As memórias de Jodorowsky, de suas experiências com Mestre Takata e com um grupo de magas que influenciaram seu crescimento espiritual estão descritas neste livro. Revela como a mesma visão espiritual mostrada em El Topo reverteu para a sua própria jornada.
Capa comum: 280 páginas Editora: Gryphus Editora; Edição: 1 (8 de agosto de 2016) Idioma: Português ISBN-10: 8583110530 ISBN-13: 978-8583110538 Dimensões do produto: 22,8 x 16 x 1,8 cm
Leia trecho do livro
Para Marianne Costa,
maga entre as magas
Mu, mu, mu, mu
Mu, mu, mu, mu
Mu, mu, mu, mu
Mu, mu, mu, mu
Wumem Huikai (1183-1260)
Falou o boi e disse mu
PROVÉRBIO ESPANHOL QUE SE USA PARA AQUELES QUE HABITUALMENTE PERMANECEM CALADOS
E QUANDO DIZEM ALGO É UMA TOLICE
Prólogo
Apesar de ter escrito estas memórias em estilo romanceado, todos os personagens, lugares, acontecimentos, livros e sábios citados são reais.
Por ter sido educado por um pai comerciante, cuja única sabedoria consistia nestas duas frases, “Comprar barato e vender caro” e “Não acreditar em nada”, careci de um mestre que me ensinasse a apreciar a mim mesmo, os outros e a vida. Desde a adolescência, com a sede de um explorador perdido num deserto, busquei um guia que proporcionasse uma meta à minha inútil existência. Leitor voraz, só encontrei na literatura divagações de autores pretensiosos. Uma frase cínica de Marcel Duchamp me fez fugir de tal conjunto de descrições inúteis: “Não existem fins. Construímos tautologicamente e não chegamos a nada”.
Busquei consolo em livros de filosofia oriental onde, como se a um salva-vidas, me aferrei ao conceito de “iluminação”. Buda Sakyamuni havia-se iluminado meditando sob uma árvore. Segundo seus discípulos, o santo viu a verdade autêntica, deixando definitivamente de preocupar-se com o fato de se continuaria ou não existindo depois da morte… Vinte e oito gerações depois, Bodhidharma, na China, meditou em silêncio durante nove anos de cara para a parede, até que encontrou em sua mente esse vazio insondável semelhante a um céu imaculado no qual já não se distingue nem a verdade nem a ilusão. O desejo de libertar-me da angústia de morrer, de não ser nada, de não saber nada, me fez embarcar com fanatismo na busca dessa mítica iluminação: tentando chegar ao silêncio, desliguei-me de minhas ideias, e para isso escrevi em um caderno a lista de minhas convicções e o queimei. E exigindo em minhas relações sentimentais a paz, recusei me entregar a quem quer que fosse, estabelecendo com as mulheres laços sempre precários, protegendo meu individualismo por trás de muros de gelo. Ao encontrar-me com Ejo Takata, meu primeiro mestre autêntico, desejei que ele me conduzisse à iluminação eliminando do meu espírito as ideias loucas que eu ainda não conseguira desenraizar, mas sentindo-me –
Os sentimentos já não me dominam: mente vazia, coração vazio. Quando pronunciei esta frase diante do japonês, ele me respondeu com um monte de gargalhadas. Fiquei desconcertado. Ele logo me disse:
– Mente vazia, coração vazio: delírio intelectual. Mente vazia, coração cheio: é assim que deve ser.
Este livro é o testemunho de dois trabalhos: o primeiro com o mestre, que consiste em domar o intelecto. O segundo com as Magas, que consiste em romper as couraças emocionais até tomar consciência de que a vacuidade tão procurada é uma flor que encontra suas raízes no solo do amor.
Embora neste livro eu fale de quatro magas, deixei de retratar outras três: Pachita, María Sabina e Violeta Parra. A curandeira Pachita está ausente porque minha experiência com ela, que mudou minha vida, foi descrita por completo em dois de meus livros: A dança da realidade e Psicomagia . Há um detalhe porém que, talvez por pudor, não contei: eu assistia a uma de suas operações mágicas em que “lo Hermano”
(Pachita em transe) devia abrir, com sua faca de caça, o peito de um doente para trocar seu coração. (Um novo órgão esperava dentro de um frasco. Mas onde o havia conseguido a maga? Mistério. E por que nós, as maravilhadas testemunhas, achávamos totalmente natural que para curar um coração enfermo, mas vivo, era só substituí-lo por um morto? Mistério.)
Em plena operação (sangue, odor pestilento, penumbra, gritos do paciente), ela pegou o dedo anular da minha mão esquerda e, com um só gesto, colocou nele uma argola de ouro. O anel entrava perfeitamente, como se houvesse sido feito sob medida. Pachita, sem se preocupar com minha reação, continuou operando: extraiu uma palpitante massa de carne (que seu filho apressadamente envolveu em papel negro e levou ao banheiro para queimá-la), colocou o coração morto na ferida sanguinolenta e, apoiando as palmas sobre ela, fechou-a. Quando esfregamos o peito com álcool, vimos que não ficara nenhuma cicatriz, apenas uma pequena equimose triangular.
