Livro ‘Stalker’ por Lars Kepler

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O Departamento Nacional de Investigação Criminal de Estocolmo recebe um intrigante vídeo de uma mulher sozinha em seu quarto vestindo uma meia-calça. Ela não sabe que está sendo vigiada, e a polícia não leva as imagens a sério até ela aparecer assassinada. Quando o próximo filme chega, a detetive Margot Silverman tenta identificar a vítima, mas é tarde demais. Fica então claro que um assassino em série aterroriza Estocolmo. Como um voyeur, ele observa e filma suas vítimas dentro de casa, coloca os vídeos no YouTube, e as mata de modo brutal. A polícia chama o psicólogo e hipnotista Erik Maria Bark para ajudar no caso...
Páginas 560 páginas  Editora: Alfaguara; Edição: 1 (7 de outubro de 2019)  ISBN-10: 8556520944  ISBN-13: 978-8556520944  ASIM: B07WN1HH38

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LARS KEPLER é o pseudônimo do casal sueco, aclamado pela crítica, Alexandra Coelho Ahndoril e Alexander Ahndoril. Os Ahndoril eram escritores estabelecidos antes de adotarem o pseudônimo Lars Kepler, e cada um publicou vários romances de sucesso. Eles moram em Estocolmo, na Suécia.

Leia trecho do livro

Só começaram a levar o filme a sério depois que o primeiro corpo foi encontrado. Um link para um vídeo do YouTube foi enviado ao endereço de e-mail público do Departamento Nacional de Investigação Criminal. Era impossível rastrear o remetente. O secretário de polícia clicou no link, assistiu ao vídeo, supôs que se tratava de uma piada completamente desconcertante e o incluiu nos registros.

Por causa dessas imagens, três detetives reuniram-se dois dias depois em uma salinha no oitavo andar da sede do Departamento Criminal em Estocolmo.

O vídeo a que assistiam tinha apenas cinquenta e dois segundos de duração.

As imagens tremidas, filmadas com uma câmera de mão através da janela de um quarto, mostravam uma mulher na faixa dos trinta anos vestindo uma meia-calça preta.

Em um silêncio constrangedor, os três homens observaram os movimentos da mulher.

Ela dava passos largos sobre obstáculos imaginários e se agachava várias vezes para acomodar confortavelmente a meia.

Na manhã de segunda-feira, ela foi encontrada na cozinha de uma casa geminada na ilha de Lidingö, nos arredores de Estocolmo. Estava sentada no chão com a boca grotescamente escancarada. Havia respingos de sangue na janela e em uma orquídea branca plantada em um vaso. A mulher vestia apenas a meia-calça e um sutiã.

A autópsia concluiu que ela havia sangrado até a morte como consequência de múltiplas lacerações e facadas concentradas em sua garganta e seu rosto, uma demonstração de extraordinária brutalidade.

A palavra stalker existe desde o início do século XVIII. Naquela época, significava rastreador ou caçador ilegal.

Em 1921, o psiquiatra francês De Clérambault publicou o que é comumente considerada a primeira análise moderna de um stalker, o estudo de um paciente que sofria de erotomania. Hoje, um stalker é alguém que padece de fixação obsessiva, ou uma doentia obsessão em monitorar atividades de outro indivíduo.

Quase dez por cento da população será submetida a alguma forma de perseguição ao longo da vida.

A maior parte dos stalkers tem ou tinha um relacionamento com a vítima. Contudo, em um número impressionante de casos, a fixação é focada em estranhos ou pessoas em locais públicos, e a coincidência desempenha um papel fundamental.

Embora a grande maioria dos casos nunca requeira intervenção, a polícia trata o fenômeno com seriedade porque a obsessão patológica de um stalker carrega um perigo inerente. Assim como as nuvens que atravessam áreas de alta e baixa pressão podem se transformar em um tornado, as oscilações emocionais de um stalker entre a adoração e o ódio podem, de repente, se tornar extremamente violentas.

