Temido e odiado por políticos de todos os partidos, aclamado como herói nas ruas, o ex-procurador-geral Rodrigo Janot é uma figura central da história contemporânea brasileira. Sua atuação no comando da operação Lava Jato transformou o país, expondo a corrupção em diversas esferas do poder. Por duas vezes, a chamada “Lista do Janot” fez o Brasil parar na frente da televisão ao envolver os mais marcantes personagens da vida nacional em escândalos. Em Nada menos que tudo, ele faz revelações importantes sobre grandes nomes da política brasileira, como Lula, Dilma, Temer, Aécio, Cunha, Serra, Collor, Genoíno, Sarney, Renan, Jucá, entre outros...
Capa comum : 256 páginas ISBN-10 : 854221742X ISBN-13 : 978-8542217421 Dimensões do produto : 22.6 x 15.6 x 1.6 cm Editora : Planeta; 1ª Edição (30 setembro 2019) Idioma: : Português
Leia trecho do livro
A figura do meu pai foi, é e continua sendo forte na minha trajetória de vida.
Apesar da enorme diferença de idade entre nós, quarenta e seis anos, e de ele haver nos deixado quando eu era um recém-formado advogado, seus ensinamentos, mais que isso, sua postura ética inflexível e sua dedicação às pessoas, são atemporais.
Lembro-me dele repetindo: “A única herança que um telegrafista pode legar a seus filhos é um misto de educação, coragem e caráter”.
Obrigado Otto, o “Barrinhos da Central do Brasil”. Sua bênção. Em sua memória, essas memórias.
Nota dos autores
Este livro foi produzido a partir de depoimentos concedidos por Rodrigo Janot aos jornalistas Jailton de Carvalho e Guilherme Evelin.
Apresentação
No momento em que escrevo este livro, entre dezembro de 2018 e o primeiro semestre de 2019, a Operação Lava Jato ainda é um tema dominante na agenda política do país. Os principais embates políticos giram em torno do assunto. De um lado estão aqueles que se projetaram com o sucesso da Operação; no extremo oposto, aqueles que se sentiram atingidos pelas investigações ou pelos efeitos políticos e econômicos das sucessivas etapas da Lava Jato. Dos dois lados tenho visto incompreensões. Algumas, justificáveis; outras, não. Decidi, então, escrever sobre o que vi e vivi à frente do Ministério Público Federal ao longo desses anos turbulentos.
Até onde eu sei, é uma iniciativa inédita. Nenhum outro ex-procurador-geral da República escreveu sobre o próprio trabalho, muito menos envolvendo casos tão quentes e ainda em andamento. Mas este não é apenas um livro de memórias. O leitor tem diante de si um testamento histórico. Ao decidir escrever sobre os principais fatos relacionados à Lava Jato sob minha esfera de atuação, resolvi contar tudo que considero relevante, sem autocensura e sem eufemismos.
A ideia era relatar cada fato da forma mais objetiva possível e deixar que o leitor fizesse seu próprio juízo de valor. No futuro, provavelmente aparecerão heróis retroativos para explicar como foram e como deveriam ter sido as investigações. De antemão, eu ofereço o meu ponto de vista. Aqui estão relatos pessoais sobre marchas e contramarchas de investigações sobre políticos como Michel Temer, Eduardo Cunha, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Aécio Neves, Renan Calheiros, José Sarney, Fernando Collor, Romero Jucá e José Serra, entre outros personagens marcantes da vida nacional.
Estão inclusos detalhes sobre fatos narrados de forma genérica pelo noticiário e, numa certa medida, casos que passaram ao largo da vigilante imprensa nacional. Algumas situações são prosaicas e servem apenas para mostrar como o banal e o fundamental andam, muitas vezes, de mãos dadas na nossa crônica política. Outros episódios são de extrema gravidade e merecem, a meu ver, uma detida reflexão. Muitos, mesmo aqueles que conhecem bem a Lava Jato, não têm uma ideia clara da complexidade e da dramaticidade de alguns eventos.
