A Lei das Oitavas – Texto de G. I. Gurdjieff

Fragmento extraído do livro ‘Em busca do Ser‘ de G. I. Gurdjieff

A Lei das Oitavas

A segunda lei fundamental do universo é a Lei das Oitavas, a qual costuma ser chamada de “Lei de Sete”. A fim de compreender essa lei, é preciso entender que o universo consiste em vibrações. Essas vibrações ocorrem em todos os tipos de matéria formadora do universo, desde a mais fina até a mais grosseira. Elas emanam de diversas fontes e seguem variadas direções, cruzando-se, colidindo umas com as outras, ficando mais fortes ou mais fracas, detendo-se mutuamente, e assim por diante.

Na base da compreensão das vibrações, a ciência antiga reconhece o princípio básico de sua descontinuidade, isto é, a característica definitiva e necessária de todas as vibrações da natureza, quer sua frequência cresça ou decresça, a fim de se desenvolverem não como oscilações iguais, contínuas e uniformes, mas com acelerações e retardos periódicos em sua velocidade. Segundo esse principio, a força do impulso original não atua de maneira uniforme nas vibrações, mas, por assim dizer, ora fica mais forte, ora mais fraca.

As leis que governam a desaceleração ou a deflexão das vibrações eram conhecidas da ciência antiga e foram incorporadas a uma fórmula específica preservada até nossos dias. Nessa fórmula, o período em que as vibrações são dobradas é dividido em oito etapas desiguais, correspondentes ao índice de aumento nas vibrações. A oitava etapa repete a primeira com um número de vibrações duas vezes maior. Esse período entre determinado número e o dobro desse número é chamado de oitava, ou seja, composto de oito.

Essa fórmula representa a maneira pela qual o conceito da oitava foi transmitido de professor para discípulo e de uma escola a outra. Muito, muito tempo atrás, uma escola descobriu ser possível aplicar essa fórmula à música. Assim, obteve-se a escala musical diatônica — dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó — a qual era conhecida na mais remota antiguidade, foi esquecida e posteriormente descoberta ou “reinventada”. A estrutura da escala de sete notas, sem os semitons nos intervalos entre mi e fá e entre si e dó, produz um esquema da lei cósmica dos intervalos. ou semitons ausentes. Desse modo, quando falamos de oitavas em um sentido cósmico ou mecânico, apenas os semitons entre mi e fá e entre si e dó são chamados de “intervalos.

Dessa maneira, a escala diatônica representa a fórmula da Lei das Oitavas desenvolvida inicialmente nas escolas antigas e depois aplicada à música. Ao mesmo tempo, porém, se estudarmos as manifestações dessa lei em outros tipos de vibração, não musicais. veremos que as leis são as mesmas em toda parte e que as vibrações intrínsecas à luz, ao calor, a reações químicas e ao magnetismo estão sujeitas aos mesmos princípios que o som. A física, por exemplo, conhece a escala luminosa, e na química temos o sistema periódico dos elementos, intimamente relacionado com o princípio das oitavas. Nossa divisão de tempo, isto é, a separação dos dias da semana em dias úteis e domingos, reflete a lei geral que governa nossa atividade. E o mito bíblico da criação, no qual Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, é uma expressão ou, no mínimo, uma indicação dessa lei, embora incompleta.

Ao compreendermos seu verdadeiro significado, a Lei das Oitavas nos proporciona uma explicação nova da totalidade da vida e do desenvolvimento dos fenômenos em todos os planos do universo. Essa lei explica, por exemplo, por que a natureza não tem linhas retas. Explica ainda por que não podemos “fazer”, por que em nós tudo está “feito” e, em geral, de modo oposto ao que gostaríamos ou esperaríamos. Sempre que nos dispomos a fazer alguma coisa, acabamos fazendo algo diferente, mas pensamos o tempo todo que estamos fazendo exatamente o que queríamos desde o início. Tudo isso é efeito direto dos “intervalos” ou decréscimos na frequência das vibrações à medida que se desenvolvem.

Até aqui, concentramo-nos na descontinuidade das vibrações e na maneira como as forças podem se desviar. Há ainda outros dois princípios que precisamos tentar compreender: primeiro, que a ascensão ou o declínio são inevitáveis em qualquer linha de desenvolvimento e, segundo, que em toda linha, ascendente ou descendente, há flutuações periódicas, ou seja, subidas e descidas. Desenvolvimento implica mudança, e a ascensão ou a queda são condições cósmicas inevitáveis de qualquer ação. Não vemos nem compreendemos o que está acontecendo à nossa volta e em nós. Isso porque pensamos continuamente que as coisas podem se manter no mesmo nível por um longo tempo e não damos margem para a inevitabilidade da queda quando não há subida. Também confundimos a queda com a ascensão, sem perceber que as ascensões que imaginávamos possíveis em certas circunstâncias são, na verdade, impossíveis — é impossível, por exemplo, aumentar a consciência por meios mecânicos.

