Livro ‘O Futuro do Capitalismo’ por Paul Collier

Baixar PDF 'O Futuro do Capitalismo' por Paul Collier
Enfrentando as novas inquietações
"Todos sabem que o sistema econômico capitalista e sua contraparte política – a socialdemocracia que caracterizou a maioria dos países desenvolvidos do Oci­dente nas últimas décadas – estão em cri­se. Mas poucos têm uma visão tão agu­çada de como chegamos a tal colapso quanto o economista do desenvolvimento britânico Paul Collier. Profundas fissuras estão esgarçando o tecido das nossas sociedades: metrópoles dinâmicas versus o interior; os mais instruídos contra os menos instruídos, países ricos versus países em desenvolvimento. Tais ra­chaduras têm se agravado com o tempo, e nós perdemos o sentimento de coletivi­dade e de obrigação ética para com os outros que foi tão crucial...
Páginas: 302 páginas  Editora: L± Edição: 1 (17 de julho de 2019)  ISBN-10: 8525438677  ISBN-13: 978-8525438676  ASIN: B07SS5QCH1

Clique na imagem para ler o livro

Biografia do autor: Paul Collier é professor de Economia e Políticas Públicas na Universidade de Oxford. Lecionou na Universidade de Harvard e na Sciences Po em Paris, além de ter sido diretor do Centro de Estudos de Economias Africanas em Oxford. Foi diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento do Banco Mundial. É autor do premiado The Bottom Billion, de The Plundered Planet e Exodus, além de coautor de Refuge. É colaborador do The New York Times, Financial Times, Wall Street Journal e Washington Post.

Leia trecho do livro

Leia online 'O futuro do capitalismo: Enfrentando as novas inquietações' de Paul Collier - Neste livro polêmico e apaixonante, que recoloca a ética em lugar de destaque, o autor analisa as feridas do sistema econômico capitalista e aponta maneiras de salvá-lo dos impasses do século XXI... Baixar PDF, Download, Frases de Paul Collier, Resenha, Resumo, Análise e Critica...

PARTE UM

A crise

1

novas inquietações

PAIXÃO E PRAGMATISMO

Fissuras profundas vêm esgarçando o tecido de nossas sociedades. Elas trazem novas inquietações e novos ódios ao nosso povo e novas paixões à nossa política. As bases sociais dessas inquietações são geográficas, educacionais e morais. As regiões periféricas se revoltam contra as metrópoles, o norte da Inglaterra contra Londres, o interior contra o litoral. Os menos instruídos se revoltam contra os mais instruídos. Os trabalhadores em dificuldade se revoltam contra os “parasitas” e os “caçadores de renda”. A mão de obra interiorana e menos instruída substituiu o proletariado como força revolucionária da sociedade: os sans culottes foram substituídos pelos sans cool. Então, o que anda enraivecendo essas pessoas?

A localidade se tomou uma faceta das novas queixas; depois de passarem muito tempo encolhendo, as desigualdades econômicas geográficas agora vêm se ampliando rapidamente. Em toda a América do Norte, Europa e Japão, as áreas metropolitanas estão dando um enorme salto em comparação ao restante da nação. Além de enriquecerem muito mais do que o interior, estão se distanciando socialmente e não representam mais a nação que, muitas vezes, tem sua capital nessas mesmas metrópoles.

Mas, mesmo dentro das dinâmicas metrópoles, esses ganhos econômicos extraordinários se inclinam maciçamente para um lado só. Quem tem se saído bem não são capitalistas nem trabalhadores comuns: são os instruídos com novas qualificações. Fundiram-se numa nova classe, encontrando-se na universidade e desenvolvendo uma nova identidade em comum, na qual o apreço decorre do grau de qualificação. Chegaram até a criar uma moral específica, elevando características como a etnicidade e a orientação sexual minoritárias a identidades de grupo, como vítimas. Tomando como base seu interesse específico por grupos de vítimas, alegam ser moralmente superiores aos menos instruídos. Ao se fundirem numa nova classe dominante, os instruídos confiam mais do que nunca no governo e uns nos outros.

Enquanto as fortunas dos instruídos dispararam, elevando também as médias nacionais, os menos instruídos, tanto na metrópole quanto em nível nacional, agora estão em crise, estigmatizados como “classe trabalhadora branca”. A síndrome do declínio começou com a perda de empregos dotados de sentido. A globalização transferiu para a Ásia muitos empregos semiqualificados, e a transformação tecnológica vem eliminando muitos outros. A falta de emprego atingiu dois grupos etários especialmente vulneráveis: os trabalhadores de mais idade e os que estão em busca do primeiro emprego.