Eu mesmo só tive plena consciência da dimensão de alguns episódios com o passar do tempo, quando já estava me preparando para este relato. Lembro-me, por exemplo, de uma profética conversa que tive com a deputada italiana Marina Sereni num jantar na embaixada da Itália, em 2015. Ela me fez três perguntas: 1) “O senhor ou alguém da sua equipe pretende disputar algum cargo político?”; 2) “O senhor já definiu o limite ‘descendente’ , ou seja, até onde vão descer as investigações?”; 3) “Já sabe quando o senhor vai terminar essa investigação?”.
A primeira pergunta eu respondi com firmeza. Não me candidataria a nada, nem a síndico de prédio. As duas outras perguntas me pareceram estranhas. Como assim, definir limite de uma investigação? Como estabelecer prazo para concluir as apurações? A deputada me disse, então, que, ao ampliar demais as investigações e atingir pessoas comuns, a Operação Mãos Limpas, da Itália, perdeu o apoio da opinião pública, inflamada por 14 suicídios. Disse também que, se não encerrássemos de forma planejada a Lava Jato, uma “mão externa” o faria por nós.
Só hoje consigo entender o alcance daquelas palavras. Agora que vejo esse movimento vasto, de múltiplas procedências, para “estancar a sangria com o Supremo, com tudo”. Com este relato na primeira pessoa, o leitor, se assim entender, poderá me criticar pelo que fiz ou deixei de fazer, mas não pelo que terceiros acham que fiz ou deveria ter feito. De toda forma, espero sinceramente que os casos trazidos à luz ajudem na reflexão sobre corrupção, política e responsabilidade individual na construção de uma nova sociedade.
CAPÍTULO 1
Ele não
O telefonema interrompeu meu almoço. Eu estava com dois assessores, Sílvio Amorim e Karina Mascarenhas, numa churrascaria da Vila Planalto. Hoje um bairro de classe média com muitos restaurantes, localizado a pouco mais de cinco quilômetros do Palácio do Planalto, a Vila era no passado um local de acampamentos para os operários trazidos para a construção de Brasília. Enquanto comíamos, analisávamos cada item da pauta da sessão que aconteceria naquela tarde no Supremo Tribunal Federal (STF). Aquele tipo de reunião fazia parte da minha rotina, sobretudo em dias de sessão no plenário do Supremo.
De repente, meu celular tocou. Do outro lado da linha, uma secretária da vice-presidência da República me disse que Michel Temer gostaria de falar comigo pessoalmente no Palácio do Jaburu, sua residência oficial. Eu respondi que estava almoçando e que logo em seguida compareceria a uma sessão no STF. A mulher insistiu. O vice-presidente queria falar comigo, a conversa era importante e seria rápida. Eu não tinha a menor ideia do que o vice-presidente tinha de tão urgente para discutir comigo. Mas, tratando-se da segunda autoridade da República, imaginei que fosse algo muito grave.
É um clichê em Brasília dizer que um chamado de um presidente da República deve ser atendido imediatamente. Eu digo que o mesmo vale para um convite de um vice-presidente. É clichê, mas é verdade. Interrompi meu almoço e a análise da pauta e segui direto para o Jaburu, que fica próximo à churrascaria. No caminho, recebi uma ligação do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.
“Rodrigo, você vai receber um convite” , ele me disse.
“Já recebi” , respondi. O telefonema do ministro da Justiça me deixou em alerta, como se eu estivesse indo para uma armadilha.
Quando cheguei ao Jaburu, encontrei Temer e o deputado Henrique Eduardo Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, que havia acabado de sair da presidência da Câmara. Alves, amigo próximo do vice-presidente, era àquela época um dos mais veteranos parlamentares de Brasília, com 11 mandatos consecutivos de deputado. Ambos estavam à minha espera numa sala com um biombo. Dali, fomos para uma varanda coberta, usada em jantares para convidados. Temer estava bem à vontade, mas dirigiu-se a mim com aquele seu característico e rebuscado estilo de falar.
“Eu chamei o senhor aqui porque quero conversar não com o procurador-geral da República, mas com um brasileiro preocupado com o Brasil, com um patriota” , me disse o vice-presidente.
Feita essa rápida introdução, Henrique Alves entrou em ação. Sem meias palavras, começou a me dizer que eu não poderia investigar o seu sucessor, o deputado Eduardo Cunha, do PMDB do Rio de Janeiro, recém-eleito presidente da Câmara.
