Livro ‘O Fantasma da Ópera’ por Gaston Leroux

Baixar PDF 'O Fantasma da Ópera' por Gaston Leroux

A clássica história de um triângulo amoroso que deu origem ao musical de maior sucesso da Broadway. Pela Ópera de Paris circulam bailarinas, cantores, funcionários… e rumores. Após uma sequência de acontecimentos estranhos e funestos, a nova direção da casa passa a levar a sério o que até ali julgara impossível: um fantasma assombra o teatro. Criatura mutilada e de passado enigmático, arquiteto de trotes e tragédias, o Fantasma da Ópera habita os labirínticos porões da construção e usa sua voz, suas lições e seu poder para seduzir a cantora Christine Daaé. Mas, quando ela rompe o pacto implícito entre eles, é arrastada para o subterrâneo – numa espiral de mistério, horror e música. Romance francês de ficção gótica, parcialmente inspirado em fatos históricos ligados à Ópera de Paris no século XIX, O Fantasma da Ópera mescla um triângulo amoroso com um thriller repleto de intrigas e inspirações diabólicas. Ingredientes que, quase duzentos anos após a publicação do livro….

Editora: Clássicos Zahar; Edição: 1ª (13 de junho de 2019); Páginas: 320 páginas; ISBN-10: 853781833X; ISBN-13: 978-8537818336; ASIN:

Leia trecho do livro

Apresentação

REGISTROS DO SUBTERRÂNEO

SE TODA BOA HISTÓRIA conta, na verdade, ao menos duas histórias, a máxima também vale para os cantos fascinantes da Terra. As cidades mais interessantes do mundo são aquelas que carregam consigo não apenas uma, mas diversas boas histórias pelas suas ruas, monumentos e cantos obscuros. É o que acontece com Paris.

Começando pela deslumbrante Paris dos cartões-postais. A torre Eiffel é um ponto de partida óbvio para depois seguirmos pela orla do Sena, passarmos pela linda (ou cafona, a depender do seu gosto) ponte Alexandre III e chegarmos ao Museu d’Orsay, onde estão obras de artistas como Van Gogh, Cézanne, Degas, Delacroix, Gauguin, Matisse e Manet — mas, acredite, o prédio por si só, antigamente uma estação ferroviária, já vale a visita.

A Shakespeare and Company é parada obrigatória para quem ama livros. A fie de la Cité, para conhecer a famosa catedral de Notre-Dame, que serviu de cenário para a história do corcunda. Já do outro lado do rio, o Louvre e o belo jardim das Tulherias. Um metrô — e uma boa disposição para subir escadas e vielas inclinadas — leva até o bairro de Montmartre, onde está a basílica de Sacré-Coeur, outro ponto que costuma arrancar suspiros de turistas. Morro abaixo, uma passada rápida no Moulin Rouge, o cabaré mais famoso do mundo, e a esticada final até a Ópera Nacional de Paris, sediada no imponente palácio Garnier.

Antes de ir para o atual endereço, a Ópera de Paris ficava na rua le Peletier, a cerca de dez quadras no sentido nordeste. Em 14 de janeiro de 1858, um crime forçou a mudança. Napoleão III chegava à Ópera em sua carruagem quando foi atacado por anarquistas italianos. O imperador escapou com vida, mas as bombas detonadas mataram oito e feriram quase quinhentas pessoas. No dia seguinte, Napoleão decidiu que a Ópera deveria ser abrigada num lugar mas seguro.

Esse lugar só ficaria pronto quase dezessete anos depois do atentado. O palácio Garnier — que leva o nome do arquiteto que o projetou, impressionando a todos ao propor uma construção para mais de dois mil espectadores — foi inaugurado no dia 5 de janeiro de 1875. Não bastasse ser uma das casas de espetáculo mais importantes do mundo, o palácio também foi transformado no cenário daquela que é provavelmente a mais emblemática história sobre a própria arte teatral e musical: O Fantasma da Ópera, do francês Gaston Leroux.