Entre os trabalhadores de mais idade, a perda do emprego muitas vezes leva à dissolução da família, às drogas, ao alcoolismo e à violência. Nos Estados Unidos, o colapso da noção de vida dotada de propósito se manifesta na queda da expectativa de vida para os brancos sem curso universitário, e isso numa época em que a velocidade inédita dos avanços médicos vem trazendo um rápido aumento na expectativa de vida para os grupos mais favorecidos. Na Europa, as redes de proteção social atenuam as consequências mais extremas, mas a síndrome é igualmente generalizada, e a expectativa de vida também vem caindo nas cidades mais falidas, como Blackpool. Os trabalhadores supérfluos, acima dos cinquenta anos, bebem a borra do desespero. Os jovens menos instruídos, porém, não têm se saído muito melhor. Em grande parte da Europa, os jovens enfrentam o desemprego em massa: atualmente, um terço dos jovens italianos estão desempregados, numa gravidade de falta de empregos que não se via desde a Depressão dos anos 1930. Existem levantamentos mostrando um nível de pessimismo sem precedentes entre a juventude: inúmeros jovens estimam que terão um padrão de vida inferior ao dos pais. E isso não é exagero; as últimas quatro décadas têm visto uma deterioração no desempenho econômico do capitalismo. A crise financeira mundial de 2008-2009 deixou isso muito claro, mas esse pessimismo vem crescendo aos poucos desde os anos 1980. A grande credencial do capitalismo de trazer uma melhora constante no padrão de vida geral deixou de ser impecável: continua a trazê-la para alguns, mas tem deixado outros de lado. Nos Estados Unidos, o centro emblemático do capitalismo, metade da geração dos anos 1980 está pior, em termos absolutos, do que a geração de seus pais quando tinham a mesma idade. Para eles, o capitalismo não funciona. Em vista dos enormes avanços na tecnologia e nas políticas públicas que se verificam desde 1980, esse fracasso é desconcertante. Tais avanços, que dependem do próprio capitalismo, viabilizam plenamente que todos alcancem melhorias substanciais. No entanto, agora a maioria crê que a vida de seus filhos será pior do que a deles. Entre os trabalhadores brancos americanos, esse pessimismo atinge um patamar assombroso de 76%. E os europeus são ainda mais pessimistas do que os americanos.

O ressentimento dos menos instruídos é permeado de medo. Reconhecem que os instruídos estão se distanciando, social e culturalmente. E concluem que tanto esse distanciamento quanto o surgimento de grupos mais favorecidos, que lhes parecem abocanhar os benefícios, enfraquecem suas legítimas pretensões de auxilio. A erosão da confiança no futuro de sua rede de proteção social se dá no exato momento em que mais precisam dela.

O ressentimento dos menos instruídos é permeado de medo. Reconhecem que os instruídos estão se distanciando, social e culturalmente. E concluem que tanto esse distanciamento quanto o surgimento de grupos mais favorecidos, que lhes parecem abocanhar os benefícios, enfraquecem suas legítimas pretensões de auxilio. A erosão da confiança no futuro de sua rede de proteção social se dá no exato momento em que mais precisam dela.

A inquietação, a raiva e o desespero destroçaram as lealdades políticas das pessoas, a confiança que tinham no governo e até mesmo a confiança entre elas. Os menos instruídos estiveram no centro das revoltas que viram a vitória de Donald Trump sobre Hillnry Clinton nos Estados Unidos; a vitória do Brexit sobre a permanência no Reino Unido; os partidos insurgentes de Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon obtendo mais de 40% dos votos na França (reduzindo os socialistas governistas a menos de 10%); um tal encolhimento da aliança entre a democracia cristã e a social-democracia na Alemanha a ponto de converter a MD (Alternativa para a Alemanha), de extrema direita, na oposição oficial no Bundestag. Ao divisor educacional somou-se o divisor geográfico. Londres votou maciçamente pela permanência; Nova York votou maciçamente em Clinton; Paris evitou Le Pen e Mélenchon, e Frankfurt evitou a MD. A oposição radical veio do interior. As revoltas estavam relacionadas com a idade, mas não se resumiam a um mero velhos versus jovens. Tanto os trabalhadores de mais idade, que foram marginalizados quando suas qualificações perderam valor, quanto os jovens, ingressando num mercado de trabalho desanimador, foram para os extremos do espectro político. Na França, a extrema direita de feições remodeladas teve uma votação desproporcional entre os jovens; na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, foi a extrema esquerda de feições remodeladas que teve votação desproporcional entre eles.