1

São quinze para as nove de sexta-feira, 22 de agosto. Após dias de um pôr do sol mágico e noites claras do alto verão, a escuridão avança a uma velocidade surpreendente. Já está anoitecendo fora da Autoridade de Polícia Nacional.

Margot Silverman sai do elevador e caminha em direção às portas de segurança no saguão. Ela está vestindo um cardigã preto, uma blusa branca bem ajustada em volta do peito e uma calça preta cuja cintura alta se estica por sua barriga protuberante.

A passos lentos ela se dirige para as portas giratórias na parede de vidro.

O cabelo de Margot é da cor do lustroso assoalho de bétula e está preso em uma grossa trança que desce pelas costas. Ela tem olhos úmidos e bochechas rosadas. Aos trinta e seis anos, está grávida do terceiro filho.

Ela está voltando para casa depois de uma longa semana. Fez horas extras todos os dias e recebeu duas advertências pelo excesso de esforço.

Ela é a nova policial especialista em assassinos em série, assassinos-relâmpago e stalkers. O homicídio de Maria Carlsson é o primeiro caso pelo qual ela é responsável desde sua nomeação.

Não há testemunhas nem suspeitos. A vítima era solteira e não tinha filhos. Trabalhava como consultora de produtos para a rede de lojas Ikea e herdou a casa geminada, livre de hipoteca, depois que o pai morreu e a mãe foi para uma clínica de repouso.

Na maioria dos dias, Maria ia para o trabalho de carona com uma colega. Elas se encontravam na estrada Kyrk. Como naquela manhã Maria não apareceu, a colega foi até a casa dela, tocou a campainha, olhou pelas janelas, deu a volta pelos fundos e a viu. Ela estava sentada no chão, o rosto coberto por ferimentos à faca, o pescoço cortado quase de um lado ao outro, a cabeça pendendo e a boca estranhamente escancarada.

De acordo com a autópsia, havia evidências que sugeriam que a boca fora posicionada daquela forma depois da morte.

Quando foi indicada para comandar a investigação, Margot sabia que não poderia parecer muito agressiva. Ela tem uma tendência a ser ansiosa demais.

Seus colegas teriam dado risada se ela lhes dissesse que tinha absoluta certeza de que estavam lidando com um assassino em série.

Ao longo da semana, Margot assistiu mais de duzentas vezes ao vídeo de Maria Carlsson vestindo a meia-calça. Todas as evidências sugerem que ela foi assassinada logo depois de a filmagem ser postada no YouTube.

Margot não consegue ver nada que torne esse vídeo especial. Não é incomum que pessoas tenham um fetiche por meia-calça, mas nada com relação ao homicídio indica esse tipo de inclinação.

O vídeo é simplesmente um breve momento da vida de uma mulher comum. Ela era solteira, tinha um bom emprego e fazia aulas de desenho em quadrinhos à noite.

Não há como saber por que o criminoso estava em seu jardim, se por puro acaso ou resultado de uma operação cuidadosamente planejada, mas nos minutos que antecederam o assassinato ele a registrou em vídeo.

Uma vez que enviou o link para a polícia, ele deve ter desejado mostrar-lhes alguma coisa. Queria destacar algo a respeito dessa mulher em particular, ou de um certo tipo de mulher. Talvez sobre todas as mulheres.

Mas, aos olhos de Margot, não há nada de incomum no comportamento ou na aparência da mulher. Ela está simplesmente se concentrando em colocar direito a meia-calça.

Margot visitou a casa na estrada Bredablicks duas vezes, mas passou a maior parte do tempo examinando o vídeo da cena do crime antes de estar contaminada.

O filme do assassino quase parece uma obra de arte carinhosamente criada em comparação ao vídeo da cena do crime gerado pela polícia. O registro minuciosamente detalhado que a equipe forense fez das evidências é implacável. A mulher morta é filmada de vários ângulos, sentada com as pernas esticadas no chão, rodeada por sangue escuro. Seu sutiã está em farrapos, pendendo de um ombro, e um seio branco está pendurado sobre a saliência da barriga. Não restou quase nada de seu rosto, apenas uma boca escancarada rodeada de uma massa vermelha.