GASTON LOUIS ALFRED LEROUX nasceu no dia 6 de maio de 1868, em Paris. Filho de Dominique Alfred Leroux, empreiteiro que atuava no ramo de obras públicas, e Marie Bidault, filha de um oficial de justiça, foi o primeiro dos três rebentos do casal. Passou boa parte da infância em Sena Marítimo, departamento francês da região da Alta Normandia, mas foi em Caen, outra cidade da região, que se formou bacharel em Artes, em 1886, ano em que retornou a Paris, matriculou-se na faculdade de Direito e passou a escrever para jornais da capital.

Apesar de se tornar advogado em janeiro de 1890, Leroux dedicou poucos anos à profissão. Preferiu aliar o conhecimento do mundo jurídico com a sua verve jornalistica, transformando-se em um dos principais colaboradores de jornais franceses para a cobertura de grandes crimes. Dessa forma, assinou reportagens sobre atentados diversos, como um ataque com bomba à Câmara dos Deputados e o assassinato do então presidente Sadi Carnot, em Lyon, em 1894. Escrevendo para o Le Matin, um dos maiores veículos franceses da época, seu prestígio cresceu a ponto de ser um dos jornalistas que acompanharam Felix Faure, o novo presidente, em viagem feita à Rússia em agosto de 1897, pouco depois de Leroux completar 29 anos.

Como repórter, impressionou leitores com a reconstrução de cenas de guerra, fincou sua posição contra a pena de morte após presenciar a decapitação de diversos criminosos, cujos julgamentos acompanhou, e foi nomeado cavaleiro da Legião de Honra por conta dos serviços prestados a jornais como o Lutèce, o Paris e o L’Echo de Paris, além do Le Matin. Ainda escreveu relatos de viagens a países como Itália, Rússia (viveu em São Petersburgo enquanto cobria o processo que levou à queda dos czares), Marrocos e Suíça.

Apesar do sucesso como jornalista, é graças ao trabalho como artista que o nome de Gaston Leroux se mantém vivo. Em 1903, começou a publicar no Le Matin o Le chercheur de trésors (La Double Vie de Téophraste Longuet), primeiro dos quinze romances seriados que escreveu para o periódico. Em 1907, terminou sua primeira peça de teatro, La maison des juges, e iniciou a publicação de O mistério do quarto amarelo, outro romance seriado, o primeiro a fazer grande sucesso, que viraria livro já no ano seguinte (pela editora Pierre Lafitte, casa de outros 25 títulos de Gaston) e no qual apresenta Joseph Rouletabille, jornalista e investigador, um de seus personagens mais famosos.

Gaston Leroux lançou dezenas de livros — inclusive um pela Gallimard, editora das mais reverenciadas em todo o mundo —, viu sua obra começar a ser adaptada para o cinema (a primeira adaptação foi assinada pelo diretor Victorin Jasset, que transformou em filme o livro Balaoo), escreveu roteiros e emplacou ao menos uma peça de grande sucesso: L’Homme qui a vu le diable, que estreou em 1911. Influenciado por nomes como Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle, defendia firmemente a literatura policial, enquanto via sua obra ser comparada a clássicos como 20 mil léguas submarinas, de Jules Verne, por conta do apuro técnico apresentado em seus enredos. Parece não haver espaço para magia ou milagres na literatura de Leroux, traço também presente em O Fantasma da Ópera, seu maior trabalho.

Leroux casou-se duas vezes: com Marie Lefranc, em 1899, e com Jeanne Cayatte, a quem conheceu e com quem começou a se relacionar em 1902, durante sua temporada suíça como repórter. Gaston e Jeanne viveriam em concubinato durante quinze anos — dado que Marie recusava-se a assinar a papelada do divórcio de um amor que durou tão pouco — e só conseguiriam oficializar sua união em 1917, quando já tinham dois filhos. Gaston Leroux morreu em Nice, onde vivia desde 1909, no dia 15 de abril de 1927.

