Livro ‘Inspeção’ por Josh Malerman

Livro 'Inspeção' por Josh Malerman
Rapazes e garotas estão sendo criados em escolas especiais. Um grupo não sabe da existência do outro — até agora. No alto de uma torre embrenhada em uma floresta e isolada do restante do mundo, temos J. Ele é um dos vinte e seis rapazes de um internato que tem como objetivo formar prodígios em artes, ciências e atletismo. Até hoje J só teve contato com as outras pessoas que vivem ali: os colegas são sua única família e todos acreditam ser filhos do fundador da escola. A vida acadêmica é tudo o que conhecem — e tudo o que lhes é permitido conhecer. Mas J suspeita da existência de algo mais fora dali, para além da Torre em que vive, algo que não querem que ele veja... 
Capa comum: 416 páginas
ISBN-10: 855100526X
ISBN-13: 978-8551005262
Dimensões do produto: 22.8 x 15.2 x 1.8 cm
Editora: Intrínseca; 1ª Edição (19 agosto 2019)
Idioma: Português

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Leia trecho do livro

Para Allison
A artista, a atleta, a modelo, a trapaça
A bebida que busco ao pegar a taça

Livro 'Inspeção' por Josh Malerman
Os Meninos do Alfabeto

Bom dia na Parentalidade!

Nunca um menino foi reprovado em uma Inspeção.

Por isso, J não ficou nada ansioso quando a porta de aço se abriu com um rangido diante dele, quando os rostos da Parentalidade apareceram, quando viu os Inspetores de pé, perto da parede dos fundos da sala, todos com a mão na lupa presa ao cinto. J havia feito aquilo em todas as manhãs de sua vida desde que podia lembrar e, apesar das teorias de Q sobre possibilidades e probabilidades (ele achava que um dia alguém não ia passar no Exame só para justificar aquela vida de Inspeções), J não sentiu dúvida, ansiedade nem medo.

— Entre, J — chamou Collins.

Collins, o Inspetor mais formal, grandalhão e velho de todos. O homem cheirava a livros didáticos antigos. Sua barriga pendia tanto por cima do cinto que D dizia brincando que Collins mantinha um Menino do Alfabeto escondido ali. É de lá que a gente vem , dissera. Mas todos os Meninos do Alfabeto sabiam que vinham do Pomar, tinham sido gerados pelas Árvores Vivas.

— Pode vir — pediu Collins.

Era incrível que nem uma palavra sequer passasse pelo enorme bigode castanho do homem.

J sabia que o Inspetor não falava por vontade própria.

O P.A.I. devia ter sinalizado que era hora de começar.

Ao som das risadinhas de L, D e Q, mais atrás, J entrou, tirou o pijama, o dobrou e o colocou em uma pilha bem arrumada na mesinha de aço ao lado da porta da sala de Exames. Quando a porta já estava quase fechada, D gritou:

— Você devia ter tomado banho, J!

J apontou para ele, fazendo o gesto que, para os Meninos do Alfabeto, significava: Você é um idiota, irmão.

Com a porta fechada e as roupas bem empilhadas, J pisou nas duas pegadas de borracha presas ao chão de aço inoxidável. O inverno se aproximava, talvez chegasse no dia seguinte. E, apesar de gostar do Encontro da Efígie tanto quanto seus irmãos, J preferia deixar o frio do lado de fora. A sala de Exames era tão frígida quanto todas as outras que ele conhecia na Torre.

— Vire-se — pediu o Inspetor Collins. Ele e Jeffrey o observavam de longe, sempre o primeiro passo da Inspeção matinal.

Os cachorros ofegavam do outro lado da porta de vidro atrás dos dois homens. J se virou para a esquerda. Ouviu o couro da jaqueta vermelha do P.A.I. repuxar. O homem, ainda fora de seu campo de visão, devia ter cruzado os braços ou se recostado na cadeira.

O inverno fora da Torre podia ser brutal. Alguns anos eram piores do que outros. J, que se aproximava do décimo terceiro aniversário, assim como seus vinte e três irmãos, havia passado por doze invernos. E, em cada um, o professor Gulch alertara os meninos sobre a ameaça da depressão. A sensação de solidão que ficar preso em uma torre de dez andares poderia causar quando o Pomar e o Jardim congelavam, quando até os pinheiros pareciam estar com frio demais para sobreviver.