Após distinguir oitavas ascendentes e descendentes no mundo que nos rodeia, precisamos aprender a distinguir ascensão e queda nas próprias oitavas. Em qualquer aspecto de nossa vida, nada permanece nivelado e constante. Em toda parte e em tudo, o pêndulo oscila, ondas se erguem e caem. Pense em nossa energia, que subitamente aumenta e depois, com a mesma volatilidade, enfraquece; em nossos humores, que “melhoram” ou “pioram” sem razão aparente; em nossos sentimentos, desejos, intenções, decisões. Todos ascendem ou descendem de modo contínuo, ficando mais fortes ou mais fracos.

Observações baseadas na Lei das Oitavas mostram que as “vibrações” podem se desenvolver de diversas maneiras. Se uma oitava é interrompida, as vibrações podem ser vistas como coisas que começam e depois somem, ou são engolidas por vibrações mais fortes que cruzam com elas, ou vão em direção oposta. Se uma oitava se desvia da direção original, as vibrações mudam de natureza e produzem resultados diferentes dos esperados. Apenas nas oitavas de ordem cósmica, descendentes ou ascendentes, as vibrações se desenvolvem de maneira consecutiva e organizada e continuam na mesma direção com que começaram.

Observações adicionais mostram que as oitavas têm o potencial de se desenvolver consistentemente na vida, tanto na natureza quanto na atividade humana, embora esse tipo de desenvolvimento seja raro e volta e meia se baseie no que parece ser um acidente. O que acontece às vezes é que, com a progressão da oitava, outras oitavas, correndo paralelas à primeira, intersectando-a ou encontrando-a, de algum modo preenchem seus “intervalos”, de modo que suas vibrações prosseguem em seu desenvolvimento sem problemas. No momento em que aquela oitava específica passa por um “intervalo”, surge um “choque adicional” que lhe corresponde em força e caráter. Isso faz com que a oitava possa se desenvolver mais de acordo com a direção original, sem perdas ou mudanças na natureza de suas vibrações. Mas, nesses casos, há uma diferença essencial entre oitavas ascendentes e descendentes.

Em uma oitava ascendente, o primeiro “intervalo” ocorre após a terceira nota, entre mi e fá. Se uma energia adicional e correspondente entrar nesse ponto, a oitava irá se desenvolver sem abalos até o , a sétima nota. Mas, a fim de continuar pelo intervalo entre si e dó, precisará de um “choque adicional” muito mais forte. Nesse ponto, as vibrações são de um diapasão bem mais alto e, por isso, exigem maior intensidade, a fim de impedir que o desenvolvimento da oitava se desacelere. Em uma oitava descendente, por outro lado, o “intervalo” mais difícil ocorre bem no começo, logo após o primeiro dó, e o material que o preenche em geral é encontrado no próprio dó ou nas vibrações laterais induzidas pelo . É por isso que uma oitava descendente costuma se desenvolver com muito mais facilidade do que uma oitava ascendente e que, ao passar pelo si, ela atinge o , a quarta nota, sem se abalar. Aqui, é necessário um “choque adicional”, embora consideravelmente menos forte do que o primeiro choque entre dó e si.

Na operação da Lei das Oitavas, há, na relação de umas com as outras, oitavas fundamentais e subordinadas. A oitava fundamental é como o tronco de uma árvore que produz ramos de oitavas laterais. As sete notas fundamentais e os dois “intervalos”, os portadores de novas direções, formam nove elos de uma corrente, com três grupos de três elos cada. A formação das oitavas e a relação das oitavas subordinadas de ordens distintas podem ser comparadas com a formação de uma árvore. Do tronco básico saem ramos importantes por todos os lados, os quais se dividem em galhos menores, cada vez menores, e que por fim se cobrem de folhas. O processo continua em uma escala bem menor na formação das folhas, dos veios e dos recortes denteados.

