O livro definitivo sobre a história da Amazônia do período pré-colombiano aos dias atuais, por um dos autores que melhor interpretou a região. A Amazônia, que desde sempre atraiu viajantes e exploradores como um local desconhecido e misterioso, ocupa um lugar privilegiado na obra de Márcio Souza. Unindo suas perspectivas de sociólogo, historiador e crítico literário, ele se dedicou à tarefa de registrar esta História da Amazônia, abrangendo a totalidade de um território geográfico e histórico que se revela coerente em sua diversidade. Cobrindo desde o período pré-colombiano até os dias atuais, Márcio Souza trata de aspectos geográficos e antropológicos...
Editora: Record; 2ª edição (24 junho 2019) Idioma: Português Capa comum: 392 páginas ISBN-10: 8501114669 ISBN-13: 978-8501114662 Dimensões: 22.6 x 15.2 x 2.2 cm
Leia trecho do livro
Para minha mãe, América, e meu irmão, Deocleciano, in memoriam.
É tempo de partirmos para o espanto desmedido.
Do que fomos, fizemos ou cantamos,
Ficará, apenas, o invisível traço
Do voo da ave indivisível
Que se consumiu no espaço.
L. Ruas (Manaus, 1931-2000)
Agradecimentos
A pesquisa para este livro foi realizada através do Instituto de Estudo e Pesquisas Sociais (Iepes), sob a orientação do professor doutor Francisco Weffort, meu mestre desde os tempos de graduação na USP, a quem agradeço com especial ênfase. Este trabalho não chegaria a bom termo sem o apoio financeiro da Secretaria Executiva de Cultura do Estado do Pará, na pessoa do arquiteto Paulo Chaves; da Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas, na pessoa do historiador Robério dos Santos Braga, e do Banco da Amazônia (Basa). Um agradecimento muito especial vai para meu falecido agente literário, dr. Henrique Gandelman, que acreditou no projeto desde o início, e para meu atual agente literário, Stéphane Chao, que achou importante manter o livro presente nas livrarias.
Agradecemos também a colaboração das seguintes instituições e pessoas:
Arquivo Público do Pará
Bancroft Library, University of California, Berkeley
Biblioteca Pública de Manaus
Bibliothèque Nationale de France
British Museum, Library and Archives in the Department of Africa, Oceania and the Americas
Fundação Biblioteca Nacional
Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
Museu Amazônico, Universidade do Amazonas Museu de Arte de Belém,
Fundação Cultural do Município de Belém
Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Pará
Tenório Telles
University of Texas at Austin, Brazil Center
Prefácio
A Amazônia desde sempre atraiu os viajantes e exploradores como um lugar desconhecido e misterioso. Se é verdade que a ficção pode superar a realidade, podemos afirmar que a “realidade” da Amazônia contém em si uma boa dose de ficção que a assemelha à trama dos melhores romances. Júlio Verne ou Arthur Conan Doyle, sem nunca terem ido lá, mas inspirados pelos relatos de exploradores conhecidos, ambientaram na selva alguns de seus romances inesquecíveis, num misto de realismo e fantasia.
Na obra de Márcio Souza, a Amazônia ocupa um lugar privilegiado. Dono de uma produção ampla e reconhecida, o escritor elegeu a terra natal como um dos seus temas prediletos, seja como ficção ou como assunto de reflexão em ensaios literários ou históricos do tipo de A expressão amazonense (1977), ou esta História da Amazônia. Ele une as perspectivas diferenciadas de sociólogo, historiador e crítico literário, tornando-se, deste modo, um dos intérpretes esclarecidos da região.
Convém definir o conceito de Amazônia, que o escritor se recusa a restringir às fronteiras da federação. O olhar crítico de Márcio Souza abrange a totalidade de uma região geográfica e histórica, movida por uma coerência interna, resultando da conformação de uma paisagem em que dominam a mata e a água. Nesta terra, que se revela, de forma paradoxal, coerente em sua diversidade, vivem algumas etnias descendentes dos povos originários, testemunhas da presença das ricas civilizações, anteriores às colonizações espanhola e portuguesa, que atuaram a partir do chamado Século dos Descobrimentos.
A conformação do vale ao longo do curso potente do rio Amazonas e dos seus não menos poderosos afluentes foi o berço civilizatório destes povos ameaçados de extinção desde os primeiros contatos com os europeus, e que ainda hoje buscam desesperadamente um meio de sobreviver às consequências do desastre ecológico que atinge a floresta.