Margot se detém como que por acaso ao lado da fruteira, olha de relance para o policial, que está falando ao telefone, depois vira as costas para ele. Por alguns segundos, observa o reflexo do policial na parede de vidro, depois pega seis maçãs da fruteira e as coloca na bolsa.

Seis é demais, ela sabe disso, mas não consegue se conter. Ocorreu- -lhe que Jenny poderia querer fazer uma torta de maçã naquela noite, com muita manteiga, canela e açúcar.

Seus pensamentos são interrompidos quando o telefone toca. Ela olha para a tela e vê uma foto de Adam Youssef, um membro da equipe de investigação.

— Você ainda está no prédio? — Adam pergunta. — Por favor, me diga que você ainda está aqui, porque nós…

— Estou sentada no carro na estrada Klarastrands — Margot mente. — Do que você precisa?

— Ele postou um novo vídeo.

Margot sente um frio na barriga e coloca uma das mãos sob a pesada saliência.

— Um novo vídeo — ela repete.

— Você vai voltar?

— Vou parar e dar meia-volta — responde, e começa a refazer seus passos. — Certifique-se de arranjar uma cópia decente da gravação.

Margot poderia simplesmente ter ido para casa, deixando o caso nas mãos de Adam. Bastaria um telefonema para providenciar um ano inteiro de licença-maternidade remunerada. O destino dela está por um fio. Ela não sabe o que esse caso trará, mas pode sentir sua gravidade, sua atração sombria.

A luz no elevador faz seu rosto parecer mais velho no reflexo das portas reluzentes. A linha grossa e escura de rímel ao redor dos olhos quase desapareceu. Quando inclina a cabeça para trás, percebe que está começando a se parecer com o pai, o ex-comissário.

O elevador para no oitavo andar e ela caminha ao longo do corredor vazio o mais rápido que sua barriga volumosa permite. Ela e Adam mudaram-se para a antiga sala de Joona Linna na mesma semana em que a polícia realizou uma cerimônia fúnebre para ele. Margot nunca conheceu Joona pessoalmente e não teve nenhum problema em assumir sua sala.

— Você tem um carro rápido — Adam diz quando ela entra, e em seguida sorri, mostrando os dentes afiados.

— Bota rápido nisso — Margot responde.

Adam ingressou na força policial depois de um breve período como jogador de futebol profissional. Ele tem vinte e oito anos, cabelo comprido e um rosto jovem e redondo. Sua camisa de mangas curtas está para fora da calça.

— Há quanto tempo o vídeo está disponível? — ela pergunta.

— Três minutos — Adam diz. — Ele está lá agora. Parado do lado de fora da janela e…

— Não sabemos disso, mas…

— Eu acho que está — ele a interrompe.

Margot pousa a pesada bolsa no chão, senta-se na cadeira e liga para a equipe forense.

— É Margot. Você baixou uma cópia? Escute, preciso de uma localização ou um nome. Todos os recursos que tiver. Você tem cinco minutos — faça o que quiser, droga —, apenas me dê alguma coisa, e prometo que te deixo ir curtir sua noite de sexta-feira.

Ela abaixa o telefone e abre a caixa de pizza sobre a mesa de Adam.

— Você já terminou de comer isto aqui? — ela pergunta.

Há um zunido anunciando a chegada de um e-mail, e Margot rapidamente enfia na boca um pedaço da massa da pizza. Uma ruga de preocupação se aprofunda em sua testa. Ela clica no arquivo de vídeo e maximiza a imagem na tela, empurra a trança por cima do ombro e impulsiona a cadeira giratória para trás para que Adam possa ver.

A primeira cena é uma janela iluminada brilhando na escuridão. A câmera se aproxima lentamente das folhas que roçam a lente.

Margot sente os pelos dos braços se arrepiarem.