A natureza tem horror ao vácuo, e os eleitores também. A frustração decorrente desse abismo entre os fatos e o que é possível fazer impulsionou dois tipos de políticos que aguardavam nos bastidores: os populistas e os ideólogos. Na última vez em que o capitalismo desandou, nos anos 1930, aconteceu a mesma coisa. Os perigos nascentes foram cristalizados por Aldous Huxley em Admirável mundo novo (1932) e por George Orwell em 1984 (1949). O fim da Guerra Fria em 1989 parecia oferecer a perspectiva plausível de que todas essas catástrofes haviam ficado para trás: chegáramos ao “fim da história”, a uma utopia permanente. Em vez disso, estamos diante da perspectiva plausível até demais de nossa própria distopia.

As novas inquietações receberam pronta resposta das velhas ideologias, devolvendo-nos à surrada e descabida oposição entre esquerda e direita. Uma ideologia oferece a sedutora combinação entre fáceis certezas morais e uma análise que se aplica a tudo, fornecendo uma resposta confiante a qualquer problema. As ideologias do marxismo oitocentista, do fascismo novecentista e do fundamentalismo religioso seiscentista, agora retomadas, já atraíram várias sociedades para a tragédia. Após o fracasso, essas ideologias perderam a maioria de seus adeptos e, assim, havia poucos políticos ideólogos disponíveis para liderar essa retomada. Os disponíveis pertenciam a minúsculas organizações residuais: gente com gosto pela psicologia paranoica do culto, ofuscada demais para enfrentar a realidade do fracasso que ocorrera. Na década que antecedeu a derrocada do comunismo em 1989, os marxistas restantes pensavam estar vivendo no “capitalismo tardio”. A memória pública dessa derrocada agora está a uma distância suficiente para ser possível tentar uma retomada: há uma nova enxurrada de livros sobre o tema.

Rivalizando em poder de sedução com os ideólogos, há a outra espécie de político, o populista carismático. Os populistas dispensam até a mais rudimentar análise de uma ideologia, saltando diretamente para soluções que soam verdadeiras durante meio minuto. Assim, a estratégia deles é desviar os eleitores de uma reflexão mais profunda usando um caleidoscópio de entretenimentos. Os líderes com essas habilidades vêm de outro grupo minúsculo: as celebridades da mídia.

Embora prosperem com as inquietações e raivas geradas pelas novas fissuras, tanto os ideólogos quanto os populistas são incapazes de saná-las. Essas fissuras não são repetições do passado; são fenômenos novos e complexos. Mas, no processo de implementar suas fervorosas “curas” mágicas, esses políticos são capazes de cangar enormes danos. Na verdade, existem soluções viáveis para os processos prejudiciais em curso em nossas sociedades, mas não derivam da paixão moral de uma ideologia nem do salto gratuito do populismo. São construídas a partir de dados e análises e, assim, requerem a serenidade mental do pragmatismo. Todas as políticas apresentadas neste livro são pragmáticas.

Mas também há lugar para a paixão, e ela permeia o livro. Eu mesmo, durante minha vida, estive dividido entre as três graves fissuras que se abriram em nossas sociedades. Mantive a cabeça serena, mas meu coração ficou destroçado.

Vivi o novo divisor geográfico entre a metrópole próspera e as cidades falidas do interior. Sheffield, onde nasci, tornou-se o próprio símbolo da cidade falida, com a ruína do setor siderúrgico que foi imortalizada no filme Ou tudo ou nada. Vivi essa tragédia: nosso vizinho ficou desempregado; um parente só encontrou serviço limpando banheiros. Nesse meio-tempo, eu me mudara para Oxford, que se tornou o principal centro do sucesso metropolitano: na área onde moro, a proporção entre o preço do imóvel e o rendimento é agora a mais alta de toda a Inglaterra.

Vivi o divisor da qualificação e da disposição de espírito entre famílias de imenso sucesso e famílias se desintegrando na pobreza. Aos catorze anos, minha prima e eu formávamos uma dupla: nascidos no mesmo dia, filhos de pais sem instrução que haviam conseguido vaga na escola. A vida dela desandou com a morte prematura do pai; destituída daquela figura de autoridade, tomou-se mãe adolescente, com os problemas e as humilhações que acompanham tal situação. Enquanto isso, minha vida avançava pelos vários degraus de transformação, saindo da escola com uma bolsa para Oxford. A partir daí, novos degraus me levaram a cátedras em Oxford, Harvard e Paris; como se isso não bastasse para meu amor-próprio, um governo trabalhista me agraciou com a Comenda do Império Britânico, um governo conservador me agraciou com o título de cavaleiro e meus colegas na Academia Britânica me agraciaram com a Medalha Presidencial. Depois que se inicia, o distanciamento tem sua dinâmica própria. Aos dezessete anos, as filhas de minha prima já eram também mães adolescentes. Minha filha de dezessete anos tem uma bolsa de estudos numa das melhores escolas do país.

