viagens para regiões selvagens, sempre animado pela “ideia fixa” do meu mundo interior.

Começaram de novo todo tipo de tensões e provações excessivas, e meu desafortunado organismo teve o prazer de dar asilo a célebres especialidades de caráter local.

Entre os novos visitantes figuravam dessa vez os honorabilíssimos “bedinka de Achkhabad”, a “malária bucariana”, a “hidropisia tibetana”, a “disenteria beluchistana”… e outros convidados, que por onde passam deixam para sempre seu cartão de visitas.

Mais tarde, ainda que meu organismo estivesse imunizado contra todos esses “encantos” locais, suas consequências não puderam se apagar totalmente, devido à tensão constante em que eu vivia.

Assim passaram-se vários anos e depois veio para o meu desafortunado corpo físico o ano fatídico de 1902, quando ele foi atingido por uma segunda bala maligna.

Isto se passou nas majestosas montanhas do Tibete, um ano antes da guerra anglo-tibetana.

Dessa vez, o que permitiu ao meu infeliz corpo físico escapar aos golpes do destino foi a presença a meu lado de cinco bons médicos, três de formação europeia e dois especialistas em medicina tibetana, sendo que, todos eles, me amavam sinceramente.

Após três ou quatro meses passados em estado de inconsciência, minha vida ativa recomeçou, sempre feita de tensão física e de estratégia psíquica pouco comuns, mas um ano depois ela foi novamente interrompida por um terceiro, golpe do destino.

Foi em fins de 1904, na Transcaucásia, na região do túnel de Tchiatursk.

A propósito dessa terceira bala perdida, não posso deixar de dizer aqui, abertamente, para o prazer de alguns de meus conhecidos atuais e o desgosto de outros, que essa terceira bala me foi “expedida”, inocentemente é claro, por um “simpático engraçadinho” que pertencia a qualquer um dos dois grupos de pessoas, umas dominadas pela psicose revolucionária, outras submetidas à influência de chefes sedentos de poder, arrivistas casuais, e que, todos juntos, assentaram naquela época, claro que inconscientemente, as fundações do que constitui, pelo menos atualmente, a realmente “grande Rússia”.

Isto ocorreu durante uma escaramuça entre os chamados “exércitos russos”, compostos principalmente por cossacos, e os que eram chamados “Goulis”.

Visto que depois desse terceiro ferimento e até hoje alguns acontecimentos de minha vida apresentam entre si, como notei recentemente, um vínculo estranho e ao mesmo tempo muito definido, como se obedecessem à mesma lei física, quero descrever alguns dos mais significativos.

Mas, voltemos um instante a esse 6 de novembro de 1927: depois de haver finalmente dormido, eu me pus a pensar na situação que se criara, quando surgiu em meu consciente uma ideia que na época me pareceu totalmente absurda; ora, depois de ter constatado inesperadamente certos fatos até então ignorados por mim, e ao compreender seu sentido no decorrer destes últimos sete anos, hoje estou completamente convencido de que tal ideia era justa.

Quando aconteceu esse terceiro ferimento, eu só tinha a meu lado um homem e ele estava muito fraco. Como eu soube mais tarde, ele se deu conta de que as condições do lugar poderiam provocar efeitos muito indesejáveis para mim. Com toda pressa ele conseguiu um burro, sobre o qual me colocou, desfalecido, e me levou para longe, para a montanha.

Lá, instalou-me na primeira gruta que encontrou e partiu em busca de socorro.

Acabou por descobrir um médico-barbeiro e, tendo conseguido curativos, voltou com ele tarde da noite.

Não encontraram ninguém na gruta, o que os deixou estupefatos, pois era impossível que eu tivesse saído sozinho ou que outra pessoa tivesse podido chegar até lá; quanto aos animais selvagens, eles sabiam muito bem que naquela região só havia cervos e veados.

Notaram sinais de sangue, mas não puderam segui-los porque a noite já tinha caído.

Foi somente ao amanhecer, após terem passado toda a noite em buscas infrutíferas na mata fechada, já à beira de um ataque de nervos, que eles me descobriram entre os rochedos, ainda vivo, dormindo num sono aparentemente tranquilo.

O barbeiro foi imediatamente procurar certas raízes com as quais me fez um primeiro curativo; depois, explicou a meu amigo o que ele teria a fazer, e logo foi embora.