Histeria, pensou J. Balançou a cabeça, tentando fazer o pensamento sair pelo ouvido. Era uma palavra que não gostava de ter dentro da mente. Como se as quatro sílabas tivessem o mesmo poder das Podridões e Mofos, Vês e Placasores. Exatamente as doenças que os Inspetores procuravam nele naquele momento.

— Vire-se.

Era Collins outra vez. Sua voz rouca dividiu e loteou a sala de Exames. Como o barulho de pratos se entrechocando em um refeitório. Ou o coral de vozes de seus irmãos no Salão dos Corpos.

— Frio — disse J, dando as costas para os Inspetores e se virando de frente para a porta trancada.

Era normal fazer frio na sala de Exames; brisas invisíveis, como se as paredes de aço fossem apenas uma ilusão, e reflexos distorcidos, desenhos instáveis do vento. J imaginou um corte em algum lugar, uma rachadura naquelas paredes, permitindo a entrada de uma prévia do inverno. Pensou que o lugar lembrava o consultório veterinário no livro de Lawrence Luxley, Cães e dias de cão. O brilhante escritor de ficção havia descrito muito bem a reação dos pobres animais:

Pouco acolhedora, fria, era como se o dr. Grand a tivesse feito daquela maneira de propósito, para que os cães entendessem a seriedade das visitas. E, ainda assim, apesar do ambiente inóspito, os cães entendiam que a sala era para o bem deles. Que a vida deles dependia daquelas visitas regulares. Alguns até conseguiam suprimir seus instintos mais básicos… que os instigavam a fugir dali.

J sabia de cor todos os livros de Lawrence Luxley. Muitos dos Meninos do Alfabeto sabiam.

— Vire-se.

J fez o que pediam. Sempre fazia. A rotina de Inspeções estava tão arraigada em seu ser quanto a necessidade de mastigar antes de engolir.

E, na terceira virada, ele se deparou com o P.A.I.

Um arrepio percorreu seu corpo, como sempre acontecia havia mais de doze anos, ao ver o P.A.I. pela primeira vez no dia.

A calça e a jaqueta vermelhas eram como uma fogueira quente na fria sala de Exames. Ou como o sol nascendo.

— Dormiu bem, J?

A voz do P.A.I. Sempre direta, sempre vigorosa. J não era o único Menino do Alfabeto que equiparava a voz do homem a força. Conforto. Segurança. Conhecimento.

— Na verdade, não — disse J, a voz de doze anos uma oitava mais grave que no ano anterior. — Sonhei com uma coisa horrível.

— É mesmo? — Os olhos castanho-claros do P.A.I. brilharam acima da barba preta, o cabelo preto também. J tinha cabelo preto. Assim como seu P.A.I. — Estou intrigado. Me conte como foi.

— Vire-se — solicitou Collins.

E J se virou para os Inspetores e para os cachorros outra vez.

Não mais encarando o P.A.I., o vermelho agora como um sangramento nasal visto pelo canto do olho, J contou sua aventura inconsciente. Ele estava perdido em um Jardim quatrocentas vezes maior do que aquele do qual desfrutava todos os dias. Descreveu o horror de não conseguir achar o caminho de volta para a Torre.

— Perdido? — repetiu o P.A.I.

O interesse óbvio em sua voz ficou tão claro para J quanto o som sutil das luvas de couro se dobrando ao redor do lápis.

É, explicou J, é, ele havia se sentido perdido no sonho. De algum jeito, tinha se afastado demais da Torre e da Parentalidade. Não conseguia lembrar exatamente como — os pinheiros que cercavam o Jardim não estavam no sonho. Mas sabia que tinha ansiado bastante por voltar. Ouvia os companheiros de andar Q, D e L chamando ao longe, mas não via os tijolos alaranjados da Torre. Não conseguia distinguir as estacas de ferro que demarcavam o parapeito do telhado como uma solitária fileira de dentes. Dentes por entre os quais J e os outros Meninos do Alfabeto haviam olhado muitas noites, quando encontravam coragem para subir escondidos até lá. Ele também não conseguira ver a estaca mais alta, o único dente de ferro que apontava para o céu feito uma presa. O terreno delimitado do Jardim havia desaparecido — a extensão de grama verde entre ele e a Torre. Assim como os reflexos nas diversas janelas compridas dos diversos andares. No lugar, havia um interminável gramado verde.