Cheguei em casa impressionado e dormi profundamente. Quando acordei, a argola não estava mais no meu dedo. Por mais que a procurasse durante horas, não consegui encontrá-la. O que Pachita quis me dizer? Estava me propondo um casamento espiritual? É possível. Meu contato com ela me permitiu, anos mais tarde, criar a Psicomagia e o Psicoxamanismo. Sabia a curandeira que isto ia acontecer e o desejava e fez tudo para provocá-lo? Mistério.
Ausente também está María Sabina, a sábia dos cogumelos. Quando entrei em contato onírico com ela, que idade teria? Cem anos? Talvez mais…
Nunca a vi pessoalmente, pois para isso teria tido que subir a serra mazateca por uma brecha estreita rodeada de precipícios, até chegar a Huautla, no México, após dez horas de carro.
Na verdade, nunca me propus a procurar a “Abuelita”. Foi ela quem me procurou. Enquanto preparava meu filme A montanha sagrada, eu havia criado um espetáculo de marionetes, Mãos ao alto, que mostrava as visões produzidas por um alucinógeno chamado Semente da Virgem, ololiuhqui na língua náhuatl, ou “coisa redonda”, um LSD natural que os toltecas e astecas consideravam uma divindade e ao qual prestavam culto.
No teatro Casa da Paz, enquanto estava trepado numa escada para fixar um refletor de cena e mascava um punhado dessas sementes, tive uma visão: vi a totalidade do universo, uma compacta mistura de luzes que tinha a forma de um corpo redondo em perpétua expansão e em plena consciência. A impressão foi tal que, soltando um grito, perdi o equilíbrio e caí de pé, torcendo os tornozelos. Após algumas horas eles incharam, causando-me fortes dores. Depois de ingerir vários calmantes, adormeci. Em sonho fui um lobo que coxeava com as duas patas traseiras feridas. Então apareceu María Sabina. Mostrou-me um enorme livro branco, repleto de luz.
– Meu pobre animal: esta é a palavra perfeita, a linguagem de Deus. Não se preocupe por não saber ler. Entre nessas páginas, faça parte dele.
Avancei até aquela luz. Ela penetrou todo o meu corpo, menos as patas traseiras. A anciã as acariciou com um amor tão grande que despertei em prantos. Com surpresa, vi que meus tornozelos, completamente desinchados, não me causavam a menor dor. De maneira alguma pensei que era a curandeira mazateca em pessoa quem havia vindo em meu auxílio: atribuí sua imagem a uma construção do meu inconsciente e fiquei feliz por ter sido capaz, através de um sonho terapêutico, de me autocurar. Antes disso, por intermédio de um amigo pintor, Francisco Fierro, parece que eu já havia sido contatado por María Sabina. Francisco, ao regressar de Hualtla, onde fora comer cogumelos com a curandeira, me entregou um frasco cheio de mel no qual repousavam seis pares de “menininhos santos”.
– É um presente enviado por María Sabina. Ela viu você em sonhos. Parece que você vai realizar uma obra que vai fazer com que os valores de nosso país sejam reconhecidos no mundo. Hoje em dia os hippies estão arruinando as antigas tradições. Hualtla foi invadida por turistas, traficantes, doutores, jornalistas, soldados e oficiais de justiça. Os meninos santos perderam sua pureza. Esses doze apóstolos são extraordinários: foram benzidos pela Abuelita. Coma todos eles.
Já narrei em A dança da realidade esta experiência com os cogumelos mágicos. Devo confessar que duvidei de meu amigo pintor. Talvez a anciã nunca houvesse sonhado comigo. Provavelmente Francisco, com a melhor das intenções, havia inventado essa história. Custava-me crer que alguém pudesse, através dos sonhos, atuar sobre a realidade. Pelo contrário, meu amigo afirmava que os cogumelos continham toda a sabedoria do antigo México. Comia-os com frequência e não hesitava em dá-los de comer para suas filhas, duas estranhas criaturas de cinco e seis anos, com grandes olhos de adulto. Qual não foi minha surpresa quando, na mesma manhã em que acordei com os tornozelos desinchados, ele me telefonou para dizer:
– Hoje à noite, enquanto dormia, a Abuelita me visitou para dizer que ia curar você. Como foi que você acordou?
Era uma coincidência? Um ato de telepatia? Podia María Sabina entrar em meus sonhos e, a partir dessa dimensão onírica, curar-me? Minha intuição diz que sim, minha razão diz que não. Este é o motivo pelo qual não a incluo neste livro, pois poderia não ser mais do que uma ilusão minha. No entanto, ilusão ou verdade, até o dia da sua morte, María Sabina apareceu em meus sonhos – nos momentos difíceis – e sempre me foi de grande utilidade.