Tarde da noite ele voltou, acompanhado por dois amigos, Hevsuros, com uma charrete puxada por duas mulas.

Na mesma noite me transportaram mais acima na montanha e me colocaram mais uma vez numa gruta, muito maior que a primeira e que se comunicava com uma saia imensa, na qual, descobrimos mais tarde, encontravam-se, sentados ou deitados, provavelmente meditando sobre a vida humana dos séculos passados e futuros, várias dezenas de cadáveres Hevsuros mumificados pelo ar rarefeito daquele lugar alto.

Na caverna onde me colocaram, sob a guarda do meu fraco amigo, do barbeiro e de um dos jovens Hevsuros, deu-se em mim, durante duas semanas, uma luta incessante entre a vida e a morte.

Depois disso, minha saúde se restabeleceu num ritmo tal que uma semana mais tarde a consciência havia inteiramente voltado. Eu já podia andar com a ajuda de alguém, apoiando-me numa bengala; e fiz até duas visitas à assembleia secreta de meus imortais vizinhos.

Durante esse tempo soubemos que, nas regiões mais baixas, no processo de guerra civil, os exércitos russos estavam ganhando vantagem e os cossacos estavam por toda parte, prendendo todos os “suspeitos” e, em geral, todos aqueles que não eram do lugar.

Como eu não era da região e sabia o que esperar do julgamento de homens submetidos à influência da “psicose revolucionária”, resolvi deixar aquele lugar o mais depressa possível.

Tendo em conta as condições que reinavam em toda a Transcaucásia e, ao mesmo tempo, meus projetos pessoais para o futuro, decidi ir à região transcaspiana.

À custa de incríveis sofrimentos físicos, me pus a caminhar em companhia de meu fraco amigo.

E eu tinha que suportar todos esses sofrimentos para conservar, ao longo da viagem, uma aparência que não despertasse qualquer suspeita.

Não despertar qualquer suspeita era, efetivamente, a condição necessária para evitar ser vítima da “psicose política”, ou ainda da “psicose nacional”.

O fato é que, nas regiões atravessadas pela estrada de ferro, acabava de se desenrolar uma manifestação aguda da dita “psicose nacional”, dessa vez entre armênios e tártaros, e certas particularidades desse flagelo humano continuavam a causar estragos por inércia.

Minha infelicidade no presente caso era que, tendo uma fisionomia, por assim dizer, “universal”, eu representava para os armênios um “tártaro puro-sangue”, e para os tártaros um armênio puro-sangue”.

Enfim, com ou sem a aparência adequada, atingi a região transcaspiana com a ajuda de minha gaita de boca e sempre acompanhado por meu amigo.

Minha gaita de boca se encontrava por acaso no bolso do paletó e esse pequeno instrumento musical me prestou então um imenso serviço.

Devo dizer que eu não tocava mal esse original instrumento, aliás até tocava bastante bem; apesar de saber tocar apenas duas árias: Os cumes da Manchúria e a Valsa Esperança.

Chegados à região transcaspiana, decidimos nos estabelecer provisoriamente na cidade de Achkhabad.

Alugamos dois bons quartos numa casa particular circundada por um lindíssimo jardim, instalamo-nos, e pude enfim me deitar com tranquilidade.

Na manhã seguinte, meu único companheiro saiu para buscar para mim um remédio na farmácia.

Aguardo. Meu amigo não volta.

As horas passam; ele ainda não voltou.

Começo a me inquietar, principalmente porque sei que ele está nessa cidade pela primeira vez e ainda não conhece ninguém.

A noite cai, minha paciência está no fim. Levanto-me e saio a sua procura.

Mas onde? Começo indo à farmácia. Ninguém sabe nada.

De repente, o empregado do farmacêutico, que ouvira minhas perguntas, me diz ter visto na rua, não longe dali, um jovem que esteve naquela manhã na farmácia; os soldados tinham-no detido e levado para algum lugar.

O que fazer? Onde ir? Não conheço ninguém aqui e sobretudo tenho muita dificuldade para andar, pois nestes últimos dias me esgotei completamente.

Saio da farmácia. Já anoiteceu totalmente.

Por sorte, passa uma carruagem vazia; apanho-a e peço cocheiro para me levar ao centro da cidade, no bairro comercial, ainda cheio de vida após o fechamento das lojas.

