Livro ‘Querem nos calar’ por Mel Duarte

"Querem nos calar" é uma antologia de poetry slams de 15 mulheres brasileiras, organizada por Mel Duarte, abordando temas como racismo e machismo, com ilustrações de Lela Brandão e prefácio de Conceição Evaristo.

A antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta reúne poesias de 15 mulheres slammers de todas as regiões do Brasil. Os chamados poetry slams chegaram ao Brasil pelas mãos de Roberta Estrela D’Alva, em 2008, e são batalhas de poesia falada com temática livre que tem como destaque temas como racismo, machismo e desigualdade social. Com prefácio de Conceição Evaristo, o livro conta também com ilustrações de Lela Brandão e é organizado pela escritora Mel Duarte, autora de uma das performances de maior destaque da FLIP 2016 e integrante do Slam das Minas – SP. “As nossas falas de mulheres e notadamente a das mulheres negras podem ser agregadas como refrão às vozes desta antologia. Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta, é uma escrita em confronto ao silenciamento que buscam impingir sobre nós.” Conceição Evaristo

Páginas: 224 páginas; Editora: Planeta; Edição: 1 (20 de abril de 2019); ISBN-10: 8542215958; ISBN-13: 978-8542215953; ASIN: B07Q1JV5NQ

Leia trecho do livro

NOTA DA EDITORA
Querem nos calar é um projeto que preza pela força da oralidade e pela potência da palavra falada. O estilo de fala e escrita das poetas foi incorporado ao máximo no texto final. e plurais e singulares orquestrados livremente fazem parte da lírica das autoras, tendo sido, portanto, preservados.

Para as mulheres, a poesia não é um luxo. É uma necessidade vital de nossa existência. Ela dá forma à qualidade da luz sob a qual baseamos nossas esperanças e sonhos em direção à sobrevivência e à mudança, primeiro transformados em linguagem, depois em ideia, então em ação mais tangível. A poesia é a maneira pela qual ajudamos a dar nome ao inominado, para que possa ser pensado. Os horizontes mais longínquos de nossas esperanças e medos são calçados por nossos poemas, esculpidos na aventura pedregosa de nossas vidas diárias.

Audre Lorde

Livro 'Querem nos calar: Poemas para serem lidos em voz alta' por Mel Duarte

Apresentação

ROMPENDO O SILÊNCIO ATRAVÉS DA POESIA FALADA

por Mel Duarte

Metal algum pode cavar mais do que a pá da palavra.
Hilda Hilst

A poesia falada nada mais é do que uma herança cultural, uma memória deixada em nossos genes por quem nos antecedeu. A oralidade era utilizada como forma de manter os costumes e crenças vivos, desde a Grécia Antiga, passando pelos trovadores provençais e os griots, e desde então vem sendo inserida em diversos movimentos como o beatnik, o dos direitos civis e a afirmação negra norte-americana, chegando aos poetas de rua, aos saraus e, hoje, aos slams.

A cada geração, adapta-se a utilização da palavra para contar sua história, deixar o seu legado e isso, no contexto atual, nos permite romper com um ciclo de mulheres silenciadas e compartilhar nossa visão de mundo numa sociedade patriarcal que quer nos limitar a todo momento e que, desde o começo dos tempos, dita a disposição de nossos corpos e de nossas falas.

Este livro tem como intenção trazer à tona o poder da poesia falada pela ótica das mulheres que sempre estiveram presentes na história apesar de pouco divulgadas. Aqui estão quinze representantes das cinco regiões do Brasil: representando o Norte temos Arma Suav e Bor Blue; o Centro-Oeste, Danielle Almeida e Meimei Bastos; o Nordeste, Bell Puã e Negafya; o Sudeste, Laura Conceição, Letícia Brito, Luiza Romão, Luz Ribeiro, Dall Farra, Mariana Felix, Roberta Estrela D’Alva, Ryane Leão; e o Sul, Cristal Rocha. Com suas palavras e presença dentro dos slams, essas mulheres mudaram o conceito de poesia, tirando-a do pedestal hegemônico pelo qual sempre nos foi apresentada e provando que a escrita e a fala de uma mulher podem mudar padrões sociais e servir de ferramentas para a construção de uma nova dialética.

Num país com a quinta maior taxa de feminicídío do mundo, onde mais de dez mulheres são assassinadas por dia, só não enxerga a importância desse avanço para nós quem sempre teve sua voz ouvida e propagada.

Quando nós, mulheres, escrevemos, partilhamos nossas perspectivas de existência, e saudamos as que vieram antes, buscando incentivar as que aqui estão e visando novas eras para as que virão depois, deixando à mostra nossas alternativas de sobrevivência.