Uma mulher está diante de uma televisão, tomando sorvete de um pote. Ela puxou a calça de moletom para baixo e está se equilibrando sobre um dos pés. O outro pé está descalço.

Ela dá uma olhada na televisão e ri de alguma coisa, depois lambe a colher.

O único som na sede da polícia é da ventoinha do computador. Apenas me dê um detalhe para continuar, Margot pensa enquanto olha para o rosto da mulher, cujo corpo parece exalar calor. Ela acabou de voltar de uma corrida. O elástico da calcinha está frouxo depois de muitas lavagens, e seu sutiã é claramente visível através da camiseta manchada de suor.

Margot se inclina mais para perto da tela, a barriga pressionando as coxas, e sua pesada trança cai para a frente por cima do ombro.

— Tem mais um minuto de vídeo — Adam diz.

A mulher coloca o pote de sorvete na mesa de centro e sai da sala, a calça de moletom ainda pendurada em um dos pés.

A câmera a segue, passando lateralmente por uma porta estreita até chegar à janela do quarto, onde a luz se acende e a mulher aparece. Ela dá um chute para se livrar da calça, que voa pelo ar, bate na parede atrás de uma poltrona com uma almofada vermelha e cai no chão.

2

A câmera se aproxima em um lento zoom e depois para do lado de fora da janela, oscilando de leve como se flutuasse.

— Era só ela olhar para cima que o veria — Margot sussurra, sentindo o coração acelerar.

A luz do quarto lança um leve reflexo sobre a parte superior da lente.

Adam está sentado com a mão sobre a boca.

A mulher tira a blusa, a joga na poltrona, depois fica parada por um momento com a calcinha desbotada e o sutiã manchado. Ela olha para o celular carregando sobre a mesinha de cabeceira. Suas coxas estão retesadas e bombeadas com sangue após a corrida, e o cós de elástico da calça deixou uma linha vermelha em sua barriga.

Não há tatuagens nem cicatrizes visíveis em seu corpo, apenas algumas sutis estrias de uma gravidez.

O quarto se parece com milhões de outros. Não há nada que valha a pena tentar rastrear.

A câmera treme, depois recua.

A mulher pega o copo de água da mesinha de cabeceira e o leva à boca. E o vídeo termina abruptamente.

— Porra, porra — Margot repete, irritada. — Nada, merda nenhuma.

— Vamos assistir de novo — Adam diz.

— Podemos assistir milhares de vezes — Margot diz, arrastando a cadeira mais para trás. — Tudo bem, que merda, vamos lá, mas o vídeo não vai nos dar porra nenhuma.

— Eu consigo ver uma porção de coisas. Consigo ver…

— Você consegue ver uma casa isolada, do século XX, algumas árvores frutíferas, rosas, janelas com vidros triplos, uma televisão de quarenta e duas polegadas, o sorvete da Ben & Jerry — ela diz, apontando para a tela do computador.

Nunca ocorrera a Margot como somos todos tão parecidos uns com os outros. Visto através de uma janela, um amplo espectro de suecos amolda-se ao mesmo padrão, a ponto de se tornarem intercambiáveis. Olhando de fora, parece que vivemos exatamente da mesma maneira. Temos a mesma aparência, fazemos as mesmas coisas, possuímos os mesmos objetos.

— Caralho, que bizarro — Adam diz, furioso. — Por que ele está fazendo isso? Que droga ele quer?

Margot olha para fora pela janelinha, onde a silhueta das copas negras das árvores do Parque Kronoberg contrasta com o brilho nebuloso da cidade.

— Não há dúvida de que se trata de um assassino em série — ela diz. — Tudo o que podemos fazer é traçar um perfil inicial, para que possamos…

— De que jeito isso pode ajudá-la? — Adam a interrompe, passando a mão pelo cabelo. — Ele está do lado de fora da janela dela e você está falando sobre traçar perfil!

— Pode ajudar a próxima.

— Que porra é essa? A gente tem que…

— Cale a boca por um minuto — Margot o corta, pegando o telefone.