Esperava encontrar por lá, num café ou num tchaikhanê alguém conhecido.

Avanço com dificuldade pelas ruelas e só vejo peque ashkhanês onde só vão se sentar os Tikins.

Sinto-me cada vez mais fraco e começo a pensar que poderia até desmaiar.

Sento-me no terraço do primeiro tchaikhanê que contro e peço chá verde

Recupero-me, graças a Deus, e, enquanto bebo, o ao meu redor, observando os transeuntes à luz pálida do lampião.

Noto um homem alto, muito imponente, vestido à europeia e usando uma longa barba negra.

Seu rosto parece-me familiar, olho-o fixamente. Ele também me olha com atenção, mas continua seu caminho.

Ele se afasta; no entanto, por duas vezes, volta-se para me encarar.

Arrisco-me gritando em armênio: “Ou eu o conheço, ou é o senhor que me conhece!”.

Ele para, me observa por um momento e de repente grita: “Ah! Diabo negro”, e lança-se em minha direção.

Basta que eu ouça sua voz para reconhecê-lo imediatamente.

Era um de meus parentes distantes, antigamente empregado na delegacia de policia da minha cidade na qualidade de intérprete.

Eu sabia que ele havia sido mandado para a região transcaspiana vários anos antes, mas ignorava para que lugar.

Sabia também que fora submetido a esse exílio porque tinha raptado a amante do comandante da policia.

Imaginem minha alegria com esse reencontro!

Não me estenderei sobre o que pudemos conversar, bebendo nosso chá verde no terraço do pequeno tchaikhanê.

Direi somente que na manhã seguinte meu parente distante, antigo intérprete na delegacia, veio à minha casa acompanhado por um companheiro, oficial subalterno de polícia.

Para começar, me informaram que meu amigo não tinha nada a temer seriamente.

Havia sido detido só porque era a primeira vez que estava na região e ninguém o conhecia.

E como estávamos rodeados por perigosos revolucionários, era preciso estabelecer sua identidade.

“Não é complicado”, disseram em tom de brincadeira. “Vamos escrever ao lugar em que emitiram seu passaporte e pedir uma informação sobre suas tendências políticas. E se ele, enquanto espera, deve se distrair com as pulgas e os percevejos, por que não? Isto fará até o maior bem à sua vida futura!”

Depois, chamando-me à parte, meu parente me segredou com ar preocupado que meu nome figurava na lista dos indesejáveis “capazes de atrapalhar a tranquilidade de certos frequentadores habituais dos lugares frívolos de Montmartre”.

Esse fato novo, relacionado com certas outras considerações, me incitou a deixar esse lugar o mais rápido possível, sem levar em conta minha saúde, ainda bastante vacilante.

De todo modo, não podia fazer nada por meu amigo.

Parti na mesma noite, sozinho, com uma quantidade dinheiro muito limitada, em direção à Ásia Central.

Após superar, à custa de esforços incríveis, obstáculo todo tipo, cheguei à cidade de Eni-Hissar, no antigo turquestão chinês.

Depois de ter conseguido dinheiro com velhos amigos, me pus a caminho para reencontrar um lugar onde já havia permanecido dois anos antes a fim de restabelecer minha saúde comprometida pela ferida que me havia feito a segunda bala perdida.

Esse lugar, situado na extremidade sudoeste do deserto de Gobi, é, na minha opinião, a parte mais fértil de toda a superfície de nossa Terra.

Quanto ao ar dessa região e às suas qualidades benéficas para tudo o que respira, eu não poderia chamá-lo por outro nome senão “sopro do purgatório”.

Purgatório porque, se o paraíso e o inferno existem realmente e emitem radiações, o ar, entre essas duas fontes de radiações, deve ser completamente similar àquele.

Aqui, um terreno que despeja, como de uma cornucópia, todas as espécies da flora, da fauna e da “phoscalie”¹ terrestres, e ali, justo ao lado dessa terra fértil, uma extensão de muitos milhares de quilômetros quadrados representando um verdadeiro inferno, e onde não somente nada cresce, mas onde tudo que vem de fora é logo destruído, a ponto de não deixar qualquer vestígio.

¹ Palavra inventada por G. que significa “seres de luz”. N. T.