Mas o que é esse tal de slam e como essas mulheres chegaram até aqui?

O poetry slam (batalha de poesia) teve início na década de 1980, em Chicago, nos Estados Unidos, com o poeta Marc Smíth, mas foi pelas mãos de uma mulher, Roberta Estrela D’Alva, que o movimento chegou ao Brasil, especificamente na cidade de São Paulo, em 2008. Foi quando Roberta, juntamente com o coletivo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, criou o “ZAP! Zona Autônoma da Palavra”, surgindo assim o primeiro slam brasileiro.

Com o surgimento do ZAP!, poetas que já frequentavam a cena dos saraus paulistanos encontraram mais um lugar onde sua arte pudesse ser vista e ouvida, onde seus corpos pudessem se expressar. Ainda hoje as regras gerais para participar de um siam seguem as mesmas, com pequenas variações: são necessários três poemas de autoria própria que serão declamados durante rodadas eliminatórias, podendo ter até três minutos cada; não são permitidos adereços, figurinos nem acompanhamento musical, e as notas, de zero a dez, são dadas por um júri popular.

O termo “spoken word” (palavra falada) foi apresentado a essa geração, a mesma que hoje o entende como uma profissão. São os chamados slammers, artistas que competem nessa modalidade e que declamam seus textos acompanhados de performances.

O slam é um espaço poético-político, democrático, que tem como principal conceito a liberdade de expressão, fazendo do livre diálogo uma ferramenta para a construção de novos horizontes. E, para além de um espaço de fala, é também um convite à escuta.

Aos poucos esse movimento foi tomando força e hoje, onze anos depois de sua chegada ao Brasil, o poetry slam já alcançou pelo menos 18 dos 26 estados do país, sendo que oito deles possuem um recorte feminino, ou seja, onde só mulheres (héteras, lésbicas, bis ou trans) podem batalhar.

A importância em se criar um slam com essa configuração é histórica, pois a sociedade que vivemos nos cria para obedecer sem questionar, para os afazeres domésticos, para a subserviência, mas não para nos posicionar, para sermos propositoras, para subir num palco e pegar um microfone, e quando assim fazemos, somos interrompidas, desvalorizadas. Dessa forma, nós crescemos com o peso do silenciamento, mas logo entendemos que, se não há espaços que nos valorizam, nós devemos criá-los.

Não foi uma tarefa fácil selecionar apenas quinze nomes dentre as muitas representantes que temos hoje na poesia falada, e eu desejo que este livro abra espaço para debatermos sobre essa cena e desperte outros projetos a fim de contemplar nossa vasta representatividade. O que prezamos aqui é a identidade de fala de cada participante, a poética regional e a estrutura de linguagem.

Hoje, aos 30 anos de idade, sendo 13 deles dedicados à palavra e acompanhando o crescimento das mulheres dentro da poesia, me sinto honrada em dizer que sou contemporânea das minhas heroínas!

Livro 'Querem nos calar: Poemas para serem lidos em voz alta' por Mel Duarte

PREFÁCIO

por Conceição Evaristo

não serei anônima […] toda mulher que fala é invencível.
Ryane Leão


Apresentar um livro é sempre uma tarefa perigosa, pois uma apresentação pode resvalar em profundos enganos. Ou ainda se tornar um exercício desconcertante, enfadonho, se não houver uma empatia com a escrita que está sendo apresentada. Mas não é esse o caso desta apresentação, ao contrário. Como apresentar um texto em que a leitura me seduz e aprofunda o meu desejo de escrever um rap? Portanto, não componho aqui uma apresentação da antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta, mas uma tentativa de falar junto com as autoras dos poemas. Ao compor este texto, me coloco apenas como uma leitora que encontra, nas vozes desta coletânea, um lugar em que as falas de outras mulheres, assim como a minha, se compactuam, se encontram no que está dito, no que está escrito. As nossas falas de mulheres e notadamente a das mulheres negras podem ser agregadas como refrão às vozes desta antologia. Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta é uma escrita em confronto ao silenciamento que buscam impingir sobre nós.