— Cale a boca você — Adam rebate, levantando a voz. — Eu tenho todo o direito de dizer o que penso. Não tenho? Acho que a gente deve falar com os jornais para que publiquem nos sites deles a foto dessa mulher.

— Adam, escute. Por mais que gostemos da ideia de identificá-la, não temos nada com que seguir em frente. Vou falar com a perícia, mas duvido que encontrem algo a mais do que acharam da última vez. — Mas se colocarmos a foto dela para circular…

— Eu não tenho tempo para isso agora — Margot vocifera. — Pense por um minuto. Tudo indica que ele postou o vídeo diretamente da casa dela, então há uma chance teórica de salvá-la.

— Isso é exatamente o que estou dizendo!

— Mas cinco minutos já passaram.

Adam se inclina para a frente e encara Margot. Os olhos dele estão injetados, e o cabelo, em pé.

— Então vamos simplesmente desistir?

— Temos que pensar antes de agir — ela responde. — Não podemos fazer movimentos errados.

— Eu sei — ele diz, irritado.

— O assassino está confiante. Ele sabe que está muito à frente de nós — Margot explica enquanto pega a última fatia de pizza. — Mas quanto mais conseguirmos conhecê-lo…

— Conhecê-lo? Tudo bem, mas não é bem nisso que estou pensando agora. — Adam enxuga o suor do lábio superior. — Não foi possível rastrear o vídeo anterior, não encontramos nada na cena do crime nem conseguiremos rastrear este aqui também.

— É improvável que tenhamos alguma evidência forense, mas podemos tentar identificá-lo analisando os vídeos e a brutalidade de seu modus operandi — Margot responde, sentindo o bebê se mexer dentro dela. — O que vimos até agora? O que ele nos mostrou e o que ele está vendo?

— Uma mulher que saiu para dar uma corrida e agora está tomando sorvete e assistindo à televisão — ele diz, hesitante.

— O que isso nos diz sobre o assassino?

— Que ele gosta de mulheres que tomam sorvete?!

Ele suspira e esconde o rosto nas mãos.

— Ora, vamos lá.

— Desculpe, mas…

— Estou pensando no fato de que o assassino envia um vídeo mostrando o período que antecede o assassinato — ela diz. — Ele não tem pressa, desfruta do momento e quer nos mostrar a mulher viva, quer preservá-la viva em vídeo. Talvez o interesse dele esteja na pessoa viva.

— Um voyeur.

Adam sente uma alfinetada de desconforto nos braços.

— Um stalker — ela sussurra.

Adam vira-se para o computador e acessa o banco de dados da polícia.

— Diga-me como devo filtrar essa lista de canalhas ex-condenados — ele diz.

— Um estuprador, estupros violentos, alguém com fixação obsessiva.

Ele digita rapidamente, clica no mouse e digita um pouco mais.

— Muitos resultados — ele diz. — O tempo está acabando.

— Tente o nome da primeira vítima.

— Sem resultados.

Ele passa a mão pelo cabelo.

— Um estuprador em série que tenha sido submetido a tratamento, possivelmente castração química — Margot diz, pensando em voz alta.

— Precisamos verificar e cruzar os bancos de dados, mas vai demorar muito — ele diz, levantando-se da cadeira e andando de um lado para o outro. — Isso não está funcionando. O que diabos vamos fazer?

— Ela está morta — Margot diz, inclinando-se para trás. — Ela pode até ter mais alguns minutos, mas…

— Podemos vê-la — Adam diz. — Podemos ver o rosto dela, a casa. Meu Deus, podemos ver a vida dela, mas não somos capazes de descobrir quem ela é até que alguém encontre seu cadáver.

3

Susanna Kern sente as coxas formigando por causa da corrida quando empurra a calça suada para baixo e a chuta na direção da cadeira.

Desde que completou trinta anos, ela corre cinco quilômetros três noites por semana. Depois da corrida de sexta-feira, geralmente toma sorvete e assiste à televisão, já que Björn só chega em casa lá pelas dez horas.