“Cunha é um louco, pode reagir de forma imprevisível e colocar o Brasil em risco. Confiamos no senhor como brasileiro e como patriota para manter a estabilidade do país” , reforçou.
Nesse momento, Cardozo chegou e testemunhou o resto da conversa. Sem embaraço, Alves seguiu dizendo que eu deveria arquivar, para o bem do país, a investigação contra Cunha.
Naquele período, estava em marcha uma investigação sobre a agressiva atuação de Cunha na cobrança de uma propina milionária numa compra feita pela Petrobras de dois navios-sondas da Samsung Heavy Industries, empresa da Coreia do Sul que é uma das maiores do mundo no ramo da construção naval. Pelas informações de que dispúnhamos, o então presidente da Câmara havia pressionado o lobista Júlio Camargo a pagar a outro lobista, Fernando Soares, conhecido como Fernando Baiano, o restante de um suborno de US$ 40 milhões. A informação sobre o pagamento do suborno a Cunha surgira num depoimento do doleiro Alberto Youssef à força-tarefa do Ministério Público para a Operação Lava Jato, em Curitiba, e, de forma surpreendente, ganhara força na revisão das delações de Júlio Camargo e Fernando Baiano.
Peça central na investigação sobre Cunha, Camargo havia ignorado o ex-deputado na primeira série de depoimentos prestados depois de firmar colaboração premiada. Ele mudou de ideia, porém, quando procuradores de Curitiba e Brasília passaram a pressioná-lo a contar tudo o que sabia, sem restrições. Caso contrário, poderia perder os benefícios da delação. Ciente dos riscos, Camargo enfrentou o verdadeiro pavor que tinha de Cunha e abriu o jogo: confirmou as acusações de Youssef e forneceu mais detalhes da trama. Cercado por todos os lados, Fernando Baiano, da mesma forma no início muito resistente a falar, também resolvera fazer revelações sobre o esquema de corrupção comandado pelo novo presidente da Câmara.
As investigações contra Cunha faziam parte de um dos 23 inquéritos abertos pelo ministro Teori Zavascki, então relator da Lava Jato no STF, contra 54 políticos suspeitos de receber dinheiro desviado de contratos da Petrobras com algumas das grandes empreiteiras do país. Tudo bem que não é trivial colocar um presidente da Câmara, o terceiro homem na linha sucessória da República, como alvo de uma investigação criminal. Mas, para o procurador-geral da República, que tem como ofício investigar pessoas com prerrogativa de foro, era só mais um inquérito. Por isso, fiquei estupefato com o que acabara de ouvir.
Virei-me então para o vice-presidente e disse, com clareza:
“O senhor é do Direito, a minha área, ele (Henrique Alves) não é. O senhor está entendendo a gravidade do que ele está propondo ao procurador-geral da República?”
Temer não se abalou. Voltou a insistir que Henrique Alves não estava fazendo um pedido ao procurador-geral.
“Ele está propondo ao patriota Rodrigo Janot.”
E prosseguiu: “Esse homem (Cunha) é muito perigoso, e a gente não sabe quais as consequências que poderão vir dele. Então apelamos para que o senhor não leve a cabo essa investigação, que a arquive”.
Aquela cena era simplesmente espantosa. Em três décadas de Ministério Público Federal, nunca tinha vivido nada parecido. Não foi fácil exercer o autocontrole e escolher as palavras diante de algo tão esdrúxulo. Respirei fundo e disse:
“Olha, vice-presidente, eu acho isso muito complicado. Na verdade, não consigo separar a figura do patriota da figura do procurador-geral. O que os senhores estão me propondo aqui é que eu cometa um crime de prevaricação. Isso eu não farei jamais. E muito me estranha que o vice-presidente da República e o ex-presidente da Câmara dos Deputados venham fazer uma proposta indecorosa dessas ao procurador-geral da República. Estou chocado com a ousadia de vocês.”
Soltei o verbo. Eles ficaram calados. Acho que não esperavam minha reação, e muito menos que eu usasse alguns palavrões para exprimir o que verdadeiramente achava de tudo aquilo.