Foi lá, nesse singular pequeno pedaço de terra firme da superfície de nosso planeta, onde o ar, quer dizer, o nosso segundo alimento, surge e se transforma na esfera das radiações do paraíso e do inferno, que se desencadeou em mim no final da minha primeira estada, num estado de semidelírio, esse debate interior que, como já disse, devia fazer surgir em meu consciente, na noite de 6 de novembro de 1927, uma ideia que no começo me pareceu totalmente absurda.

Eu havia sido transportado para lá, desfalecido, após ter sido ferido pela segunda vez por uma bala perdida nas montanhas do Tibete.

Tinha então a meu lado numerosos amigos, entre os quais os cinco médicos de que falei.

Quando comecei a me restabelecer, eles se dispersaram aos poucos, e fiquei sozinho com um tibetano e um jovem Karakirghiz (Quirguize).

Longe de tudo, cuidado por esses dois homens compassivos que velavam por mim como uma mãe faria e alimentado por esse ar purificador, em seis semanas eu estava em pé, pronto a deixar a qualquer momento aquele lugar providencial.

Tudo já estava reunido e embalado e, para nos pôr a caminho, só esperávamos a chegada do pai do jovem Karakirghiz com seus três camelos.

Eu soubera que num dos vales do maciço que levava o nome de “Pico Alexandre III” estavam acampados vários oficiais russos do departamento topográfico do Turquestão, entre os quais encontrava-se um de meus bons amigos, e eu me propusera ir vê-los, e depois juntar-me a uma grande caravana para ir primeiro a Andijan e finalmente à Transcaucásia, para lá reencontrar minha família.

Ainda não estava muito forte, mas me sentia bastante bem.

Era uma noite de lua cheia. Seguindo o curso das associações, meus pensamentos, pouco a pouco, retornavam à questão que desde então se tornara a ideia fixa do meu mundo interior.

Enquanto prosseguia com minhas reflexões, sob a influência, à direita, de um rumor atordoante vindo de bilhões de vidas de formas exteriores variadas e, à esquerda, de um silêncio assustador, surgiu pouco a pouco em mim, a meu próprio respeito, uma crítica de uma força até então desconhecida.

Inicialmente, voltaram-me à memória todos os fracassos de minhas buscas passadas.

Constatando esses fracassos e, em geral, a imperfeição dos métodos que eu havia empregado, compreendi claramente como deveria ter agido em tal ou tal caso.

Lembro-me muito bem a que ponto essa tensão do pensamento me esgotava e como uma parte de mim mesmo me ordenava com insistência para me levantar imediatamente e me sacudir para acabar com aquilo; mas eu não podia fazê-lo, tanto estava tomado por tais pensamentos.

Não sei como tudo aquilo teria terminado, se, no momento em que meu instinto me advertia que eu estava de novo a ponto de desfalecer, não tivessem vindo se deitar perto de mim três camelos.

Aquilo me fez voltar a mim e me levantei.

O dia começava a nascer; meus jovens companheiros tinham acordado e se atarefavam nos preparativos habituais da vida matinal no deserto.

Depois de ter falado com o velho Karakirghiz, decidimos viajar de noite, aproveitando o luar, e partir naquela mesma noite; assim os camelos poderiam descansar durante o dia.

Em vez de me deitar para dormir uni pouco, peguei um fuzil e um balde de lona e fui para não muito longe dali, perto de uma fonte de água muito fria, bem no limite do deserto.

Tirei a roupa e me molhei bem devagar com essa água fria.

Depois disso, me senti psiquicamente muito bem, mas fisicamente tão fraco que, de novo vestido, fui forçado a me deitar ao lado da fonte.

Foi então que…

…num estado de grande fraqueza física, mas com um pensar refrescado, estabeleceu-se em mim o debate cuja essência se fixou para sempre em meu consciente e de onde surgiu, na noite de 6 de novembro de 1927, a ideia de que falei…

Como isso se passou há muito tempo, não me recordo os termos exatos desse monólogo interior, tão pouco conforme ao meu estado habitual.

Mas, a partir do sabor que me ficou, posso reconstituí-lo quase fielmente.

Eu me dizia mais ou menos isto:

A Julgar pelo meu estado dos últimos dias, creio que volto à vida e, queira ou não, terei que recomeçar a puxar a mesma corrente.

Meu Deus! Será realmente necessário experimentar mais uma vez (tido aquilo pelo que passei durante os períodos em que estava num estado de plena atividade, no decorrer dos seis meses que precederam essa última catástrofe?