E névoa.

— Bom, o inverno está mesmo se aproximando — disse o P.A.I. Sua voz era controle. Sempre. Direção. Solução. Ordem. — Você não conseguia nem ver a presa, é? Nenhum sinal da Parentalidade. Nenhum sinal de casa.

J pensou na porta amarela do telhado, visível de qualquer ponto do Jardim abaixo. Pensou nos tijolos alaranjados e em como, nos dias de verão, a Torre parecia um grande alvorecer.

— Não — respondeu, balançando a cabeça e olhando para os rostos silenciosos dos Inspetores, que dedilhavam a lupa presa ao cinto em silêncio.

J entendia, aos doze anos, algo que não fora capaz de entender aos onze: as Inspeções não começavam quando os Inspetores pegavam as lupas. Começavam no segundo em que ele entrava na sala.

— Você deve ter ficado bem assustado — continuou o P.A.I. Sua voz era paternidade. Administração. Sempre. — Mas, me diga, conseguiu encontrar a Torre antes de acordar?

J ficou em silêncio por um instante. Coçou o cotovelo direito com a mão esquerda. Bocejou.

Histeria, pensou de novo. Fechou os punhos, como se quisesse socar o pensamento para fora da cabeça. O professor Gulch ensinava psicologia e destacava com frequência como a mente de um menino podia, de diversas formas, se voltar contra si mesma: manias, déficit de atenção, perseguição, dissociação da realidade, depressão e histeria. Para J, todas sempre soaram como impossibilidades distantes. Doenças que deviam ser estudadas apenas por serem objeto de estudo. J não tinha medo algum de um dia vivenciar aqueles estados mentais. No entanto, ali estava ele… aos doze anos… E de que outro modo explicaria as novas e desconhecidas sensações que vinha tendo nos últimos tempos? Como Gulch chamaria a sensação de isolamento, de incompletude, quando olhava para o Jardim, para a entrada dos muitos canteiros do Pomar? Para onde as Árvores Vivas cresciam?

O menino se lembrava da infância como se olhasse através de um copo sujo de leite. Incapaz de responder a uma pergunta simples: De onde venho?

Outra frase de Lawrence Luxley. Uma bela sacada, como diria Q.

Mas, não, pensou J, ali na sala de Exames. Ele não estava tentando responder à pergunta. Nenhum menino jamais havia conseguido determinar em que cerejeiras do Pomar eles foram gerados. E, pelo que J sabia, não viam problema algum nisso.

Ou viam?

— Não — respondeu J, por fim. — Não achei o caminho de volta para casa. Ele ouviu o lápis riscar o papel. Não foi difícil imaginar os olhos científicos e brilhantes do P.A.I. lendo as palavras que havia escrito.

Tal como todos os Meninos do Alfabeto, J se sentia honrado quando o P.A.I. anotava algo que ele dizia.

— E quando você acordou? — perguntou o P.A.I.

Não precisou terminar a frase. O que desejava saber estava claro.

— Achei que fosse verdade. Pensei que ainda estivesse do lado de fora. Como se tivesse acordado no Jardim, mas na minha cama. Olhei para cima e devo ter visto o teto, mas achei que fosse mais da névoa. Levei um tempo para entender que estava no meu quarto. — Ele hesitou. Imaginou o P.A.I. mexendo na barba preta com a mão enluvada. — Isso tudo aconteceu agora há pouco, claro, quando a chamada para a Inspeção me acordou.

— Claro — disse o P.A.I. — Agora me diga — continuou, e J já sabia o que ele perguntaria, mesmo antes de ouvir. — Você tem alguma teoria sobre a causa desse sonho?

Apesar de já ter sentido uma enorme gama de emoções naquela sala, J não estava preparado para o que sentiria naquele instante.

Medo.