Ainda com o sangue fervendo, acrescentei: “Os senhores são responsáveis por esse homem estar assumindo a Câmara. Os irresponsáveis são vocês. Vocês é que são os não patriotas. Como é que vocês fizeram uma merda dessas?”.
A conversa, que não durou mais de vinte minutos, terminou aí. Cardozo ouviu tudo sem dar uma palavra. Depois, em outro encontro, ele me disse: “Você chutou o balde”. E, ciente da gravidade da cena, colocou-se à minha disposição para, no futuro, testemunhar a meu favor.
Depois daquele encontro assombroso no Jaburu, segui para o Supremo com várias dúvidas na cabeça. Sabia que, depois de derrotar o candidato do governo e se eleger presidente da Câmara com o apoio de um novo Centrão, um bloco de deputados de diferentes partidos articulado por ele para pressionar o governo Dilma Rousseff, Cunha se tornara, para muitos analistas, o político mais poderoso do país. Mais poderoso até que a chefe do Executivo. Era ele quem ditava o ritmo do Congresso e emparedava a presidente da República, que não tinha a astúcia das velhas raposas políticas, mas era muito zelosa do espaço de poder que ocupava. Cunha vinha também recebendo crescente apoio do empresariado, dos evangélicos e de grupos de direita que lideravam grandes manifestações contra a corrupção nas ruas.
Mesmo assim, a abordagem de Temer e de Henrique Alves me intrigara: qual era a fonte de tamanho poder de Cunha, que o tornara capaz de envolver o vice-presidente em uma situação tão embaraçosa? Que loucura Cunha poderia fazer para colocar em risco o destino do país? Por que algumas pessoas pareciam temer tanto o presidente da Câmara, cuja fama era de ser um ex-figurante do baixo clero que ascendera graças à habilidade de enfiar “jabuti” em medida provisória? Obviamente eu não tinha respostas claras para essas indagações naquele momento. Mas tinha certa intuição.
Tempos depois, meu chefe de gabinete, Eduardo Pelella, recebeu a visita do ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, que havia sido o autor da denúncia do mensalão em 2006. Muito educado, ele pediu desculpas por tomar o tempo do assessor do procurador-geral, mas alegou que a conversa era importante. Sem citar nomes, passou um recado.
“Vocês estão com uma investigação muito perigosa, que pode ter consequências nefastas para o Ministério Público. Eu continuo sendo Ministério Público e estou muito preocupado. Queria que vocês ponderassem muito bem sobre essa investigação” , disse. Só posteriormente ficamos sabendo que ele assumira a defesa de Cunha como seu advogado. Mais tarde, o Pelella comentou comigo: “Chefe, quando a máfia tem um recado para alguém, entrega um peixe embrulhado num jornal”.
Pelella é uma das mentes mais privilegiadas da nova geração do Ministério Público Federal. Na época com pouco mais de 30 anos, ele já tinha sido defensor público e juiz, e fora o primeiro colocado no concurso que prestara para se tornar procurador da República. Não fora por acaso que eu o havia convidado para ocupar o cargo mais importante no meu gabinete, pouco depois de nos conhecermos, entre 2012 e 2013. Em Brasília, todos sabiam que, além da relação profissional, éramos amigos. Na verdade, Pelella é quase um filho para mim. Quando ele se mudou para a capital federal para trabalhar na Procuradoria-Geral, morou com a mulher e uma filha na minha casa por quatro meses. Então, muita gente sabia que falar com Pelella era uma forma de fazer a mensagem chegar aos meus ouvidos.
Meu chefe de gabinete não gostou de ouvir aqueles conselhos. Não há nada de errado num procurador que passa a exercer a advocacia depois de se aposentar. Mas não era de bom-tom um advogado com longa história no Ministério Público falar naqueles termos, e como se ainda estivesse no cargo de procurador. Este era um sentimento particular meu e de muitos outros procuradores, inclusive de alguns que não estavam vinculados às investigações da Lava Jato. Um ex-procurador-geral é sempre uma figura de respeito. Tudo que fala reverbera dentro da instituição.