Tudo na antologia comemora a posse da palavra em consonância com a posse do corpo-mulher, em sua autodescrição. E nesse ato se afirma a mulher que se nomeia, a que fala e que por isso se torna invencível, como nos diz Ryane Leão, em um de seus poemas. Outro ato de posse se concretiza como um gesto de insurreição. A publicação da antologia que coloca em destaque a escrita de 15 mulheres, que ousam assinalar um terreno, cuja posse é marcadamente dos homens. Afirma-se aqui a ousadia de vozes de mulheres. “Na rua tem arte/Nos muros tem arte/Tudo é arte”, proclama Danielle Almeida. E segundo a compreensão de Luiza Romão a “poesia é mais que denúncia é revide”. Pode ser apreendida a mesma proposição de que a palavra pode se converter em instrumento de luta individual e coletiva, nos versos de Negafya, quando se lê: “vamos usar a nossa arma/ que é a palavra”. Em consonância com as vozes anteriores, Mariana Felix diz: “Eu quebro ele é na palavra/ Eu ando armada/ Da melhor arma”. Bor Blue também está convencida do poder da palavra como forma de enfrentamento e conquista, ao escrever “Eu pego a caneta, tu pega arma, eu conquisto na palavra e tu dispam…”

Fazer da criação poética instrumento de proposição de luta começa pelo próprio não uso da norma da língua. Conscientemente a “norma certa”, como advogam os puristas, é confrontada, esfacelada, “agredida”. Há uma escolha conscienciosa por uma forma de linguagem, a qual tenho chamado de “gramática do cotidiano”, isto é: o expressar que surge da comunicação inventada, gestada, gerida no meio do povo. Surge então nos poemas, uma língua dinamizada por uma fala que precisa e busca expor as incertezas, as injustiças, os enfrentamentos do dia a dia do povo. Uma linguagem para contar em versos, as mazelas, as incertezas e também para celebrar as alegrias de quem tem pouco ou nenhum espaço para dizer. Por isso são criações em que se enxugam as palavras, conscientemente. Singularizam artigos que acompanham substantivos plurais, dispensam as desinências verbais nas mais variadas construções, mas todas sabem que as dores, o andar na corda bamba, são situações vivenciais de múltiplos sujeitos. A intenção de garantir uma “gramática do cotidiano” aparece nos versos de Bell Puã, que questionam as regras da língua. “eles querem que/ eu use língua formal/ e muitas metáforas/ que eu jogue o jogo da vida/ com suas táticas/ fazer rap?”

Apropriar-se da língua escrita para registrar uma performance fundamentada na oralidade é também revisitar a história de uma língua imposta… Por isso Luz Ribeiro escreve: “eu tenho uma lingua solta/ que não me deixa esquecer/ que cada palavra minha/ é resquício da colonização”. Meimei Bastos nos recorda do que não foi escrito e do que não foi e é dito, que pode ser lido e colhido nas entrelinhas. Tudo é verbo. Tudo é palavra. Ela diz: “há coisas nas entrelinhas/ que não foram escritas/ nem lidas/ mas são verbos/ é preciso lutar.”

Não só uma “gramática do cotidiano” está na base da criação poética da maioria dos textos que compõem a antologia. Figuras e situações comuns aparecem como desenhos no interior dos poemas. Imagens que denunciam o jogo estético e ideológico buscado como inspiração. Uma mulher portando uma sacola é uma visão comum na ambiência de uma comunidade pobre, embora não somente ali. Laura Conceição, dizendo de sua própria criação, enuncia que: “trouxe versos na sacola”. Criadora e imagem criada se confundem.

Buscando uma linguagem, ritmada a partir de seus intentos e desejos, de suas tensões, apaziguamentos e gozos da linguagem, as poetas se afirmam em seus oficios de corpo, voz e escrita. Na construção de seus poemas afiançam a certeza de uma lírica própria. Anna Suav afirma que “Aonde uma preta chega, tudo certo, é tudo nosso”. Cristal Rocha se reconhece como alguém que “nasceu dependente lírica” Dall Farra se coloca como alguém que tem a escrita na veia, ao dizer que de tudo que ela escreveu tudo “sangra até agora”. A poesia se constitui como algo a perseguir, a buscar em suas vidas, ora como indagações, ora como certezas. Com Letícia Brito apesar da aridez dos tempos, nos rejubilamos, pois ela garante que a poesia ainda está com ela, ao escrever: “a poesia ainda me toca”. Roberta Estrela D’Alva tendo como mote os vocábulos “adeus” e a expressão “a Deus” assim como os termos “vós” e “voz” institui um ínstigante jogo semântico, em uma de suas criações. A poeta e slammer conclui que duvidar de sua voz seria também duvidar da existência de Deus. A voz poética teria uma função demiúrgica?

Sigamos, façamos das vozes presentes na antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta cânticos de coragem, senhas amorosas, signos de encontros umas com as outras.

Livro 'Querem nos calar: Poemas para serem lidos em voz alta' por Mel Duarte

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