É esta história conhecida, quando muito, dentro dos limites da região, mas ignorada ou esquecida do resto do país, que o escritor se propõe a desvendar. Não o faz como se fosse uma história do passado, mas como um processo que favorece a compreensão do presente, e cujas forças atuantes orientam os movimentos da sociedade contemporânea.
Não é sem certa amargura que o autor, nativo de Manaus, observa o papel periférico na representação pública reservado a duas das maiores cidades do Brasil:
Manaus e Belém, megalópoles que abrigam milhões de habitantes. A própria história da colonização, a precedência espanhola na região, as relações privilegiadas mantidas com a corte portuguesa e uma tentativa separatista frente às vontades hegemônicas do império brasileiro em formação explicam em grande parte este afastamento dos centros decisórios e a atitude condescendente e colonizadora do resto da federação.
Num momento de recrudescimento dos estigmas visando às diferenças de qualquer tipo, os “outros” de modo geral e especialmente os povos indígenas, o autor de Teatro indígena do Amazonas (1979), livro que tive o prazer de traduzir para o francês em 2015, e de Amazônia indígena (2015), obra publicada nesta mesma Editora Record, reescreve a história, incorporando a perspectiva dos povos nativos, e pleiteia para o reconhecimento de outros modos de se relacionar com as fontes históricas, levando em consideração, como documentos históricos, as narrativas orais e outros elementos culturais descartados da história oficial até os nossos dias, em virtude de uma perspectiva etnocêntrica e da lógica excludente do pensamento ocidental em que prevalece a escrita.
Isto não quer dizer que a perspectiva adotada pelo ensaísta desconsidere o impacto da herança ocidental na cultura e no desenvolvimento regional. Antes, pelo contrário, salienta o choque de duas lógicas, criando uma contradição insolúvel, não superada até os dias atuais.
Tomara, como deseja o escritor, que este livro de história, inspirado pela falta de um livro único sobre a história da Amazônia, seja capaz de suprir a ausência de obras críticas de fácil acesso sobre o assunto e reafirme a importância do resgate da memória para a formação das gerações vindouras. Tomara que estimule o pensamento crítico dos leitores, por ser este o único baluarte frente às derivas totalitárias cada vez mais presentes nos discursos oficiais.
Escrever uma história da Amazônia não se limita a favorecer a compreensão de um povo em sua dimensão geopolítica e cultural; significa também defender valores democráticos e humanistas, defender a diferença, a pluralidade étnica e cultural, como bens inalienáveis da humanidade. Significa valorizar a pluralidade das línguas que constituem uma das maiores provas do gênio humano, como afirma Jean Malaurie, ardente defensor dos povos autóctones do grande Norte no prefácio ao livro La chute du ciel (2010) (publicado em português como A queda do céu, em 2015), de autoria do líder ianomâmi xamã Davi Kopenawa e do etnólogo suíço Bruce Albert. A Amazônia, afirma Márcio Souza, pode nos ensinar mais ainda sobre a nossa condição humana. Ouvir as vozes dos pajés possibilita o entendimento de um pensamento que valoriza o diálogo com a natureza, e respeita o meio ambiente para que a humanidade possa sonhar num futuro possível.
Essas civilizações que desenvolveram uma forma de conhecimento peculiar, desprezado pela lógica ocidental, revelam hoje o requinte de suas culturas e, num gesto de generosidade, procuram um meio de salvaguardar o nosso planeta para o bem da humanidade em seu conjunto, sem distinção de origem ou de cor.
Falar da Amazônia é falar da história do mundo em processo de globalização, porque o interesse pelo famoso Eldorado favoreceu desde sempre o contato com os representantes dos diversos povos que tentaram anexar este território.
Falar da Amazônia significa apontar o descaso para com os povos que, depois de terem sido expulsos da condição humana, foram reintegrados nesta condição mediante o abandono de suas crenças e sofrendo toda sorte de dominações físicas e morais. Falar da Amazônia leva a salientar a capacidade de resistência desenvolvida frente aos opressores, bem como os requintes de crueldade usados para reprimir qualquer forma de protesto. A igreja, como demonstra o autor, também movida pela lógica mercantilista, assumiu um papel relevante neste processo integrador.