Depois da visita de Souza, ressurgiu em nossas mentes a velha questão: de onde vinha o poder de Cunha? Primeiro vieram o vice-presidente da República e o ex-presidente da Câmara. Logo depois, o ex-procurador-geral. Não conhecia nenhum outro caso em que um ex-procurador-geral, ao atuar como advogado, tivesse tido uma abordagem tão incisiva e inadequada. À parte o incômodo, isso aumentava ainda mais nossa responsabilidade numa investigação que, segundo advertiam, em tom de ameaça, nossos interlocutores, poderia trazer consequências muito negativas para o país e o Ministério Público Federal.
Embora o inquérito sobre o pagamento de propina a Cunha fosse público, ninguém fora do meu grupo de trabalho sabia o que tínhamos e aonde poderíamos chegar. Publicamente, Cunha se dizia inocente, vítima de uma perseguição pessoal e política. Ele dizia que eu o perseguia por antipatia e por fazer o jogo do governo. Ao mesmo tempo, nos bastidores, o presidente da Câmara, com seu vasto poderio, se movimentava sofregamente para tentar descobrir quais cartas estavam em nossas mãos e como poderia nos derrotar.
Primeiro, ele tentou marcar uma conversa particular comigo por intermédio do secretário de Assuntos Institucionais, Peterson Pereira. Não aceitei. Não faria o menor sentido me reunir com um investigado que, sabidamente, não tinha o menor escrúpulo em manipular adversários e aliados para atingir seus fins. Ele tentou, então, descobrir com meu assessor se Júlio Camargo o tinha delatado ou não. Ou seja, se Camargo tinha revisado a própria delação para confirmar o relato de Youssef sobre a propina de US$ 5 milhões e, claro, os detalhes sobre o requerimento da chantagem. Tão simpático quanto discreto, Peterson desconversou e o deixou sem pistas.
Num momento posterior, a ofensiva veio mais forte. Num almoço com Peterson, Henrique Alves tocou no assunto. Ele também queria saber por que mares singrava o barco do Ministério Público. Sem muito sucesso na sondagem, foi claro no recado.
Pelo que conheço de Peterson, ele deve ter reagido com um sorriso daqueles que o interlocutor nunca sabe se são de confirmação ou de perplexidade. Como assessor parlamentar, cabia a ele manter as boas relações entre o Ministério Público e o Parlamento e não exprimir as próprias emoções, mesmo que a situação fosse extremamente repulsiva. Henrique Alves, porém, não estava jogando palavras ao vento. Aquilo não era uma ameaça vazia. Cunha e seus aliados não estavam brincando e começaram, de fato, a se mexer para derrubar a presidente Dilma, tornando mais clara aquela conversa na residência oficial do vice-presidente. O encontro no Jaburu aconteceu em março de 2015. A tempestade da Lava Jato sobre Brasília – e, claro, sobre nossas cabeças – estava apenas começando. Ao longo da Operação, Cunha se tornaria, de longe, o investigado a criar mais dificuldades para o Ministério Público. Mas nossos problemas começaram bem antes disso, e não se resumem à Lava Jato. Pior que enfrentar um inimigo, logo no começo da minha gestão, foi encarar a prisão de um ex-ídolo.
CAPÍTULO 2
A prisão de um ídolo
Eu assumi a Procuradoria-Geral da República em setembro de 2013, quando a Operação Lava Jato nem sequer estava no horizonte. O caso penal mais rumoroso na mesa do procurador-geral ainda era o referente ao processo do mensalão, como fora batizado pela imprensa o julgamento da Ação Penal 470, em que o ex-ministro José Dirceu e outros dirigentes do PT haviam sido denunciados por um esquema de compra de apoio de partidos e parlamentares ao governo Lula no Congresso Nacional. A denúncia fora feita em 2007 pelo procurador-geral Antonio Fernando de Souza, o mesmo que assumiria depois a defesa de Eduardo Cunha.
Quando eu cheguei à PGR, o julgamento do mensalão já fora concluído pelo plenário do Supremo, com a participação do meu antecessor imediato, Roberto Gurgel. José Dirceu; o ex-presidente do PT, José Genoíno; o ex-tesoureiro do partido, Delúbio Soares; o publicitário Marcos Valério, considerado o operador financeiro do esquema, e outros haviam sido condenados. Ninguém, porém, havia sido ainda mandado à cadeia, porque faltava o julgamento dos embargos infringentes – um recurso previsto no regimento do STF que dava aos condenados o direito de uma revisão de sentença, desde que tivessem obtido, ao menos, quatro votos favoráveis no julgamento inicial.