O Fantasma da Ópera foi publicado primeiramente de forma seriada, no jornal Le Gaulois, entre setembro de 1909 e janeiro de 1910, e neste mesmo ano reunido em livro pela Lafitte. O romance apresenta um triângulo amoroso que envolve Christine Daaé e Raoul, dois amigos de infância distanciados pelo tempo, e Erik. Christine é uma órfã que cresceu acolhida por funcionários da Ópera de Paris, onde aprendeu a cantar magnificamente, graças à ajuda de uma voz misteriosa, talvez um anjo, que sussurrava segredos e belas melodias em seu ouvido. Raoul, agraciado com o título de visconde de Chagny, fez carreira na Marinha e encontra-se num período de licença em Paris, e uma noite ouve Christine cantar, o que reaviva o amor que sentia pela moça na infância.

Erik, de sua parte, é um apaixonado por música que, devido a um segredo, vive nos bastidores da Ópera de Paris, conhecendo cada corredor, cada porta, cada passagem e cada um dos muitos mistérios que se escondem atrás ou abaixo do palco onde as apresentações acontecem. Enigmático, poucos sabem de sua existência e, quando o mencionam, normalmente são desacreditados. Os rumores aumentam quando Erik escreve uma carta ameaçadora, com algumas reivindicações para a nova diretoria: assegurar que o camarote n°5 seja destinado ao Fantasma da Ópera (que assina a carta) e receber um pagamento mensal, através de terceiros. Haveria um espírito afeito a coações escondido na principal casa de ópera de Paris?

A mensagem exige ainda que na apresentação de Fausto, marcada para dali a alguns dias, Margarida, a musa de Fausto, seja interpretada por Christine Daaé, e não pela principal soprano do elenco, a Carlotta. Erik quer apreciar a bela voz que tanto admira e aquilo que, justamente, fizera com que ele se apaixonasse por ela: o canto de Christine era tão belo quanto sua alma, o que não poderia ser dito da titular.

Sem que os gestores dessem bola para as ameaças, é a Carlotta quem sobe ao palco para protagonizar Fausto. Grande erro. Sua apresentação é um inaudito e fantástico fiasco, e a noite culmina em tragédia fatal quando o imenso lustre do teatro desaba sobre uma plateia lotada com as pessoas mais importantes de Paris.

No livro, o narrador de Leroux se mostra preocupado em, tal qual um jornalista, contar a história de forma objetiva, apostando até em esmiuçar pormenores em notas próprias de rodapé (recurso literário que, por volta de um século mais tarde, seria recuperado e radicalizado por autores como David Foster Wallace). A ideia é fazer com que o leitor acredite que tudo o que está no papel realmente aconteceu — e há certo êxito nesse sentido, afmal até hoje circulam lendas sobre fantasmas que habitariam o Garnier. “O Fantasma da Ópera existiu”, crava o narrador na primeiríssima linha do romance.

Ajudam a dar uma tessitura mais complexa à história as diversas conexões que existem entre o texto e episódios factuais, o que transforma numa característica bastante interessante o desafio de saber onde terminam dados concretos e começa a ficção. No prólogo, por exemplo, o narrador menciona que um corpo tinha sido achado no subterrâneo da ópera enquanto discos com gravações de grandes cantores estavam sendo ali enterrados. O corpo nunca existiu, mas os áudios, sim: foram lacrados e “guardados” em 1907 para serem reabertos em 2007, dando origem ao álbum Les Urnes de I’Opera.

A cena do lustre caindo e matando uma pessoa durante a apresentação também é fato, infelizmente. Em 1896, 21 anos depois de o Gamier ter sido inaugurado, o imenso candelabro principal se desprendeu e levou à tragédia. O problema estrutural ocorreu no contrapeso; há quem desconfie de uma criminosa sabotagem. Na ficção, Erik, o Fantasma, aproveita o momento de caos provocado pela queda do lustre para raptar Christine e impedir que ela viva um amor com Raoul. É aí que chegamos a outra Paris, uma bem diferente daquela dos cartões-postais.