Figuras da resistência indígena, como Ajuricaba, o grande tuxaua aruaque, distinguem-se pelas suas qualidades de diplomacia e capacidade de congregar um grande número de etnias na luta contra o opressor.
Falar da Amazônia é também falar do processo de miscigenação que resultou do contato entre indígenas e negros, ambos vítimas de opressão. O caboclo, fruto desta mistura, iria se rebelar contra a anexação forçada ao império brasileiro em formação.
A Cabanagem constituiu um grande momento de tomada de consciência popular contra o vizinho e irmão brasileiro. No entanto, a revolta seria esmagada, deixando a região despovoada e em ruínas. Este episódio sangrento forneceu ao escritor o tema da tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro (2001-2005). A capacidade de resistência dos habitantes leva o autor a discorrer sobre um comportamento peculiar, uma aptidão desenvolvida, segundo ele, em consequência desta história dramática: a leseira seria uma carapaça protetora para resistir aos projetos mais descabidos inventados pelos sucessivos governos ao longo do tempo, e em particular durante a ditadura militar.
Depois do grande boom da borracha, que justificou todas as excentricidades da nova classe burguesa extrativista, e de novos episódios de exploração selvagem, a profunda depressão causada no início do século XX pelo crash do mercado, posto em xeque pela concorrência da seringa asiática, provocaria um colapso e a rejeição das mesmas elites prestes a abandonar a região.
As esperanças que haviam movido as levas de imigrantes famintos vindos do Nordeste ou do Oriente Médio seriam cruelmente decepcionadas. Seria preciso esperar o golpe de 1964 para que os militares, preocupados em combater o comunismo, voltassem novamente os olhos para este território longínquo, no intento de quadrilhar a selva. A floresta adormecida seria novamente dilacerada pelos projetos megalomaníacos idealizados pelos militares. Datam desta época o faraônico projeto da Transamazônica e a inútil BR-174, ambos impraticáveis, que justificaram os assaltos contra os waimiri-atroaris e depois os ianomâmis, considerados obstáculos ao progresso.
Quantos episódios constituem a história da Amazônia, injustamente qualificada de “terra sem história” ou “à margem da história” pelo grande escritor Euclides da Cunha, que descreve de forma contundente a exploração dos seringueiros nordestinos nos limites de um país sem fé nem lei. Quantos heróis, homens anônimos e esquecidos, viveram, lutaram e morreram nesta terra apresentada como um vazio demográfico ou como uma outra versão do deserto.
Esta história da Amazônia, que vai do período pré colombiano até os dias atuais, intitulada Breve História da Amazônia em sua primeira edição, acompanha a vida do escritor e, neste processo, ampliou-se de tal forma que merece hoje plenamente o título de História da Amazônia. Uma história sombria por muitos aspectos, que diz muito das capacidades predatórias da civilização norteada pela ideia do progresso a todo custo e pelo gosto imoderado do poder. Os genocídios perpetrados pelos próprios cientistas em nome da ciência revelam a barbárie de nossa civilização. Os ataques perpetrados ao meio ambiente incentivam uma reflexão sobre o que seria uma economia sustentável e a necessidade de buscar alternativas.
Brigitte Thiérion
Maître de conférences
Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3
Introdução
Tudo o que se escreve sobre a Amazônia tem certo sabor de relativismo. A delimitação de suas fronteiras, a formação de seu espaço geográfico e a emergência das sociedades humanas são conceitos tão carregados de significados distintos que cada hipótese vem embebida com doses de relativismo. Uma data, por exemplo, guarda vários significados. Vejamos o ano de 1492. Para os europeus é o ano surpreendente do descobrimento de um mundo novo. Já para os povos americanos, é o começo de um holocausto. Assim, aqui não teremos datas nem centraremos nas efemérides, pois o combate à tentação do relativismo arbitrário estará justamente na capacidade de abranger o máximo do espaço e do tempo, ressaltando as forças históricas dominantes, as linhas de tensões no contexto internacional e o pluralismo das opções sociais, mesmo aquelas que foram derrotadas pelas contingências.