Experimentar remorsos de consciência por todas as minhas manifestações interiores e exteriores em meu estado de vigília ordinário, alternando com sentimentos de solidão, de desilusão, de saciedade etc., mas sobretudo afrentar a terrível sensação de “vazio interior” que me perseguia por toda parte?…

O que não fiz, a que medidas não recorri para que, em meu estado de vigília ordinário, o funcionamento do meu psiquismo se fizesse segundo as diretrizes do meu consciente ativo — e tudo isto em vão.

Trabalhando e vigiando constantemente sobre mim mesmo, sem piedade com as minhas fraquezas naturais, havia conseguido quase tudo que é possível ao homem obter; em determinados domínios, cheguei mesmo a um poder que, talvez, nunca tivesse sido alcançado, mesmo nas épocas passadas.

Por exemplo, desenvolvi o poder de meu pensar a um tal grau que eu era capaz, preparando-me com algumas horas de antecedência, de matar um iaque a dez quilômetros de distância; ou então, eu podia acumular em um dia uma força de vida de uma tal densidade que me era possível adormecer um elefante em cinco minutos.

Entretanto, apesar de todos meus desejos e de todos meus esforços, não podia deforma alguma conseguir, durante o processo de vida em comum com os outros, “lembrar-me de mim mesmo” e me manifestar, não segundo as tendências da minha natureza, mas segundo as diretrizes do meu consciente recolhido.

Não podia chegar a um grau de “lembrança de si” suficiente para impedir que o curso de associações que se desenrolavam automaticamente em mim dependesse de certos fatores muito indesejáveis de minha natureza, que me tinham sido transmitidos por hereditariedade.

Assim que a quantidade de energia que me permitia estar num estado ativo se esgotava, as associações de pensamento e de sentimento mudavam e prendiam-se a objetos diametralmente opostos ao ideal do meu consciente.

Num estado de não satisfação em relação à comida ou ao sexo, o fator determinante de minhas associações era principalmente a reivindicação, e, em estado de satisfação completa, as associações se efetuavam sobre o tema de futuros gozos, de comida ou de sexo, ou ainda de satisfações de amor-próprio, de vaidade, de orgulho, de ciúme, de inveja e outras paixões.

Tinha buscado muito a razão dessa terrível situação do meu mundo interior e tinha interrogado muita gente a esse respeito, mas não pudera esclarecer nada.

Uma única coisa se tornara clara para mim: a necessidade de não se identificar e de “lembrar-se de si mesmo” a todo momento, no decorrer do processo de existência em comum, exige a presença em si de uma força de atenção permanente e que essa força só é suscitada no homem pela ação de uma lembrança constante proveniente de fora.

Eu tinha tentado tudo na vida que levara até então, tinha até usado cilícios de todo tipo, nada tinha ajudado. Esses objetos só ajudavam enquanto eram usados e mesmo assim somente no começo: quando eu deixava de usá-los ou me habituava a eles, encontrava-me de novo como antes.

Não há nenhuma saída possível…

E no entanto, sim, existe uma — uma única. É ter; fora de mim mesmo, a ajuda de um fator regulador que não durma nunca.

Isto é, um fator que me incitaria constantemente, qualquer que fosse meu estado ordinário, a “lembrar-me de mim mesmo”.

O quê! Como! Será possível!…

Por que uma ideia tão simples não me veio mais à mente? Por que foi preciso sofrer tanto e desesperar tanto para agora me dar conta dessa possibilidade?

Por que não recorri, também nesse caso, a essa analogia que tudo abarca?

E ainda aqui, Deus… de novo, Deus. Só Ele. Por parte Ele — e tudo está ligado a Ele.

No entanto, é verdade que sou um homem e não tu animal, embora eu exista no mesmo meio cósmico que todas as criaturas.

Não é à toa que desde as primeiras eras da humanidade foi dito e afirmado por todas as religiões que o homem — diferentemente das demais formas exteriores de vida animal — foi criado por Deus à sua imagem.

À sua imagem quer dizer que, em Sua previdência, Ele deu à nossa presença geral uma estrutura que tem a possibilidade de engendrar e de manifestar as propriedades que Ele tem Nele mesmo.

Ele é Deus e, por consequência,
eu também sou Deus.

A única diferença entre Ele e eu deve ser — e é naturalmente — uma diferença de escala.