Quando Björn conseguiu o emprego em Londres, ela pensou que se sentiria solitária, mas rapidamente passou a apreciar as horas que tinha para si mesma nas semanas em que Morgan ficava com o pai.

Ela precisa desse tempo livre mais do que nunca desde que começou a fazer um exigente curso de neurologia avançada no Instituto Karolinska.

Ela tira o sutiã esportivo suado. Até onde sua memória alcança, não consegue se lembrar de um verão tão quente.

Um som rascante faz com que ela se volte para a janela.

O quintal está às escuras, e tudo o que ela consegue ver é o reflexo do quarto. Parece um cenário de teatro ou um estúdio de televisão. Ela acabou de fazer sua entrada em cena e está de pé sob os holofotes.

Só me esqueci de colocar uma roupa, pensa ironicamente.

Ela se detém por um momento, olhando para seu corpo nu. A iluminação é dramática e faz o seu reflexo parecer mais magro do que ela de fato é.

Ela ouve o barulho rascante novamente, como se alguém estivesse passando as unhas pelo parapeito da janela. Está escuro demais para ver se há alguém lá.

Susanna fita a janela e, cautelosa, caminha em direção a ela, tentando ver através do reflexo. Pega a colcha azul-escura e a ergue para se cobrir. Ela estremece.

Relutantemente, inclina o rosto contra o vidro. O quintal torna- -se visível, como um mundo cinza-escuro.

Ela vê a grama, os arbustos altos, o balanço de Morgan agitando- -se no vento e, atrás da casa de brinquedos, as vidraças para o solário que nunca chegaram a construir.

Sua respiração embaça a janela enquanto ela se endireita e fecha a cortina rosa-escuro. Ela deixa a colcha grossa cair no chão e caminha nua em direção à porta. Um arrepio percorre sua espinha e ela se volta para a janela. Uma nesga de vidro está brilhando no espaço entre as cortinas.

Ela pega o telefone sobre a mesinha de cabeceira e liga para Björn, e enquanto espera a ligação se completar, não consegue evitar encarar a janela.

Oi, querida — ele responde, em voz muito alta.

— Você está no aeroporto?

— O quê?

— Você está no…

— Eu estou no aeroporto, só comendo um hambúrguer no O’Leary, e…

A voz dele desaparece quando um grupo de homens ao fundo berra e aplaude.

— O Liverpool acabou de marcar de novo — ele explica.

— Uhu — ela diz, sem entusiasmo.

— Sua mãe me ligou para perguntar o que você quer ganhar de presente de aniversário.

— Que gracinha — ela diz.

— Falei que você gostaria de calcinhas transparentes — ele brinca.

— Obrigada.

Ela olha para o vidro tremeluzente entre as cortinas quando a linha telefônica estala.

— Está tudo bem em casa? — a voz de Björn diz no ouvido dela.

— Eu estava me sentindo um pouco assustada com a escuridão.

— O Ben está aí?

— Na frente da televisão — ela responde.

— E o Jerry?

— Os dois estão me esperando — ela sorri.

— Estou com saudade — ele diz.

— Cuidado para não perder o voo — ela sussurra.

Eles conversam mais um pouco, depois se despedem e mandam beijos um ao outro. A linha emudece e ela se pega pensando em um paciente que havia sido internado na noite anterior. Um jovem que bateu de moto e não estava usando capacete, o que resultou em graves ferimentos na cabeça. O pai dele foi direto do trabalho para o hospital, saindo do turno da noite. Ainda estava vestindo seu macacão sujo e uma máscara de respiração pendurada no pescoço.

Segurando o quimono rosa à frente do corpo, Susanna volta para a sala e fecha as pesadas cortinas.

O silêncio se instala na sala.

As cortinas balançam diante das janelas, e ela tem um calafrio ao se afastar delas.

Ela prova o sorvete. Está mais mole agora, na consistência certa. O encorpado sabor do chocolate enche sua boca.