A ideia deste livro começou na Universidade da Califórnia, Berkeley, quando fui convidado como professor adjunto para ministrar duas matérias: O Moderno Romance Brasileiro, em português, e Images of the Amazon, em inglês. Para este último, necessitei organizar uma lista de livros de leitura obrigatória para meus alunos do curso e defrontei-me com o fato de não existir um único livro de história da Amazônia. Para cobrir o assunto, fui obrigado a selecionar vários títulos, todos parciais, o que dificultou e aumentou a carga de trabalho dos estudantes. Existem obras de história do Amazonas, do Pará, do Acre, das regiões amazônicas dos países hispânicos, algumas delas excelentes, mas a dispersão complicava a vida daqueles que desejam apenas uma introdução geral e não pretendem se tornar especialistas. Creio que é muito desestimulante para os leitores em geral, se estes desejarem conhecer os grandes traços do processo histórico da Amazônia. Essa lacuna é uma prova do quanto precisávamos avançar nos estudos amazônicos.
Foi pensando nos alunos dos meus cursos e nos muitos leitores que continuamente me pediam a indicação de um livro sobre o tema — pedido sempre frustrado — que me apressei a escrever Breve História da Amazônia. Mas vou logo afirmando que tal trabalho não vinha a preencher, nem de longe, a lacuna existente. Uma verdadeira história da Amazônia, abrangendo não apenas a Amazônia brasileira, mas também aquelas que falam espanhol, inglês e holandês, seria uma obra de mais fôlego e exigiria bem mais esforço que aquele texto, deliberadamente sintético, modestamente escrito e destinado apenas a servir de introdução aos alunos. Por isso mesmo o texto ganhou uma edição em mimeógrafo em Berkeley e uma primeira edição pela Editora Marco Zero. Mais tarde, uma nova edição, revista, foi publicada no Rio de Janeiro, pela Agir. Esta História da Amazônia, portanto, é uma ampliação daquela, que de tanto crescer já não pode ser chamada de breve.
Ultimamente, a prática tradicional da história vem atravessando uma série de crises, provocadas pela invasão na comunidade acadêmica de diversos conceitos antes circunscritos apenas aos campos da literatura e a certas teorias sociais. Ao contrário do que se pensava, de que a verdade estava sempre ao alcance dos historiadores, atualmente se acredita que é impossível dizer a verdade e inútil usar a história para produzir qualquer conhecimento de forma objetiva. Aparentemente, a prática da história está sofrendo um assalto letal porque supostamente o passado só poderia ser revisitado a partir da perspectiva de nossas idiossincrasias culturais, portanto o resultado não seria mais que um reflexo de nossos próprios preconceitos reverberando de volta. Tais ideias, que parecem muito avançadas e modernas, são bem antigas e começaram no século XIX, com Friedrich Nietzsche, que argumentava não haver distinção entre mito e história.
A última coisa que se pretende nesta introdução é levar os leitores para o lodaçal teórico desse debate, mas não há como deixar de ressaltar o problema, na medida em que agora se apresenta uma edição da História da Amazônia. O relativismo cultural que hoje grassa parece querer provar que epistemologicamente jamais conseguimos conhecer o passado, mas é preciso insistir que há fatos concernentes à história que não apresentam nenhuma incerteza. É claro que muitos textos históricos torcem a verdade e apresentam conclusões tendenciosas. Outros padecem de falta de objetividade, porque escrever história é também exercer escolhas, e escolher nem sempre é submeter os fatos aos caprichos do narrador. Porque selecionar é uma contingência, não a mera escuta de um eco débil que vem do passado. Especialmente quando estamos falando de Amazônia, um tema com tantos protagonistas diferentes e de sociedades distintas, que não pode ser interpretado de um só ponto de vista. Mas o relativismo não nos ajuda aqui, muito pelo contrário. Embora a tentação relativista tenha começado como uma crítica bem-intencionada à civilização ocidental, entendida como sinônimo de eurocentrismo e ações imperialistas, não podemos esquecer que somos ocidentais, queiramos ou não. Assim, os únicos valores a que se pode recorrer para fugir ao tribalismo ou ao espírito de seita são aqueles universais, os quais, embora ganharam aceitação global, pois são valores concernentes à sociedade democrática e à prática dos direitos humanos. Uma vez que tenhamos tais valores em mente, e tenhamos entendido que o método histórico está disponível para todo mundo, é preciso insistir na nossa própria história, olhar de frente as nossas verdades, as nossas opções ou a falta delas.