E de onde saíra aquele medo? Ele com certeza sabia que a pergunta seria feita. Não tivera tempo de se preparar? Era isso? Ou era algo que Q consideraria “mais profundo”?

Claro que J sabia a resposta certa para a pergunta do P.A.I. Mas, pela primeira vez na vida, não quis dizer a verdade.

O choque de perceber isso não foi tão impactante quanto o que viria a seguir: a constatação de que havia decidido mentir antes mesmo de entrar na sala, só não tinha admitido ainda.

Por quê? Por que mentir?

Porque, pouco antes de se deitar na noite anterior, muito depois de terminar os estudos, J tinha visto alguém agachado atrás do Senhor Árvore, o salgueiro solitário que demarcava o fim do Jardim e o início do Pomar. Um vulto, acreditava ele. Talvez fosse só a forma de certos galhos tocando o solo da floresta, enquanto outros se uniam a ele, mas, na cabeça de J, o que tinha visto era uma pessoa.

Agachada.

Perto do Senhor Árvore.

Na hora, J pensou que fosse A ou Z. Não sabia por quê.

E talvez esse já fosse um bom motivo para mentir, refletiu. O P.A.I. e os Inspetores achariam que ele estava louco por insinuar uma coisa daquelas!

Um irmão morto escondido atrás de uma árvore à noite.

Como se fosse possível!

Olhou de Jeffrey para Collins, pensando que os dois Inspetores talvez pudessem detectar a história que ele escondia. Jeffrey ajustou o boné. Collins, a fita dourada que percorria seu ombro até a cintura. J olhou para o cinto dos Inspetores, como se a lupa pudesse penetrar sua pele, determinar a pureza em seu coração. Até os pastores-alemães começaram a arfar. Um deles, chamado Max, inclinou a cabeça para o lado, como os cães fazem ao ouvir um som curioso.

Histeria . J não queria parecer maluco. Não queria estar maluco. Ele tinha visto galhos, sombras e nada mais. Com certeza.

No entanto, mentir era sim um tipo de traição. J sabia disso. Talvez, quando crianças, ele e D tivessem protegido quem derramou o suco de cereja no carpete do corredor. Talvez uma ou duas vezes, ainda bebê, tivesse feito que não quando alguém lhe perguntou se havia feito xixi nas calças. Mas essas invenções espontâneas (e inofensivas, acreditava J, apesar das consequências de uma mentira) foram anuladas com um único tapa da mão coberta por luvas de couro vermelho. O P.A.I. era muito bom em colher de seus filhos a história verdadeira, como se tivesse pás invisíveis que sempre escavassem a verdade.

— J?

J pensou no livro de Lawrence Luxley sobre soldados, Grandes cavalos. Pensou em um soldado específico, um general chamado Sam. Sam, lembrara Q, vestia-se de modo parecido com os Inspetores. Um uniforme cinza de lã que sempre tinha um aspecto quente demais, mesmo que a temperatura parecesse baixar gradualmente durante uma Inspeção. Um quepe cinza. Uma fita dourada e um cinto marrom. Botas pretas. Ao longo de todo o livro, Sam sentia algo similar ao que J estava sentindo: tinha informações que não sabia se devia contar à tropa. Luxley fizera um trabalho incrível ao salientar isso em um monólogo interior de quase vinte páginas, em que Sam analisava a possibilidade de mentir, além das mentiras e das horas certas e erradas de usá-las. No fim, havia decidido que nenhum momento seria bom e que sua tropa merecia saber a verdade, por mais que doesse. Mas J leu naquele monólogo algo mais profundo do que os simples méritos da honestidade: o general Sam estava com medo. Não o medo que a Parentalidade tinha amorosamente ensinado os Meninos do Alfabeto a sentir — ou seja, de si mesmos e do que eram capazes de fazer a si mesmos caso não seguissem as regras da Torre. Mas sim… medo por si mesmo.

— Por quê? — perguntou ele em voz alta.

Ambos os Inspetores inclinaram a cabeça como o cão havia acabado de fazer.

— Como assim? — indagou o P.A.I. Mais uma vez, os sermões do professor Gulch sobre psicologia voaram feito pássaros na mente repentinamente perturbada de J.