Por fim, vivi o divisor global entre a exuberante prosperidade dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da França, países onde vivi no conforto, e a pobreza desesperadora da África, onde trabalho. Meus alunos, na maioria africanos, enfrentam esse vívido contraste ao fazerem suas escolhas de vida depois da graduação. Atualmente, um estudante sudanês, médico que trabalha na Grã-Bretanha, está diante da escolha de ficar no país ou voltar ao Sudão para trabalhar no gabinete do primeiro-ministro. Sua decisão é voltar: é um caso excepcional; há mais médicos sudaneses em Londres do que no Sudão.

Essas três terríveis clivagens não são apenas problemas que estudo; são as tragédias que vieram a definir meu senso de propósito na vida. Foi por isso que escrevi este livro: quero mudar essa situação.

O TRIUNFO E A EROSÃO DA SOCIAL-DEMOCRACIA

Sheffield é uma cidade antiquada, mas isso fortalece os laços entre as pessoas, e esses laços já foram no passado uma importante força política. As cidades do norte da Inglaterra foram as pioneiras da Revolução Industrial, e suas populações foram as primeiras a enfrentar as novas inquietações trazidas por ela. Ao reconhecer que tinham uma ligação em comum com o lugar onde cresceram, várias comunidades como a de Sheffield criaram cooperativas que respondiam a essas inquietações. lançando mão da afinidade, criaram organizações que colhiam os frutos da reciprocidade. Cooperativas de construção barateavam os custos para construir casas; outra cidade de Yorkshire, Halifax, deu origem àquele que se tomou o maior banco britânico. Cooperativas de seguro permitiam às pessoas a redução de riscos. Cooperativas agrícolas e varejistas davam poder de negociação aos agricultores e aos consumidores diante dos grandes empresários. A partir das experiências no norte da Inglaterra, o movimento cooperativo rapidamente se expandiu por grande parte da Europa.

Ao se unirem, essas cooperativas serviram de base para os partidos políticos de centro-esquerda: os partidos da social-democracia. Os benefícios da reciprocidade dentro de uma comunidade se ampliaram quando a comunidade passou a ser uma nação. Como nas cooperativas, a nova pauta política era prática, fundamentada nas preocupações que cercam a vida das famílias comuns. Na era do pós-guerra, muitos desses partidos social-democratas chegaram ao poder na Europa e o usaram para implantar um amplo leque de políticas pragmáticas que atendiam com eficiência a essas preocupações. Assistência médica, aposentadoria, acesso ao ensino, seguro-desemprego: a legislação lançou essas medidas em cascata, mudando a vida das pessoas. Mostraram-se tão valiosas que passaram a ser aceitas em todo o leque central do espectro político. Partidos de centro-esquerda e centro-direita se alternavam no poder, mas as políticas sociais permaneciam.

Todavia, a social-democracia como força política agora se encontra numa crise existencial. A última década foi uma sucessão de desastres. Na centro-esquerda, sob as críticas de Bernie Sanders, Hillary Clinton perdeu para Donald Trump; o Partido Trabalhista britânico de Blair e Brown foi tomado pelos marxistas. Na França, o presidente Hollande decidiu nem sequer tentar um segundo mandato, e seu substituto como candidato do Partido Socialista, Benolt Hamon, teve apenas 8% dos votos. Os partidos social-democratas da Alemanha, Itália, Holanda, Noruega e Espanha despencaram nas votações. Normalmente, isso seria uma boa notícia para os políticos de centro-direita, mas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos eles também perderam o controle de seus partidos, enquanto na Alemanha e na França o apoio eleitoral a eles desmoronou. Por que aconteceram tais coisas?

A razão é que os social-democratas de direita e de esquerda se afastaram de suas origens fundadas na reciprocidade prática das comunidades e foram capturados por um grupo de pessoas totalmente diferentes, que ganharam uma influência desproporcional: os intelectuais de classe média.

Os intelectuais de esquerda eram atraídos pelas ideias de um filósofo oitocentista, Jeremy Bentham. Sua filosofia, o utilitarismo, dissociava a moral de nossos valores instintivos, deduzindo-a de um único princípio da razão: julgar-se-ia moral a ação que promovesse “a maior felicidade do maior número”. Como os valores instintivos das pessoas ficavam aquém desse critério sacrossanto, a sociedade precisava de uma vanguarda de tecnocratas de moral sólida para comandar o Estado. Essa vanguarda, guardiã paternalista da sociedade, era uma versão atualizada dos guardiães de A república de Platão. John Stuart Mill, criado como discípulo de Bentham — e que foi o outro intelectual a construir o utilitarismo —, aos oito anos de idade estava lendo A república no original grego.