Atualmente, os jovens passam pela escola, em especial no ensino elementar, com um contato mínimo com as disciplinas da história. Estão condenados a viver num eterno presente, porque não contarão com as perspectivas do antigamente. Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro; nos Estados Unidos e na Europa, há um declínio no número de alunos do segundo grau que estudam história em qualquer uma de suas variantes. Nas universidades, entre os cursos de graduação em decadência, estão os de história, substituídos pelas disciplinas de estudos culturais. Ora, tal afastamento dos jovens dos fatos do passado leva a uma sociedade do momento, do imediato, reducionista, que não deseja mudar. Se uma geração inteira perde o contato com a história, perde qualquer atitude crítica em relação ao presente, nem sequer pode canalizar o seu desespero pelos descaminhos da atual sociedade. Tudo isso pode ser bem moderno, ou pós-moderno; porém, no fundo, não passa do requentado cinismo de sempre. Certamente, essa juventude sem ontem pensa que é moderna. E, como todo mundo quer ser moderno, insistimos em perfilar uma história para a Amazônia, pelo bem dos jovens de hoje.
Outro aspecto a ser ressaltado é que a história da Amazônia necessita ser abordada e trabalhada o mais urgentemente possível, e se hoje mestres como Hegel e Marx precisam ser seguidos com cautela, e mesmo os historiadores conservadores devem ser observados, há certamente linhas históricas e processos sociais que devem ser apreciados e identificados. Especialmente porque a Amazônia é um subcontinente, onde a partir do século XVI se estabeleceu uma marcha incansável rumo ao Estado-Nação, derivativo do mesmo fenômeno europeu, compondo no novo espaço geográfico um conjunto de sociedade que reivindicava possuir o monopólio da força política legítima, cada uma propondo um destino para seus povos e suas fronteiras. O drama da Amazônia é que ela se pulverizou nesses estados emergentes, cada um deles organizado em muitas formas constitucionais, onde a região se inseriu como periferia ou fronteira econômica. Nos últimos tempos, quase todas as opiniões e propostas — algumas absurdas — para o futuro e o desenvolvimento da Amazônia foram sendo afoitamente apresentadas por gente sem nenhuma ou quase nenhuma experiência amazônica. Um recente historiador norte-americano, por exemplo, em livro que pretendia fazer a história do rio Amazonas, ignorou solenemente aspectos cruciais da conturbada vida política da Amazônia no alvorecer do século XX e introduziu um capítulo inteiro sobre as caçadas e as aventuras de Theodore Roosevelt, ex-presidente norte-americano que esteve pelas selvas de Mato Grosso e Rondônia no começo do século, como se isso fosse um importante momento da história regional. Diga-se de passagem, o feito do senhor Roosevelt foi descobrir certo rio que todo mundo já conhecia.
De todas as afrontas que a Amazônia sofre, a mais escorregadia é exatamente essa das opiniões apressadas. Ao mesmo tempo, é a mais simples de superar. O mesmo afã salvacionista pôs a Amazônia no centro do mercado capitalista, e tudo virou mercadoria. Como observou Chico Mendes, querem colocar uma etiqueta de preço em cada pedaço da região. No entanto, como pôr no mercado a identidade do povo da Amazônia, identidade que hoje não se dissocia da cultura e do processo histórico?
E como escrever a história da Amazônia? A história é como a geografia. Forma-se no interior dos povos, por lentos movimentos sísmicos, através da erosão, do sibilar contínuo dos ventos polindo a pedra ou na aluvião das enchentes sazonais dos rios. A história mostra-se sempre como uma geografia retrospectiva, um registro das eras e um repositório de memórias humanas. Pode mesmo se dizer que, através da história, é possível traçar as linhas que formam o passado de um povo, ressaltando suas diversidades e mostrando suas fronteiras. Porque cada momento da história é uma perfeita fusão do plural e do singular.