Depois da minha posse, o meu vice-procurador-geral eleitoral, Eugênio Aragão, muito ligado ao PT, me procurou. Ele estava preocupado com Genoíno, que fora condenado a seis anos e onze meses de reclusão por corrupção ativa e formação de quadrilha. No caso da condenação por corrupção ativa, que ocorrera por nove contra um, o ex-presidente do PT não tinha direito à apresentação dos embargos infringentes. Sua prisão podia ser determinada pela Justiça. Aragão me sugeriu que eu não tomasse nenhuma providência que pudesse significar a ida para a cadeia de Genoíno em relação ao caso do mensalão. “Deixa boiar, deixa boiar” , ele me disse.
Eu sabia que, como deputado, Genoíno levava uma vida modesta e continuava a viver na mesma casa do bairro do Butantã, em São Paulo, onde sempre morara. Não enriquecera nem se beneficiara pessoalmente no caso do mensalão. Mas eu não podia, como procurador-geral da República, simplesmente ignorar uma decisão do Supremo. Podia ter minhas convicções pessoais a respeito de Genoíno, mas não podia colocá-las acima das minhas atribuições como procurador-geral. Eu representava uma instituição num processo que correra dentro das regras do Estado de Direto, em que ele fora julgado e condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Respondi, de forma ríspida, a Aragão:
“Como deixar boiar, cara? Não pode ser assim. Você não pode deixar de cumprir uma decisão do Supremo. Vou fazer o que eu acho que tenho de fazer.”
Em 12 de novembro de 2013, eu fiz, então, uma petição bem curtinha em que pedi ao Supremo o início da execução da pena dos condenados na Ação Penal 470 cujas sentenças haviam transitado em julgado – ou seja, naqueles casos em que eles não podiam mais apresentar recursos contra as penas. A imprensa noticiou a minha petição com grande alarde e anunciou que eu pedira a prisão imediata dos condenados do mensalão – além de Genoíno, José Dirceu, Delúbio Soares, Marcos Valério e todos aqueles que haviam sido condenados e não tinham direito a apresentar embargos infringentes.
A notícia causou grande rebuliço. No Supremo, fui procurado pessoalmente pelo ministro Ricardo Lewandowski, revisor do caso do mensalão, que queria se certificar do conteúdo da minha petição. Também voltei a ser procurado no meu gabinete por Aragão, que me perguntou: “Você fez isso mesmo?”.
“Pedi o cumprimento da decisão transitada em julgado” , respondi.
Ele retrucou: “Pois é. Esse é que é o problema, você não deveria ter pedido”.
Encerrei a conversa e disse que a decisão do Supremo tinha de ser cumprida.
Apesar de meu pedido ao Supremo para o início da execução das penas dos condenados pelo mensalão ser um mero procedimento processual, aquela decisão não fora simples. Ao contrário. Pela primeira vez eu senti, de forma mais aguda, a repercussão política que uma decisão do procurador-geral da República pode alcançar. Além disso, eu conhecera pessoalmente Genoíno – e admirava sua trajetória. Nos anos de chumbo em que a ditadura governara o país, ele tinha sido um ativo militante da resistência política. Envolvera-se com a luta armada e participara da Guerrilha do Araguaia, organizada na década de 1970, pelo PCdoB, na divisa dos estados do Pará, Maranhão e Tocantins (à época, parte do estado de Goiás). Fora um dos poucos guerrilheiros a sair da selva com vida depois da operação de repressão desencadeada pela ditadura.
Com a redemocratização do país, Genoíno se tornou, dentro do PT, uma das principais vozes da esquerda a defender que a luta política tinha de ser feita dentro dos marcos democráticos e institucionais e que a via revolucionária tinha de ser abandonada. Como deputado, foi um destacado integrante da Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, o texto que sacramentou o fim do ciclo autoritário iniciado como o golpe que derrubou o presidente João Goulart em 1964 e fortaleceu o papel institucional do Ministério Público, dando-lhe a atribuição de defensor dos interesses difusos da sociedade e da cidadania.