A terceira ausente é a cantora chilena Violeta Parra. Sua fama é tão grande – admiraram-na poetas como Pablo Neruda (“santa de argila pura”), Nicanor Parra (“ave do paraíso terreno”), Pablo de Rokha (“simplicidade subterrânea”) e tantos outros – que é muito pouco o que posso revelar sobre ela. Eu a conheci em Paris, onde residiu em duas ocasiões. Primeiro em 1954 (por dois anos) e depois em 1961 (por três anos). No primeiro período, ainda sem ser famosa, cantou em um pequeno cabaré do Quartier Latin, o L’Escale, para ganhar a vida. Seu salário miserável só dava para pagar um quarto em hotel de uma estrela e nele cozinhar uma modesta refeição ao estilo chileno – picadinho de carne e legumes, milho verde cozido, salada de tomate com cebola –, que muitas vezes dividiu com seus seis principais amigos, um dos quais era eu. Ela conta em seu livro Décimas. Autobiografia em versos:
Como manda a lei
em tudo há que se fazer justiça;
eu a cumpro com delícia
e aqui vou nomeando seis
arcanjos, como vês, eles
me abrigam com sua amizade,
me brindam conformidade
nesse mundo distante
e, ao me oferecerem a mão,
faz-se luz na escuridão.
Repito e volto a dizer,
um raminho de coentro
para meu amigo Alejandro,
que me acolheu em Paris
com uma flor de aleli
e um amistoso sorriso,
tua mão foi uma delícia
lá naquela vida ausente;
ontem plantaste sementes,
que hoje florescem e dão frutos.
Ela diz que eu a acolhi em Paris, mas foi o contrário. Fui contagiado por sua tenacidade e energia. Violeta cantava desde as dez da noite até as quatro da manhã, depois se levantava às oito e corria para gravar os contos chilenos que havia recolhido dos lábios de velhas camponesas – “ao humano e ao divino” – para a biblioteca de etnomusicologia Chant du Monde e para a Fonoteca Nacional do Museu do Homem. Eu protestei:
– Mas, Violeta, o que você ganha com isso? Você tem que perceber que você está tomando um calote em nome da cultura!
– Não sou idiota, sei que estão me explorando. Contudo, eu faço com prazer. A França é um museu. Conservarão para sempre essas canções. Assim, vou ter guardado grande parte do folclore chileno. Não me importa trabalhar de graça para o bem da música do meu país. Além do mais, tenho orgulho disso. As coisas sagradas devem existir fora do poder do dinheiro.
Violeta me deu uma lição inesquecível. Graças ao seu exemplo, sempre li o Tarô e dei conselhos de Psicomagia de graça.
Quando ela regressou a Paris, sete anos depois, já era uma cantora conhecida e respeitada no Chile, não só pela sua arte como também por suas valiosas pesquisas sobre o esquecido folclore. Gravou suas próprias canções (Gracias a la vida, entre elas) para o selo Barclay. Atuou no cenário central da festa do diário comunista L’Humanité. Apesar de tudo isso, continuou sendo uma mulher com a aparência de uma humilde camponesa e seu corpo miúdo continha uma alma de força sobre-humana. Passeando com ela pelas margens do Sena, chegamos à frente do Palácio do Louvre. – Que museu imponente! – exclamei. – O peso de tantas obras de arte, de tantas grandes civilizações nos esmaga, pobres chilenos sem tradição, com choças de palha em vez de pirâmides, com humildes potes de barro ao invés de esfinges.
– Cale-se – ela me repreendeu, altiva. – O Louvre é um cemitério e nós estamos vivos. A vida é mais poderosa que a morte. Esse edifício enorme não assusta, mesmo sendo tão pequena. Eu prometo a você que, em breve, você vai ver uma exposição de minhas obras aí dentro…
Não soube se a considerava louca ou acometida de uma ingênua vaidade. Eu a conhecia como cantora, não como artista plástica.
Violeta não tinha muito dinheiro. Comprou arame, pano barato, lã de várias cores, argila, alguns tubos de tinta a óleo. E com esse material precário criou tapetes, cântaros, pequenas esculturas e pintou quadros. Eram suas próprias obras e, ao mesmo tempo, a expressão de um folclore chileno desaparecido na realidade, mas guardado como um tesouro nas profundezas do inconsciente de minha amiga. Em abril de 1964 violeta Parra inaugurou sua grande exposição no Museu de Artes Decorativas, Pavilhão Marsan, no Palácio do Louvre!
Esta mulher incrível me ensinou que, se desejarmos algo com a totalidade do nosso ser, acabamos por consegui-lo. Com paciência e perseverança, torna-se possível aquilo que parecia impossível.