J sabia que Sam tinha ficado dividido. J se sentia do mesmo jeito, exposto sob as fortes luzes fluorescentes da sala de Exames. Afinal, a iluminação agressiva mostrava cada ruga do rosto dos Inspetores, marcas que revelavam aos meninos a verdadeira idade daqueles homens, coisa que o sol do Jardim não conseguia fazer. E o mesmo valia para os meninos. Nunca a juventude deles ficava tão evidente quanto no momento em que tiravam o pijama e o depositavam, dobrado, em uma pilha na mesinha ao lado da porta. Um menino podia ver mais do próprio corpo ali dentro que no chuveiro… Revelações que muitas vezes o assustavam. Ao estender o braço, olhar a barriga ou erguer o joelho, um menino quase podia ver o sistema de veias e artérias que passava sob a pele, como túneis e pontes. Uma espinha, normal à luz do corredor, podia ser Placasores na sala de Exames. Os pelos clarinhos dos braços pareciam costurados na pele. Os nós dos dedos e os dedos dos pés lembravam couro velho e gasto. Umbigos, buracos. Unhas, madeira morta.

E às vezes J sentia que podia ver muito mais do que os detalhes desagradáveis de seu corpo. Às vezes sentia que podia ver desenhos na sala de Exames, imagens breves e fugidias dos fatos, não importavam quais fossem.

— J — repetiu o P.A.I. Sua voz era impaciência. Por mais amoroso que fosse com seus vinte e quatro filhos, o P.A.I. era sem dúvida o homem mais impaciente da Torre. — Vamos lá. Desembuche. Você tem uma teoria do que motivou esse sonho.

J se encolheu com a altura repentina da voz do P.A.I., como se o homem tivesse se movido em silêncio pelo chão frio e seus lábios estivessem a um centímetro da orelha do garoto.

— Me diga.

Era verdade; J tinha mesmo uma teoria para contar ao P.A.I. Foi para isso que os Meninos do Alfabeto tinham sido criados.

Pensar.

Mas J estava pensando em A ou Z, impossivelmente vivo, agachado e imóvel.

Conte a ele, pensou J. Mas uma voz mais profunda argumentou. Uma voz que parecia pertencer a um irmão inteligente.

Um irmão morto?

— Estou pensando — disse J. — Quero expressar isso do jeito certo.

Ele devia ter acordado Q na noite anterior, era o que devia ter feito. Tinha pensado nisso, claro. Os meninos do oitavo andar sempre entravam escondidos nos quartos dos outros quando surgia uma tempestade forte. Ou um pesadelo igualmente poderoso. J batera à porta de Q um mês antes, sentindo-se mal e torcendo para que Q tivesse um pouco de sopa do jantar. Mas, na noite anterior, apesar de querer uma confirmação, ele havia ficado na grande janela voltada para o Jardim, uma janela quase da largura da parede. Sabia que o irmão teria algo inteligente a dizer, que talvez até conseguisse provar que o vulto era uma combinação infeliz de galhos, folhas e luar. Porque era mesmo provável que o que J tinha visto não passasse de um misto de coisas inertes e sem consciência. No entanto… J sentiu um conhecimento emanar daquele bosque.

J sentiu vida. Ou algo parecido.

Você sentiu que estava sendo vigiado, isso, sim.

— Acho que foi por causa da mudança de andar que vai acontecer — disse J. — Eu cresci com o D, o L e o Q. Ser transferido de quarto no revezamento… Não sei. Concordo que a Parentalidade esteja fazendo a coisa certa, promovendo experiências novas, forjando novos elos, mas também é meio…

J sentiu o couro frio em seu ombro.

— É meio como estar perdido? — perguntou o P.A.I.

Com cuidado, ele virou J de frente para si. A lâmpada pendia logo acima da cabeça do homem, obscurecendo partes de seu rosto. J teve a impressão de que todo o rosto do P.A.I. estava coberto por pelos, como se as sombras fossem na verdade a barba crescendo, erguendo-se até seus olhos brilhantes, subindo ainda mais, até o topete de cabelo espesso e sedoso.

— É — confirmou J, engolindo em seco. — É bem parecido com a sensação de estar perdido.