Ele é o Deus de um grande mundo, eu, por minha vez devo ser o Deus de um pequeno mundo.

Ele é o Deus de todas as presenças do Universo todo meu mundo exterior.

Eu também sou Deus, mas de todo meu mundo interior.

Por tudo e em tudo, nós temos as mesmas possibilidades e as mesmas impossibilidades.

As mesmas possibilidades e impossibilidades que Ele tem com respeito à presença inteira do Universo, devo tê-las com respeito à presença que me é confiada.

O que para Ele é possível e impossível no domínio do grande mundo, para mim deve ser possível e impossível no domínio do meu pequeno mundo.

Tudo isto é claro, tão claro como após a noite deve vir o dia.

Como pude não notar uma analogia tão evidente?

Eu tinha pensado tanto na criação do mundo e na existência do mundo e, em geral, em Deus e em Suas obras, tinha falado tanto de tudo isso com outros, e nunca tinha me vindo à mente esse simples pensamento.

E, no entanto, era evidente!

Tudo, sem exceção, a sadia lógica tanto quanto os dados históricos, revela e afirma que Deus é a Bondade absoluta. Ele é Todo Amor e Todo Misericórdia. Ele é o justo Conciliador de tudo que existe.

Mas, por que, se assim é, Ele achou necessário afastar de Si, em razão do orgulho próprio a todo indivíduo ainda jovem e não inteiramente formado, uns de Seus filhos mais chegados, que Ele mesmo tinha espiritualizado, e gratificá-lo ao mesmo tempo com uma força igual, mas oposta à Sua… Refiro-me a Satanás.

Essa ideia, qual um sol, aclarou a situação do meu mundo interior. Ela me fez compreender que, para uma edificação harmoniosa, também o grande mundo teve a necessidade imperiosa de um fator incessante de lembrança.

Por essa razão, Nosso Criador, Ele próprio, foi obrigado, em nome de tudo o que Ele havia criado, a pôr um de Seus filhos bem-amados nessa situação terrível, objetivamente falando.

Consequentemente, agora, eu também devo fazer de um desses fatores favoritos de que disponho uma fonte análoga de lembrança constante para meu pequeno mundo interior:

Agora surge a pergunta:

Existe alguma coisa, em minha presença geral, que possa, se eu a isolo de mim, ser um fator incessante de lembrança de mim, qualquer que seja o meu estado?

À força de refletir, cheguei à conclusão de que se eu deixasse intencionalmente de empregar o poder excepcional que possuía, e que havia conscientemente desenvolvido, isto deveria constituir, fora de mim, uma fonte que me lembraria constantemente de mim mesmo.

Sim, deixar de empregar o poder proveniente da força do “ghanbledzoïne” ou, como também se diz, o poder da telepatia e do hipnotismo. E os resultados serão aqueles que eu espero, eu sei, porque, graças a essa propriedade que tinha se arraigado na minha natureza e funcionava automaticamente, o sucesso crescente de minha vida ordinária, principalmente durante os dois últimos anos, tinha desenvolvido em mim muitos vícios e fraquezas que, conforme parecia, permaneceriam em mim para sempre.

Portanto, se me privasse conscientemente desse dom da minha natureza, sua ausência se faria sentir sempre e em tudo.

Eu faço o juramento de me lembrar de nunca fazer uso do poder que possuo, e assim recusar-me a satisfação da maioria de meus vícios. Dessa maneira, quer eu queira ou não, serei incessantemente lembrado a me lembrar de mim mesmo.

Enquanto viver, nunca esquecerei o último dia que passei naquele lugar, quando se fez em mim o raciocínio que me levou a estas conclusões.

Desde que tomei consciência de todo o alcance dessa ideia, pareceu-me que tinha nascido de novo; saltei em pé e, sem me dar conta do que fazia, comecei a correr ao redor da fonte como um jovem bezerro.

Devo acrescentar que, ao fazer diante de minha própria essência o juramento de não utilizar esse poder, fiz uma restrição para todos os casos em que seu emprego seria necessário para fins científicos.

Por exemplo, na época eu me interessava muito, e aliás ainda me interesso, pela possibilidade de aumentar vários milhares de vezes a visibilidade das concentrações cósmicas longínquas por meio das propriedades mediúnicas, bem como pela possibilidade de curar o câncer pelo magnetismo.


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