O exemplo completo da Lei das Oitavas pode ser visto na grande oitava cósmica do raio da criação que chega até nós. O raio começa pelo Absoluto, que é Tudo. Esse Tudo, que possui a unidade, a vontade e a ciência completas, cria mundo em si mesmo, dando início à oitava descendente do mundo do qual o Absoluto é o . Os mundos que o Absoluto cria em si mesmo, portanto, são o si, com o “intervalo” entre dó e si preenchido pela vontade do Absoluto. O processo criativo se desenvolve ainda mais sob o ímpeto do impulso original com a assistência do “choque adicional”. Si passa para , que, de acordo com nossa perspectiva, é nossa galáxia estelar, a Via Láctea. passa para sol — o nosso sol, o sistema solar —, e sol passa para — o mundo dos planetas de nosso sistema solar. Aqui, entre o mundo planetário como um todo e nossa Terra, ocorre um “intervalo”. A consequência desse intervalo é que as emanações planetárias que trazem diversas influências para a Terra não conseguem atingi-lá, ou, mais corretamente, a Terra, em vez de recebê-las, as desvia. Nesse ponto, a fim de ocupar o “intervalo”, criou-se um aparato especial para receber e transmitir essas influências planetárias. Esse aparato é a vida orgânica da Terra, a qual transmite a ela todas as influências que lhe são destinadas. Isso possibilita o desenvolvimento e o crescimento contínuo da Terra, o mi da oitava cósmica; e, depois, o da lua, ou o ; depois vem outro o Nada. Assim, o raio da criação se estende do Tudo ao Nada.

Na oitava cósmica, o sol soa originalmente como sol, mas começa, em dado momento, a soar também como em uma nova oitava descendente. Prosseguindo no nível dos planetas, essa nova oitava passa para si e, descendo ainda mais, produz três notas, lá, sol e fá, as quais criam e constituem toda a vida orgânica da Terra, assim como a conhecemos. Nessa oitava, o mi se mistura com o mi da oitava cósmica, ou seja, com a Terra, e o ré dessa oitava se mistura com o ré da oitava cósmica, isto é, com a lua. A vida orgânica funciona como órgão de percepção e de emanação da Terra. Em todo momento, por meio da vida orgânica, cada porção da superfície da Terra envia emanações na direção do sol, dos planetas e da lua, cada qual exigindo um tipo específico de emanação. Tudo que acontece na Terra cria emanações, e muitos eventos ocorrem simplesmente porque certo tipo de emanação é exigido de certos lugares da superfície da Terra. As duas oitavas podem ser ilustradas da seguinte maneira:

Ao passar do estudo do universo ao estudo do homem, devemos tentar compreender a ideia de “choques adicionais”, os quais permitem que as linhas de força atinjam uma meta projetada. Como sugerido, os choques podem ocorrer por acidente. Por acaso, nossas atividades podem recair e se mover em algum canal escavado por forças cósmicas ou mecânicas e criar a ilusão de que alguma meta está sendo. atingida. Essa correspondência acidental entre resultados e as metas que estabelecemos para nós ou a realização de metas pequenas, sem consequências, dão origem à convicção de que somos capazes de atingir qualquer meta, de que podemos “conquistar a natureza”, “organizar toda a nossa vida”, e assim por diante.

Na verdade, é evidente que somos incapazes disso, porque não só não temos controle sobre o que acontece fora de nós mesmos, como não temos controle sequer sobre o que acontece dentro de nós mesmos. Essa última frase precisa ser compreendida com clareza. Ao mesmo tempo, precisamos compreender que o controle sobre as coisas começa com o controle sobre as coisas em nós mesmos, com o controle sobre nós mesmos. A pessoa que não consegue se controlar, ou ao curso das coisas em seu íntimo, não consegue controlar nada.

A parte técnica desse controle é explicada pela Lei das Oitavas. Como vimos, as oitavas só podem se desenvolver na direção desejada se “choques adicionais” surgirem nos momentos certos, isto é, nos pontos em que as vibrações se desaceleram. Se não surgem “choques adicionais” nesses momentos, as oitavas mudam de direção. É lógico que não dá para esperar que esses “choques” apareçam por acidente, por conta própria e no momento certo. Para cada caso, há uma opção entre três posturas diante da vida. Podemos encontrar uma direção para nossas atividades correspondente à linha mecânica de eventos de determinado momento; em outras palavras, “ir com o vento” ou “remar a favor da maré”, mesmo que isso contrarie nossas tendências, convicções e simpatias íntimas. Podemos aceitar o fracasso de tudo o que começamos a fazer. Ou podemos aprender a identificar os “intervalos” nas linhas de nossa atividade e criar os “choques adicionais” de que precisamos; ou seja, podemos aprender a aplicar o método usado pelas forças cósmicas em nossas próprias atividades, nos momentos necessários.

A fim de tentar compreender a Lei das Oitavas, é importante evitar o excesso de teorias. Precisamos é entender e sentir essa lei em nós mesmos. Apenas assim seremos capazes de vê-la operar fora de nós.


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