Infelizmente, Bentham e Mill não eram gigantes morais modernos, equivalentes a Moisés, Jesus e Maomé; eram indivíduos estranhamente associais. Bentham era tão esquisito que, hoje em dia, pensa-se que era autista e incapaz de ter qualquer noção de comunidade. Mill teve poucas chances de normalidade: mantido propositalmente afastado de outras crianças, é provável que fosse mais familiarizado com a Grécia Antiga do que com sua própria sociedade. Em vista de tais origens, não admira que a ética de seus seguidores seja tão diferente da ética do resto de nós.

Os estranhos valores de Bentham não teriam exercido qualquer influência se não tivessem sido incorporados à economia. Como veremos, a economia desenvolveu uma explicação do comportamento humano a mais distante possível da moral utilitarista. O homem econômico é absolutamente egoísta, infinitamente ganancioso e importa-se apenas consigo mesmo. Tomou-se o fundamento da teoria econômica do comportamento humano. Mas, para fins de avaliar as políticas públicas, a economia precisava de uma medida que agregasse o bem-estar ou a “utilidade” de cada um desses indivíduos psicopatas. O utilitarismo se tornou a base intelectual dessa aritmética: “a maior felicidade do maior número”, por coincidência, prestava-se às técnicas matemáticas usuais de maximização. Tomou-se a “utilidade” como resultante do consumo, com o consumo excedente gerando incrementos sempre menores em termos de utilidade. Se a quantidade total de consumo na sociedade fosse fixa, a maximização da utilidade seria uma mera questão de redistribuir a renda para se chegar a um consumo totalmente igual. Os economistas social-democratas reconheciam que a “fatia” do consumo não era de tamanho fixo e, como a tributação desestimularia o trabalho, a fatia diminuiria. Então se desenvolveram teorias avançadas sobre a “tributação ótima” e o “problema do principal-agente” para corrigir o problema do incentivo. Em essência, as políticas públicas social-democratas estavam se tornando formas cada vez mais sofisticadas de utilizar a tributação para redistribuir o consumo, ao mesmo tempo minimizando os desincentivos ao trabalho.

Logo ficou provado que não havia nenhuma forma automática de passar das “utilidades” individuais para postulações sobre o bem-estar da sociedade que atendesse sequer a regras básicas de coerência intelectual. A profissão concordou, mas continuou fazendo a mesma coisa. Os filósofos acadêmicos, em sua maioria, abandonaram o utilitarismo por estar cheio de inadequações; os economistas fizeram vista grossa. O utilitarismo estava se demonstrando admiravelmente conveniente. A bem da verdade, de fato o utilitarismo é bastante bom no que diz respeito a várias questões de política pública; se suas falhas são devastadoras ou não, depende da política. Em questões modestas como “deve-se construir uma estrada aqui?”, às vezes o utilitarismo é a melhor técnica disponível. Mas, para questões mais amplas, é irremediavelmente inadequado.

Armada com seus cálculos utilitaristas, a economia logo se infiltrou na política pública. Platão concebera seus guardiães como filósofos, mas, na prática, geralmente eram economistas. Com o pressuposto de que as pessoas eram psicopatas, eles se viam justificados em se apresentar como uma vanguarda moralmente superior; e o pressuposto de que o objetivo do Estado era maximizar a utilidade justificava a redistribuição do consumo a todos os que tivessem as maiores “necessidades”. Inadvertidamente e, em geral, imperceptivelmente, as políticas social-democratas deixaram de se ocupar da construção dos deveres mútuos de todos os cidadãos.

Somados esses fatores, o resultado foi danoso. Todos os deveres morais passaram para o Estado, e a responsabilidade era exercida pela vanguarda moralmente confiável. Os cidadãos deixaram de ser atores morais responsáveis e ficaram reduzidos ao papel de consumidores. O planejador social e sua angelical vanguarda utilitarista sabiam o que estavam fazendo: o comunitarismo foi substituído pelo paternalismo social.

Somados esses fatores, o resultado foi danoso. Todos os deveres morais passaram para o Estado, e a responsabilidade era exercida pela vanguarda moralmente confiável. Os cidadãos deixaram de ser atores morais responsáveis e ficaram reduzidos ao papel de consumidores. O planejador social e sua angelical vanguarda utilitarista sabiam o que estavam fazendo: o comunitarismo foi substituído pelo paternalismo social.