Genoíno encarnava a luta política da minha geração e era uma espécie de ídolo para mim. Fazer uma petição que significaria sua prisão foi muito doloroso. Naquele dia, voltei para casa angustiado, e confesso que não pude conter as lágrimas, afinal, era como se estivesse aprisionando parte da minha juventude ou, em outro sentido, enterrando de vez o sonho de uma geração.
Nos anos 1970, nos meus tempos de estudante, como muitos jovens daquele período, tive certo ativismo político ao longo do curso científico do Colégio Estadual Central, escola pública de Belo Horizonte que tinha a reputação de formar a elite intelectual mineira. Na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, me aproximei do Diretório Acadêmico (DA), que servia também como escape para a chatice de algumas aulas. Eu passara em primeiro lugar no vestibular, mas Direito não era o curso dos meus sonhos. No colégio, gostava da área de Ciências e imaginava ir para a universidade para cursar Engenharia Química ou Bioquímica.
Acabei optando por Direito por uma questão prática. De família de classe média baixa, achava que o curso me proporcionaria mais facilmente a independência financeira e a realização do sonho de comprar uma chácara para o meu pai. Meu velho adorava bichos, mas não pudera concluir o curso de Veterinária na juventude. Primogênito de uma família humilde, ele virara telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil para ajudar o pai a sustentar a família e os demais irmãos e tivera que abandonar o curso no quarto ano, porque, se não o fizesse, seria transferido para o Acre para trabalhar na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Assistindo às aulas de Introdução ao Direito, eu me perguntava frequentemente, porém, o que estava fazendo lá. Cheguei a pensar em abandonar o curso, mas desisti depois de uma conversa com o meu pai. Trocar de curso implicava deixar meu trabalho como escrevente de um cartório – e meu pai não tinha condições de custear minhas despesas sozinho. Como não tinha a opção de sair do Direito, passei a estudar como um doido. Acreditava que o estudo seria o passaporte para melhorar de vida e garantir o futuro. Ao mesmo tempo, o Diretório Acadêmico acabou virando um refúgio para tocar adiante o curso até à graduação.
Como fazia oposição ao “sistema” , eu era de esquerda, mas não tinha filiação a partidos ou correntes. Lia Marx e Engels e, como era moda na época, usava cabelo comprido, camisetas com a estampa de Che Guevara e bolsas jeans que carregava a tiracolo. Participava também de passeatas na rua, em que os confrontos com a Polícia Militar e grupos de apoio à ditadura eram frequentes. Mas nosso movimento não tinha qualquer organização, estrutura ou planejamento. Era quase brincadeira de criança. Quando a coisa esquentava e a cavalaria da PM aparecia, corríamos para a escola e empilhávamos as mesas e as cadeiras das salas de aula nas escadas da faculdade, como se fossem barricadas. Outra tática era usar bolinhas de gude e rolhas para derrubar os cavalos.
Numa ocasião, uma disputa com um grupo de direita, numa rua próxima à Praça da Liberdade, Belo Horizonte, virou uma coisa mais séria. Degenerou para uma briga aberta em que o pessoal da nossa turma começou a apanhar muito. No meio do tumulto, quase fiz uma besteira. Minha trajetória poderia ter tomado um rumo completamente diferente – e muito mais difícil. A partir daquele dia, passei a evitar as manifestações de rua longe da Faculdade de Direito.
Depois de me formar, em dezembro de 1979, primeiro ano do governo de João Figueiredo, o último dos generais da ditadura, fui contratado para fazer parte do serviço jurídico do Banco Nacional. Com dois ex-colegas de faculdade, eu também montara um escritório. Fazia “clínica geral” em advocacia e pegava todo tipo de causa. Ao mesmo tempo, dava aulas de Direito Processual Civil e de Direito Comercial numa faculdade privada de Belo Horizonte, a Milton Campos. Devido ao meu vínculo com o banco, minha militância ficou mais discreta, mas eu mantive contato com os antigos colegas. Discutíamos como fazer oposição à ditadura, que começara a afundar. Chegamos à conclusão de que a melhor maneira seria combater o regime por dentro do Estado.