Ele olhou para além do P.A.I., para o bloco de anotações na mesa de aço. Havia muita coisa na folha. Muitas anotações.

A Inspeção começa , voltou a pensar J, assim que entramos na sala .

O P.A.I. não assentiu. Não sorriu. Simplesmente o encarava. J sentiu que o homem estava mesmo usando as pás, analisando a mente de J em busca de um motivo melhor para o sonho do que a mudança de andar.

Então o rosto do P.A.I. mudou, só um pouco. Seus olhos se estreitaram, e o lado direito da boca se ergueu. Apenas o bastante para sugerir receptividade.

— Eu entendo — respondeu o P.A.I. — E tenho certeza de que vou ouvir mais histórias iguais a sua hoje durante nossas Inspeções matinais. — Sem dar tapinhas no ombro de J, ele voltou para sua mesa. Não disse mais nada sobre o assunto. Só ficou parado, observando. — Acabo de ter uma ideia maravilhosa. E se eu achar um jeito de você me contar suas ideias, seus sentimentos de forma mais direta? Uma coisa que você e eu possamos compartilhar? Talvez um caderno. Você pode anotar tudo e… me entregar. Podemos até nos corresponder assim.

Nunca houve uma sensação tão boa quanto a de ser escolhido pelo P.A.I.

— Isso seria… muito legal — disse J.

— Seria, sim. Maravilha.

No entanto, enquanto o P.A.I. continuava a encará-lo e estudá-lo, a costumeira lista de doenças horrendas passou pela cabeça de J. O motivo das Inspeções, segundo os meninos haviam aprendido no começo de tudo.

Vês. Podridões. Placasores.

Será que o P.A.I. estava procurando por isso? E será que podia ver esse tipo de coisa nos olhos de J? Será que veria em um caderno também?

— Senhores — disse o P.A.I.

Ele estalou os dedos enluvados. Um som quase tão familiar quanto a própria palavra Inspeção, quando ecoava estridente no alto-falante de malha de aço do corredor daquele andar.

Collins e Jeffrey pegaram as lupas e avançaram. O P.A.I. recuou, mas não voltou a sua mesa. J, virando-se para os Inspetores, sentiu o P.A.I. ainda dominá-lo, parado atrás dele com os braços cruzados, as luvas de couro apertando as mangas da jaqueta vermelha. Collins e Jeffrey olharam para o P.A.I. com a mesma expressão que J acreditava estar exibindo. Um pouco mais que confusão. Um pouco menos que medo.

O P.A.I. nunca assistia a uma Inspeção de tão perto.

Por que assistiria àquela?

Histeria, pensou J, decidindo que seria a última vez que pensaria nisso. Tinham sido apenas os galhos baixos do Senhor Árvore. Natural como as cerejas do Pomar. E um irmão morto agachado à meia-noite era… era… histeria.

Não. Ele não estava escondendo nada, porque não havia nada para esconder.

— Continuem — disse o P.A.I., sua voz fluindo como água por cima do ombro de J. A água se tornou uma onda, e, naquela onda, J imaginou um vulto agachado atrás do Senhor Árvore. — Quero garantir que o J entenda que, considerando seu pesadelo, ele permanece sob os cuidados da Parentalidade e que esta sempre estará aqui para protegê-lo. Graças às Inspeções.

Os Inspetores ergueram as lupas contra o corpo nu de J. O P.A.I. continuou falando. De perto. Perto demais.

— Quero que você saiba, J, que, caso alguma coisa parecida com seu sonho aconteça na vida real… por mais que a ideia seja impossível… você não precisa se preocupar em encontrar o caminho de volta para a Torre.

— Levante — solicitou Collins.

J ergueu os braços, e os Inspetores levaram as lupas às axilas dele.

— Caso você se afaste demais, J, meu J — disse o P.A.I. —, a Parentalidade vai encontrar você.