A ilustração emblemática desse confiante paternalismo foi a política urbana do pós-guerra. O aumento no número de carros demandava viadutos e o aumento no número de pessoas demandava moradias. Em resposta a isso, destruíram-se ruas e bairros inteiros, que foram terraplanados e substituídos por viadutos e arranha-céus modernistas. Mas, para o espanto da vanguarda utilitarista, o que se seguiu foi uma reação contrária. A terraplanagem das comunidades fazia sentido se o importante fosse apenas elevar o padrão material de moradia dos indivíduos pobres. Mas ela punha em risco as comunidades que realmente conferiam sentido à vida das pessoas.

Pesquisas recentes de psicologia social nos permitiram entender melhor esse efeito adverso. Num excelente livro, Jonathan Haidt mediu valores fundamentais em todo o mundo. Ele descobriu que quase todos nós adotamos seis deles: a lealdade, a equidade, a liberdade, a hierarquia, o cuidado e a inviolabilidade.6 Os deveres mútuos construídos pelo movimento cooperativo haviam se baseado nos valores da lealdade e da equidade. O paternalismo da vanguarda utilitarista, exemplificado pelo aterro das comunidades, violava esses dois valores e também a liberdade — enquanto pesquisas recentes em psicologia social amparada na neurociência descobriram que os projetos modernistas tão amados pelos planejadores diminuíam o bem-estar ao violarem os valores estéticos comuns. Por que a vanguarda não conseguiu reconhecer essas fraquezas morais no que estavam fazendo? Mais uma vez, Haidt tem a resposta: os valores dela eram atípicos. Em vez dos seis valores abraçados pela maioria das pessoas, a vanguarda reduzira seus valores a apenas dois: o cuidado e a igualdade. Não só seus valores eram atipicos, mas suas características também: Ocidentais [Western], Educados, Industriais, Ricos e Desenvolvidos — WEIRDs, estranhos, esquisitos, em suma. O cuidado e a igualdade são os valores utilitaristas: os seguidores WEIRDs do weird [excêntrico, bizarro]. Quando é boa, a instrução aumenta nossa empatia, permitindo que nos coloquemos no lugar dos outros . Mas, na prática, muitas vezes ela faz o contrário, criando um distanciamento entre os bem-sucedidos e as inquietações existentes nas comunidades usuais. Armada com a confiança da superioridade meritocrática, a vanguarda logo se viu como a nova legião de guardiães platônicos, com direito a passar por cima dos valores dos outros. Desconfio que, se Haidt tivesse sondado mais, descobriria que os WEIRDs, embora na aparência desdenhassem a hierarquia, na verdade entendiam por hierarquia aquelas que eram herdadas do passado. Tomavam por líquida e certa uma nova hierarquia: formavam a nova meritocracia.

A reação contra o paternalismo aumentou durante a década de 1970. Potencialmente, ele poderia ter combatido o desdém pela lealdade e pela justiça e restaurado o comunitarismo; mas, em vez disso, a vanguarda investiu contra o desdém pela liberdade e exigiu que os indivíduos fossem protegidos contra as infrações do Estado, invocando seus direitos naturais. Bentham descartara a noção de direitos naturais como “bobagem pomposa”, e nisso creio que ele tinha razão. Mas os políticos com dificuldades de vencer as eleições começaram a achar conveniente a proclamação de novos direitos. Os direitos pareciam mais dotados de princípios do que as meras promessas de aumentar os gastos públicos; além disso, as promessas específicas podiam ser questionadas com base nos custos e nos impostos, ao passo que os direitos mantinham discretamente fora das vistas os respectivos deveres necessários. O movimento cooperativo estabelecera um firme vínculo entre direitos e deveres; os utilitaristas haviam dissociado ambos dos indivíduos, transferindo-os para o Estado. Agora, os libertários devolviam os direitos aos indivíduos, mas não os deveres.

Fase ímpeto na defesa dos direitos dos indivíduos se aliou a um novo movimento político que também reivindicava direitos: os direitos dos grupos desfavorecidos. Os pioneiros foram os afro-americanos, imitados pelas feministas. Também encontraram seu filósofo — John Rawls —, que contrapunha à crítica dos direitos naturais de Bentham um outro princípio geral da razão: julgar-se-ia moral a sociedade cujas leis beneficiassem os grupos mais desfavorecidos. O objetivo principal desses movimentos era a inclusão social numa base de igualdade com os demais, e tanto os afro-americanos quanto as mulheres tinham argumentos irresistíveis em favor de uma profunda mudança social. Como veremos, os padrões sociais podem apresentar uma obstinada persistência; assim, a inclusão igualitária exigiria inevitavelmente uma fase de transição de luta contra a discriminação. Meio século depois, ainda estamos nessa transição, mas, nesse meio-tempo, aquilo que começara como uma série de movimentos pela inclusão se enrijeceu, talvez inadvertidamente, em identidades de grupo que se tornaram oposicionistas: a luta se revigora ao pressentir um grupo inimigo. A linguagem dos direitos proliferou, abrangendo os direitos do indivíduo contra o Estado paternalista, os dos eleitores periodicamente afagados por políticos prometendo novos direitos, os dos novos grupos de vítimas buscando tratamento privilegiado. Esses três conjuntos de direitos pouco tinham em comum, mas todos eram avessos à vinculação inclusiva de direitos e deveres, alcançada pela social-democracia enquanto se mantivera ligada a suas raízes comunitaristas.