A maior parte dos meus colegas optou por ir para a Justiça do Trabalho, por achar que era o caminho para uma transformação mais rápida do “sistema”. Mas eu tomei outro rumo. Seguindo o conselho de um antigo professor, Osmar Brina Corrêa Lima, advogado e procurador, resolvi fazer o concurso para procurador da República. Nesse período, também fui aconselhado pelo meu chefe no serviço jurídico no Banco Nacional, Odilon de Azevedo Andrade. “Faça um concurso público que não te impeça de advogar. O emprego público vai te dar o arroz com feijão. A advocacia vai te dar o carro” , ele disse. Doutor Odilon foi um mestre no início da minha carreira, uma referência de vida importante, sobretudo naquele tempo, quando tinha acabado de perder meu velho pai e caminhava no escuro.
Na época, a função de procurador da República dava aos seus ocupantes um título, mas a carreira era mal remunerada – o salário, na ocasião, não passava de US$ 920 – e não tinha prestígio. Antes da Constituição de 1988, o Ministério Público Federal atuava na área de denúncia criminal, mas não tinha autonomia e acumulava o papel de Advocacia da União. Na prática, o Ministério Público não passava de um apêndice do Ministério da Justiça. Os procuradores eram subordinados ao Poder Executivo e não tinham uma série de atribuições e prerrogativas que, depois de 1988, proporcionariam ao Ministério Público um salto de qualidade institucional. Depois do conselho de Brina, estudei o assunto. O Brasil está mudando. Estamos saindo do regime militar. Isso é carreira de Estado, não tem como não dar certo. No Ministério Público, eu posso fazer a diferença. Tem que entrar e virar esse negócio por dentro, pensei.
Eu me inscrevi no sétimo concurso para procurador da República. Por causa do enorme espaçamento entre uma prova e outra, o concurso demorou dois anos, mas, ao final, fui aprovado, em 1984. Naquela época, recém-casado e sem filhos, preocupado em impulsionar a minha carreira, trabalhava catorze, quinze horas por dia. Minha renda mensal girava em torno de US$ 3 mil, mais de três vezes o que ganharia como procurador. Aprovado no concurso, porém, resolvi arriscar. Falei para a minha mulher: “Vamos conhecer o Centro-Oeste”. Mudei-me para Brasília, que eu até então não conhecia. Tomei posse no Ministério Público Federal no dia 1 o de outubro de 1984, cheio de expectativas de que ajudaria a mudar o Brasil. Mas não imaginava, nem de longe, que um dia poderia chegar a procurador-geral da República e que minhas decisões teriam um enorme impacto na sociedade brasileira.
Dois dias depois daquela decisão que culminou na prisão de Genoíno, participei de uma cerimônia de homenagem ao ex-presidente João Goulart, cujo corpo fora exumado, na Base Aérea de Brasília. À época, estava em curso uma investigação sobre a causa de sua morte. A suspeita era de que o ex-presidente fora envenenado. Na saída da cerimônia, fui abordado pelo então ministro da Indústria e Comércio, Fernando Pimentel, que depois viria a ser governador de Minas Gerais. Pimentel também participara da luta armada contra a ditadura e passara uma temporada na cadeia.
“Foi difícil, né, procurador? Dever de ofício, né?” , ele comentou comigo.
“Foi sim, ministro, dever de ofício. Mas não dá para tergiversar em relação a isso” , respondi. Em seguida, completei com uma frase que viraria o meu mantra: “A gente faz o que tem de fazer”.
O pedido de prisão do Genoíno foi o primeiro momento doloroso na minha passagem pela Procuradoria-Geral em que o dever teve que se sobrepor ao coração. Mas não foi o único. Ao longo da minha trajetória, eu me vi, algumas outras vezes, tendo que tomar decisões duras, contrárias a sentimentos pessoais. Mas ainda hoje julgo que não poderia ter sido diferente. O fiscal-chefe da lei não pode tergiversar, nem mesmo com os sentimentos. A lei é a lei. E, como diria sabiamente meu bom e velho amigo Sepúlveda Pertence, “a cadeira de procurador-geral é a segunda mais difícil da República, perdendo apenas para a de presidente”.
fim da amostra…