O RELATÓRIO BURT: 1º DE
NOVEMBRO DE 2019

Leia ao acordar

Vou direto ao assunto: se é ordem o que Richard mais aprecia no que ele mesmo chamou de “Anos Delicados”, este não é o momento de mudar os quartos dos meninos. Basicamente é o seguinte: Richard está certo. Aos doze anos, os meninos estão cada vez mais próximos de vivenciar uma sexualidade inédita em sua vida. É uma fase que todos nós, adultos, conhecemos bem. E será que nos lembramos de como as coisas se tornaram vívidas um ou dois anos depois? De como isso era assustador e excitante ao mesmo tempo? E, sobretudo, de como era emocionante? (ATENÇÃO: Richard, sei que odeia quando me dirijo diretamente a você nos meus relatórios, mas não posso deixar de salientar: tente se lembrar de seu desabrochar, pois nada é tão forte quanto o desabrochar da sexualidade masculina. Agora multiplique isso por vinte e quatro.) Eu não ficaria surpreso se descobrisse, ao ler os relatórios das Inspeções de hoje, que muitos dos meninos já estão demonstrando ansiedade com a mudança. Alguns podem demonstrar raiva. Alguns podem até mentir; e acrescento isso não para inculcar medo em Richard, tampouco com a intenção de menosprezá-lo, mas… acredito que seja verdade. Adolescentes mentem porque ainda não têm consciência da naturalidade de suas emoções contraditórias. Os Meninos do Alfabeto estão batendo à porta da adolescência. E, em um ambiente como o da Parentalidade, nem têm o exemplo, normalmente estabelecido um ou dois anos antes… por meninas.

Uma das muitas questões causadas por omitir deles a existência de mulheres. Mas, claro, nada que não estivéssemos preparados para enfrentar.

Bom, a lógica de Richard para as mudanças de quarto faz sentido. Em vez de andarem confusos e inquietos pelos corredores da Parentalidade, os meninos podem colocar a culpa da ansiedade crescente na mudança, ganhando com isso um alvo a ser evitado e prosseguindo assim com seus estudos, como Richard afirma que farão. Essa lógica faz todo o sentido mesmo, mas é apenas paliativa e vai acabar sendo esquecida. E quando o incômodo da mudança realmente passar… onde os meninos vão pôr a culpa por suas emoções repentinas? Conheço Richard bem o bastante para imaginar que ele já tenha outra carta na manga… e uma terceira… e provavelmente um baralho inteiro, já arrumado, para ser virado, revelado, novas preocupações, novos temores, até que os meninos estejam visivelmente confortáveis com os próprios sentimentos.

Os relatórios de Inspeção vão revelar quando esse dia chegar. Afinal, esses são mesmo os Anos Delicados.

Mas, se vou repreender Richard pelo uso de distrações em seu esforço supostamente inútil, devo acrescentar algo em troca. Devo sugerir uma alternativa de como nós, da Parentalidade, podemos lidar com essa revolução sexual (e não se engane, Richard: vai haver uma revolução dentro de cada um de nossos meninos, sangue derramado em campos de batalha particulares). Por isso, aqui estão minhas cinco soluções:

1) Incentivar os meninos ainda mais a se dedicarem às artes. Claro que não podemos revelar a eles a natureza da procriação. Não tem problema. Como a Constituição da Parentalidade estabelece de forma clara, não estamos aqui para criar biólogos e, apesar de a genialidade ter muitas formas, os Meninos do Alfabeto estão sendo criados para se tornarem os maiores engenheiros, cientistas e matemáticos do mundo. ARTIGO PRIMEIRO da CONSTITUIÇÃO DA PARENTALIDADE: A GENIALIDADE É PERTURBADA PELO SEXO OPOSTO. Todo o experimento de Richard se baseia nesse artigo primordial, que basicamente é a origem da Parentalidade. Por isso, enquanto outros meninos da mesma idade, ou alguns anos mais velhos, passam dois terços da vida tentando cortejar mulheres (e/ou simplesmente impressioná-las), os Meninos do Alfabeto vão trabalhar três vezes mais nos temas já mencionados. Ainda assim… deve haver uma válvula de escape. As artes cumprem essa função. Não os livros de ficção escritos por Lawrence Luxley, não acho que sejam capazes de satisfazer essa necessidade. As artes, as artes boas, motivadoras, podem ser um paliativo mais refinado, um reservatório, por assim dizer, que contenha a sexualidade que insiste em escapar pelos olhos e orelhas dos meninos. E não se enganem: os meninos vão mudar de maneira absurda, numa intensidade jamais vista pela Parentalidade.