Por isso, ter uma história significa existir. O Brasil desde muito cedo expressou um espírito nacional. Na curta história do continente americano, o povo brasileiro engendrou uma história particular, contínua e extensa, que se reconhece brasileira em cada um de seus momentos. Isso quer dizer que, desde cedo, somos um povo com visão do mundo próprio, mesmo antes de existirmos de modo formal. No começo, foi um processo histórico herdado, imposto, como a própria língua pela qual ela se materializa. Assim, na Amazônia, a história foi fruto de um impacto colonial, a história do povo amazônico foi sendo construída até se tornar uma real expressão de identidade. É a trajetória que vai da chegada do homem na região aos dias atuais. Mas, como sabemos, a Amazônia é um enorme subcontinente. Não poderia contar com uma história sem que esta fosse ao mesmo tempo uma das formas da diversidade nacional. Porque o subcontinente amazônico é o resultado de um inverossímil amálgama de diferenças microrregionais, cada uma com sua cultura particular, com a sua própria história.
Devido ao tamanho da região e as suas divisões políticas, escrever a história da Amazônia é como escrever a história do oceano Atlântico. Quase se pode dizer que as proporções subcontinentais devoraram qualquer possibilidade de síntese, porque as diversas Amazônias não podem, por esse mesmo motivo, perder sua personalidade — é o caráter de cada uma delas que faz a diversidade do grande vale. Porque a Amazônia é a diversidade.
O processo histórico da Amazônia, nesse sentido, tem sido como o instinto do animal livre que defende o seu território, que delimita o seu domicílio e repele as investidas da desinformação e do preconceito. Cada momento da história, ao correr o risco de cair no esquecimento ou de sofrer uma explicação mistificadora, deve ser como uma prova do ato coletivo de existir, como um marco da presença afirmada ao longo do tempo. Por isso, há livros de história com o mesmo prestígio de uma vitória bélica. E são essas obras que acompanham a construção da personalidade de um povo, como um testemunho de potência, de seu desejo afirmativo.
A história da Amazônia faz parte da diversidade da América do Sul. Uma cultura com expressão própria como a da Amazônia, embora de extração mais recente que a expressão cultural de outras regiões do planeta, já foi capaz de assimilar a linguagem da região, a voz de seu povo, sem deixar de ser americana. É um fenômeno comum a todos os países amazônicos, tal qual os muçulmanos do romance de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente, uma das mais recentes manifestações da grande literatura amazônica. Aqueles muçulmanos vinham para a distante Manaus, este “certo Oriente” incrustado nos confins do Ocidente, mas nunca perdiam totalmente suas raízes.
Um personagem relata o seu espanto, ao constatar esta verdade:
Eu mesma relutei em acreditar que um corpo em Manaus estivesse voltado para Meca, como se o espaço da crença fosse quase tão vasto quanto o Universo: um corpo se inclina diante de um templo, de um oráculo, de uma estátua ou de uma figura, e então todas as geografias desaparecem ou confluem para a pedra negra que repousa no íntimo de cada um.¹
Assim é a identidade da Amazônia. Um corpo formado pelos rios enormes, pelas selvas brutalmente dilaceradas, pelos povos indígenas dizimados, pela saga dos homens na conquista da natureza. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de estar perenemente voltado para Meca, que é a própria Amazônia, um espaço tão vasto como a crença, capaz de fazer a geografia confluir para a pedra negra que dentro de nós indica que somos da Amazônia, filhos da mata, filhos das águas.
História da Amazônia é um livro que vejo destinado aos professores, aos seus alunos, aos universitários brasileiros, como uma espécie de roteiro de chegada a um pedaço imenso, mas pouco conhecido, da América do Sul. As forças históricas que criaram a Amazônia vieram da expansão da Europa no mundo, mas logo outros vetores econômicos e sociais se impuseram e plasmaram novas perspectivas. No entanto, nem sempre as sociedades se adaptam quando as mudanças se fazem necessárias. No caso da Amazônia, ela entrou muito tarde nas cogitações dos diversos Estados-Nação, quase sempre considerada uma questão territorial, jamais um espaço político a ser integrado no corpo da nacionalidade. Infelizmente, essa integração sempre foi buscada sem que se reconhecesse a complexidade das sociedades amazônicas, seu meio ambiente e seu espaço cultural. O tempo exato para essa integração não foi obedecido e o resultado foram os desastres sucessivos. Conhecer melhor a Amazônia talvez seja a forma mais eficiente de superar os erros e até sarar as feridas. Por fim, espero que seja um livro para aqueles leitores curiosos, que desejam sinceramente entrar em contato com uma tradição magnífica e dolorosa escrita com emoção e simpatia aos agentes sociais quase sempre esquecidos: o povo amazônico e as etnias indígenas.