Susanna coloca o pote no chão e vai até o banheiro. Tranca a porta e liga o chuveiro, depois solta o rabo de cavalo e coloca o elástico de cabelo na borda da pia.

Ela solta um suspiro à medida que a água quente cai e envolve seu corpo. Seus ouvidos estão retumbando, enquanto os ombros relaxam e os músculos se distensionam. Ela se esfrega e passa a mão entre as pernas, notando que os pelos já começaram a crescer desde a última vez que se depilou.

Susanna passa a mão no vidro do boxe para desembaçá-lo e poder enxergar a maçaneta e a tranca da porta do banheiro.

Sua mente teima em voltar para o que ela achou ter visto na janela do quarto enquanto puxava a colcha em torno de si.

Descartou isso como um truque de sua imaginação. Nem sequer conseguia enxergar através do vidro.

O quarto estava muito claro e do lado de fora estava escuro demais.

Mas, no reflexo da colcha escura, pensou ter visto um rosto encarando-a.

No momento seguinte o rosto desapareceu, e ela percebeu que devia ter se enganado, mas agora era impossível não pensar que talvez tivesse sido real.

Não era uma criança, mas talvez fosse algum vizinho que tinha saído à procura de seu gato e parou para dar uma olhada nela.

Susanna fecha a água. Seu coração bate acelerado quando ela se dá conta de que a porta da cozinha está aberta. Como ela podia ter se esquecido disso? Ela vinha mantendo a porta aberta durante todo o verão para deixar entrar o ar frio da noite, mas geralmente a fecha e tranca antes de tomar banho.

Mais uma vez ela desembaça o vidro do boxe e verifica a fechadura na porta. Nada mudou. Pega a toalha e pensa em ligar para Björn e pedir que ele fique na linha enquanto ela vasculha a casa.

4

Ao sair do banheiro, Susanna pode ouvir aplausos na televisão. A fina seda do quimono adere a sua pele úmida.

Há uma corrente de ar frio ao longo do piso.

Seus pés deixam pegadas molhadas no desgastado assoalho de parquete.

Das janelas da sala de jantar vem um brilho sombrio. Vidro preto reluzindo atrás das samambaias penduradas. Susanna tem a sensação de que está sendo observada, mas se obriga a não olhar lá fora. Ela não quer se assustar ainda mais.

No entanto, enquanto se aproxima da cozinha, mantém distância da porta fechada que dá acesso ao porão.

Seu cabelo molhado encharca a parte de trás do quimono. De tão molhado, goteja dentro do tecido, escorrendo pelo traseiro.

Quanto mais perto Susanna chega da cozinha, mais frio fica o chão.

O coração dela bate com força.

Mais uma vez ela se flagra pensando no rapaz com graves ferimentos na cabeça. Ele estava sedado. Seu rosto inteiro foi esmagado, empurrado em direção às têmporas. O pai do rapaz insistia em repetir que não havia nada de errado com o filho. O homem precisava muito de alguém com quem conversar, mas Susanna não tinha tempo.

Agora ela está imaginando que aquele pai, um homem parrudo, a encontrou, que a culpa e que está de pé do lado de fora da porta da cozinha, vestindo seu macacão encardido.

Há uma música diferente na televisão. Ela reconhece como o tema de abertura de um popular concurso de canto.

Sopra uma brisa que atravessa toda a cozinha. A porta está escancarada e as persianas verticais tremulam no ambiente. Ela caminha devagar para a frente. É difícil enxergar alguma coisa por trás da cortina.

Ela estende a mão, empurra as persianas para o lado, seus dedos passam por elas e agarram a maçaneta.

O chão está frio por causa do ar da noite que inunda a cozinha. Seu quimono escorrega.

Ela vê que o quintal está deserto. Os arbustos se agitam ao vento, o balanço oscilando de modo rítmico.

Ela rapidamente fecha a porta, sem se incomodar com o fato de que um pedaço da cortina ficou espremido, e, às pressas, consegue trancá-la, depois arranca a chave e se afasta.