X é um bom artista. G se mostrou uma promessa. Para mim, o Vozes não basta, por mais maravilhoso que o coral tenha se tornado.

Pintar um quadro abstrato , cantar uma música non sequitur … Isso pode aplacar os sentimentos insondáveis e desnorteados que eles vivenciarão.

Como sempre, falarei mais sobre isso em outra oportunidade.

2) Tentar influenciar os sonhos deles. Sugestões subliminares por toda a Parentalidade podem fazer os meninos sonharem com coisas específicas — coisas, visões e imagens tranquilizadoras capazes de ocupar o lugar de uma sexualidade sobre a qual eles propositalmente nada sabem (por nossa causa). Vou dar um exemplo (mas podemos nos encontrar e discutir isso de maneira muito mais ampla): pendurem fotos coloridas de colinas ou de paisagens desérticas em frente à porta do quarto do garoto mais popular de cada andar da Torre. Ou seja: no quarto em que os meninos se reúnem com mais frequência, pendurem uma paisagem que lembre uma parte de um corpo nu. Talvez esse pequeno presente (de nossa parte) alivie (de forma momentânea) a necessidade crescente que todos estarão enfrentando.

Como é o caso para todos esses postulados: falarei mais sobre isso em outra oportunidade.

3) Incentivar os meninos a aumentarem a frequência de suas atividades esportivas. Já fazemos isso, mas talvez não tanto quanto o necessário. Já foi compreendido (e bem documentado, claro) que Richard preferiria que os meninos passassem menos de dez por cento do dia fazendo uma atividade física, mas os Anos Delicados não anunciam a chegada apenas de um dilúvio emocional; os meninos vão precisar de uma válvula de escape física. Por que não estabelecer um novo decreto esportivo? UMA VOLTA NO POMAR DE CEREJEIRAS, que constitui um circuito de 3,1 milhas, a exata distância dos famosos cinco quilômetros que os meninos da idade deles estão, sem dúvida, correndo em outras partes do mundo. Caso essa ideia não agrade Richard, sugiro que comprem e instalem esteiras no quarto dos meninos. Quem sabe a que hora da noite eles sentirão necessidade de suar um pouco a camisa? Minha opinião profissional é: A QUALQUER HORA. A QUALQUER hora da noite. E a qualquer hora do dia.

4) Limitar a etapa física da Inspeção e aumentar o número de perguntas sobre emoções. Como declarei antes, os meninos têm muito a ganhar se expressarem os sentimentos abstratos que vão vivenciar (e já estão vivenciando!). Não importa se entendem todo o seu “novo eu”. Nós, adultos, já sabemos: “conhecer a si mesmo” não é possível, não por completo, mas tentar fazer isso durante a vida com certeza diminui o sofrimento.

5) Reconsiderar o Artigo Dezesseis da Constituição da Parentalidade, em que Richard (isso é obrigatoriamente verdade) incluiu a regra segundo a qual, sob circunstância alguma, não importa quanto os Anos Delicados se revelem difíceis, os Meninos do Alfabeto serão submetidos a qualquer tipo de castração. No entanto… já perdemos A e Z para fins muito piores. Será que não seria hora de considerar a remoção da sexualidade que Richard teme tanto que esteja surgindo? ATENÇÃO: Faltam um ou dois anos. Planejem agora.

Resumindo, Richard e a Parentalidade teriam condições tanto de incentivar a barragem da sexualidade pela abstração quanto de (desculpem) cortar o mal pela raiz. Segundo minha opinião profissional, as distrações (a mudança de andar, por exemplo) vão apenas salientar o tema, aumentar a curiosidade e a sede de respostas dos meninos, até o comportamento deles mudar radicalmente ou até que desrespeitem as regras básicas da Parentalidade e todo o envolvimento e a jurisprudência de Richard sejam perdidos.

A genialidade pode ser perturbada pelo sexo oposto, mas a sexualidade em si não se abala com tanta facilidade.

(Agradeço pela atenção, Richard, mal vejo a hora de conversar pessoalmente com você quando nos encontrarmos no Túnel de Glasgow.)


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