A causa utilitarista foi promovida por economistas; a causa dos direitos foi promovida por advogados. Em algumas questões, as duas vanguardas concordavam, tornando-se grupos de pressão extremamente poderosos. Em outras questões, discordavam: Rawls e seus seguidores reconheciam que alguns dos direitos que fortaleceriam grupos pequenos, mas desfavorecidos, piorariam a situação de todos os demais e assim falhariam pelos critérios utilitaristas. Na disputa entre tecnocratas econômicos e advogados, a balança do poder inicialmente pendia para o lado dos economistas: a promessa de assegurar “a maior felicidade do maior número” se mostrava conveniente para os políticos à caça de votos. Mas, aos poucos, a balança do poder passou a pender para o lado dos advogados, brandindo a arma nuclear dos tribunais. À medida que as duas ideologias se tornavam cada vez mais divergentes, nenhuma delas tinha muito espaço para as ideias que haviam guiado o movimento cooperativo. Utilitaristas, rawlsianos e libertários enfatizavam o indivíduo, não o coletivo, e os economistas utilitaristas e os advogados rawlsianos ressaltavam as diferenças entre os grupos, os primeiros com base na renda, os últimos com base no desfavorecimento. Ambos influenciaram as políticas social-democratas. Os economistas utilitaristas exigiam a redistribuição guiada pela necessidade; aos poucos, os beneficios da assistência pública foram reformulados de modo que o direito a eles se desvinculou das contribuições, deixando de lado o valor humano normal da equidade. Os que não haviam contribuído estavam sendo privilegiados em comparação aos que haviam contribuído. Os advogados rawlsianos exigiam compensação com base no desfavorecimento. Por exemplo, os direitos dos refugiados se tornaram a prioridade número um para os social-democratas da Alemanha nas negociações da aliança de 2018. Martin Schultz, líder do partido, insistiu que “a Alemanha deve seguir o direito internacional, independentemente do estado de espírito no país”. Esse “independentemente do estado de espírito no país” era uma expressão clássica da vanguarda moral; tanto Bentham quanto Rawls aplaudiriam Schultz, mas dali a um mês ele foi derrubado por uma rebelião popular. As duas ideologias descartam os instintos morais normais de reciprocidade e merecimento, elevando um único princípio da razão (embora esse princípio varie) a ser imposto pela vanguarda dos conhecedores. Em contraste, o movimento cooperativo se fundava naqueles instintos morais normais: uma tradição filosófica que remontava a David Hume e Adam Smíth. Com efeito, Jonathan Haidt é explícito quanto a essa dívida, ao ver seu trabalho como “um primeiro passo para retomar o projeto de Hume”.

Enquanto os intelectuais de esquerda abandonavam a social-democracia comunitarista e prática em favor da ideologia utilitarista e da ideologia rawlsiana, os partidos de centro-direita ou se imobilizavam numa zona de nostalgia e poucas ideias, ou eram cooptados por um grupo de intelectuais igualmente equivocados. Os democratas cristãos da Europa continental, exemplificados por Silvio Berlusconi, Jacques Chirac e Angela Merkel, tomaram basicamente o caminho da nostalgia; os partidos conservadores e republicanos do mundo anglófono escolheram a ideologia. À filosofia de Rawls contrapôs-se a de Robert Nozick: os indivíduos tinham direitos à liberdade, que prevalecia sobre os interesses da coletividade. Essa ideia se aliou naturalmente à nova análise econômica conduzida pelo Prêmio Nobel Milton Friedman — segundo a qual a liberdade de buscar o interesse próprio, limitada somente pela concorrência, produzia resultados superiores aos que poderiam ser alcançados pelo planejamento e pela regulação pública — e formou as bases intelectuais das revoluções de Ronald Reagan e Margaret Thatcher nas políticas públicas. Embora as novas ideologias de esquerda e de direita se apresentassem como diametralmente opostas, tinham em comum a ênfase sobre o indivíduo e o gosto pela meritocracia; a elite moralmente meritocrática da esquerda rivalizava com a elite produtivamente meritocrática da direita. Os grandes astros da esquerda eram os muito bons; os grandes astros da direita eram os muito ricos.