Ela coloca a chave no pote de moedas e ajeita o quimono.

Pelo menos está trancada agora, ela pensa, quando ouve um rangido a suas costas.

Ela gira e então sorri da própria reação. Era apenas a janela da sala se assentando quando o fluxo de ar cessou.

Na televisão, a plateia está vaiando e assobiando, em protesto contra a decisão dos jurados.

Susanna pensa em pegar o telefone no quarto e ligar para Björn. A essa altura ele devia estar esperando no portão de embarque. Ela quer ouvir a voz dele enquanto esquadrinha a casa antes de se acomodar na frente da televisão. De outra forma ela não vai conseguir relaxar. O único problema é que no porão o telefone não funciona, lá não há sinal. Talvez ela possa colocar o telefone no viva-voz e deixá-lo no meio do caminho, nos degraus da escada.

Ela diz a si mesma que não tem que se esgueirar em sua própria casa, mas é inevitável mover-se em silêncio.

Passa pela porta fechada de acesso ao porão, vê pelo canto dos olhos as janelas escuras na sala de jantar e continua em direção à sala de estar.

Ela sabe que trancou a porta da frente, mas ainda assim quer ir até lá e checar.

A janela aberta na sala de estar faz um ruído de assobio, e a cortina está sendo sugada por entre a fresta.

Ela caminha em direção à sala de jantar e percebe que as flores silvestres no vaso sobre a pesada mesa de carvalho ficaram sem água. Então ela se detém abruptamente.

Seu corpo inteiro parece congelar.

As três janelas da sala de jantar funcionam como grandes espelhos. A luz do teto ilumina a mesa e as oito cadeiras, e atrás delas há um vulto.

Susanna fita o reflexo da sala, seu coração batendo com tanta força que quase a ensurdece.

Na porta de entrada há alguém empunhando uma faca de cozinha.

Ele está dentro. Está dentro de casa, Susanna pensa.

Ela trancou a porta da cozinha quando deveria ter fugido.

Devagar, Susanna se move para trás.

O intruso está completamente imóvel, de costas para a sala de jantar, encarando o corredor da cozinha.

A comprida faca está pendurada em sua mão direita, que se contrai, impaciente.

Susanna se afasta, os olhos cravados na figura. Seu pé direito desliza pelo chão e o assoalho range de leve.

Ela tem que sair, mas se tentar chegar à cozinha, estará visível. Talvez consiga alcançar a chave, mas também pode ser que não.

Ela continua se afastando com cautela, mantendo os olhos no reflexo.

O piso range sob seu pé esquerdo e ela se detém e observa a figura virar-se para a sala de jantar. Ele olha para cima e a vê nas janelas escuras.

Susanna dá outro passo para trás. O intruso começa a andar em sua direção. Ela deixa escapar um gemido quando se vira e corre para a sala de estar.

Ela escorrega no tapete e bate o joelho no chão, usando as mãos como anteparo para amortecer a queda, arfando de dor.

Há o som de uma cadeira batendo na mesa de jantar.

Ao se levantar, Susanna esbarra em uma luminária. Ela atinge a parede antes de tombar com estrépito no chão.

Ela ouve passos rápidos atrás de si.

Sem olhar em volta, corre com ímpeto banheiro adentro e tranca a porta. O ar ali ainda está quente e úmido.

Isto não pode estar acontecendo, ela pensa, em pânico.

Passa correndo pela pia e pelo vaso sanitário e arranca a cortina da janelinha. Suas mãos estão tremendo enquanto se esforça para abrir um dos ferrolhos. Está emperrado. Ela tenta se acalmar. Fuça a tranca, puxa para o lado e consegue abrir a primeira lingueta no instante em que ouve um som rascante na fechadura da porta do banheiro. Susanna se arremessa de volta e agarra a maçaneta tão logo ela começa a girar. Aferra-se a ela com as duas mãos.

fim da amostra…


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