Então, o que havia de tão errado com a social-democracia, a ponto de ser abandonada tanto pela esquerda quanto pela direita? Em seu auge, nos anos 1950 e 1960, não havia multo de errado com ela. Mas, ainda que fosse a força intelectual dominante na política pública, a social-democracia era filha de sua época. Longe de conter verdades universais — alegação típica de todas as ideologias —, formara-se em circunstâncias específicas e era válida apenas nessas circunstâncias. Mudando as circunstâncias, suas pretensões ao universalismo se pulverizaram. No final dos anos 1970, quando os Estados Unidos e a Grã-Bretanha estavam em pé de igualdade como nunca antes, as condições para a social-democracia já estavam desmoronando; a revolta de massa que levou Reagan e Thatcher ao poder já estava a caminho, e bem adiantada. A social-democracia funcionou de 1945 até os anos 1970 porque se alimentou de um enorme ativo invisível e inquantificavel que se acumulara durante a Segunda Guerra Mundial: uma identidade comum forjada por um supremo esforço nacional que dera certo. Com a erosão desse ativo, surgiu um ressentimento crescente diante do poder nas mãos de um Estado paternalista.

Assim como sua sustentação social, a sustentação intelectual da social-democracia se desgastou. O planejador social onisciente e guardião platônico virou objeto de escárnio e esquecimento com o surgimento do novo campo da Teoria da Escolha Pública. Essa teoria reconhecia que as decisões de política pública não costumam ser tomadas por santos distantes, e sim por um jogo de pressões de diversos grupos de interesse, inclusive os próprios burocratas. Só se poderia confiar no altruísmo do planejador enquanto as pessoas envolvidas na decisão estivessem imbuídas de paixão pelo interesse nacional, tal como fora instilada na geração da época da guerra. Dentro da filosofia, o utilitarismo ainda tem alguns bolsões de adeptos, mas vêm-se acumulando críticas demolidoras. Elas têm sido reforçadas pelas críticas de psicólogos sociais como Haidt, revelando que os valores do utilitarismo estão longe de ser verdades universais. A imensa maioria da humanidade não é formada pelos parvos egoístas pintados pela economia utilitarista, e sim por pessoas que valorizam não só o cuidado, mas também a justiça, a lealdade, a liberdade, a inviolabilidade e a hierarquia. Não são mais egoístas do que a vanguarda social-democrata; são mais completas.

Quando o novo libertarismo de direita mostrou ser mais destrutivo e menos eficiente do que se esperava, a esquerda voltou ao poder, mas não ao comunitarismo. Pelo contrário, agora ela é controlada pelos novos ideólogos. A nova vanguarda provavelmente suplantara os comunitaristas sem nem perceber. Mas as famílias comuns o perceberam, quando menos porque, divorciadas das comunidades, algumas políticas defendidas pela vanguarda eram danosas e impopulares. A vanguarda comandava o Estado a partir da metrópole, que estava prosperando, e direcionava a assistência para aqueles grupos tidos como os mais necessitados: as “vítimas”. As novas inquietações atingiam pessoas que muitas vezes não preenchiam todos esses requisitos, embora suas condições estivessem deteriorando tanto em termos absolutos quanto em comparação com os grupos de “vítimas” mais em voga. Um corolário da condição de “vítima” era que os incluídos nela não podiam ser de forma alguma responsabilizados por suas condições. Mesmo quando a classe trabalhadora tinha algumas características de vítima, isso lhe dava direito apenas a um consumo adicional: era este o foco da redistribuição utilitarista. Conceitos como pertencimento, merecimento, dignidade, o respeito que decorre de cumprir as obrigações são tão estranhos que têm ficado totalmente ausentes do discurso da profissão. Mas, geralmente, não se reconhecia a condição de vítima à classe trabalhadora branca; eis a National Review, impecavelmente WEIRD, comentando a queda em suas expectativas de vida: “Eles merecem morrer”. Evidentemente, embora todas as vítimas sejam iguais, algumas são mais iguais do que outras.

Estamos vivendo uma tragédia. Minha geração conheceu as grandes realizações do capitalismo sob a social-democracia comunitarista. A nova vanguarda usurpou a social-democracia, trazendo uma ética e prioridades próprias. Quando os efeitos colaterais destrutivos das novas forças econômicas atingiram nossas sociedades, as inadequações dessas novas éticas se patentearam brutalmente. Os atuais fracassos do capitalismo, tal como vêm sendo tratados pelas novas ideologias, são tão flagrantes quanto os êxitos daquilo que vieram substituir. E hora de nos afastarmos do que deu errado e passarmos para o que pode ser corrigido.


Tags: ,