HÁ UMA PARIS SUBTERRÂNEA que passa longe da atenção de muitos que visitam a capital francesa — muitos que olham apenas para cima, para o topo da torre, para o alto da Sacré-Coeur, dificilmente se interessariam por vasculhar o que está abaixo de seus pés. O passeio por essas catacumbas, muitas vezes feito de maneira clandestina, atrai outros tantos visitantes, curiosos por entender a Cidade Luz por meio dos vestígios ocultos de seu passado. Sob as ruas parisienses há centenas de quilômetros de túneis construídos por mineradores que exploravam pedreiras da região, ossuários improvisados após a superlotação de cemitérios no século XVIII e galerias que ocasionalmente recebem até exposições artísticas.

Essa Paris oculta é uma das chaves para entendermos O Fantasma da Ópera. É nas catacumbas que a parte mais dramática do romance se desenrola. Graças ao conhecimento dos caminhos obscuros que lhe servem de moradia, Erik consegue desenvolver soluções cerebrais, passagens entre espaços que, numa primeira análise, parecem dispositivos mágicos — sim, aqui está aquela engenhosidade que é uma das marcas de Leroux. E de onde vem todo esse domínio do terreno? Não bastasse a Ópera ter se tornado a casa de Erik, que se isola da sociedade por conta de seus mistérios, descobrimos também que ele foi um dos primeiros mestres de obra a trabalhar na construção do palácio Gamier e que, misteriosa e solitariamente, seguiu com as atividades quando as obras foram interrompidas, por ocasião de três episódios históricos que estão correlacionados, nos anos de 1870-71: a guerra franco-prussiana, o cerco à cidade e a Comuna de Paris.

As marcas da Comuna são exploradas por Leroux. Se visto da rua, o Garnier é um exuberante palácio onde as mais belas óperas são interpretadas, mas sob toda a sua imponência, ao menos segundo o romance, o que temos é a memória de uma das maiores carnificinas da Europa. Ali estão corredores secretos, abertos para permitir que carcereiros conduzissem prisioneiros a masmorras, e os ossos dos “desafortunados que, na época da Comuna, foram massacrados nos porões da Ópera”.

A Comuna de Paris foi uma insurreição que tentou implementar em parte da cidade um sistema comunitário de autogestão, numa época em que a França estava severamente abalada após a esmagadora derrota na guerra franco-prussiana. Era “um governo autônomo e progressista que trouxe liberdade para os parisienses, entre os quais muitos acreditavam ser ‘donos de suas próprias vidas’ pela primeira vez. Famílias de bairros proletários passeavam pelos beaux quartiers da capital, imaginando uma sociedade mais justa”, escreve o historiador John Merriman.¹

O movimento durou apenas dois meses e terminou com um gigantesco massacre. Quando as forças do governo conseguiram se reorganizar e avançaram contra os comunnards — como eram chamados os membros da Comuna —, deixaram oficialmente 17 mil mortos, mas estimativas indicam que esse número pode ter chegado a 35 mil; além disso, outras dezenas de milhares de cidadãos precisaram se exilar, foram presos ou deportados para a Nova Caledônia.

Um dos últimos polos de resistência da Comuna foi o bairro de Montmartre, onde a matança provou-se mais intensa. Alguns anos depois do massacre, a Igreja Católica, aliada do governo, numa espécie de revanche ou provocação aos rebeldes, ergueu no local a basílica du Sacré-Coeur, um dos mais belos lugares da cidade, esteticamente falando, porém uma das mais gritantes contradições entre a. Paris dos cartões-postais e a Paris subterrânea.

O que nos leva de volta às catacumbas onde vive Erik.

Não são os túneis, salas e saguões que existem sob o Garnier que mais chamam atenção no subterrâneo do lugar. O que impressiona mesmo é a existência de um lago debaixo do imenso teatro. “Eu tinha certeza de que tudo aquilo existia, a visão daquele lago e daquela barca subterrâneos não tinha nada de sobrenatural. Mas pense nas condições excepcionais em que alcancei aquela. margem. Mais medo não sentiam as almas dos mortos ao chegarem ao Estige. Caronte certamente não era mais lúgubre nem mais mudo do que a forma de homem que me transportou na barca”, surpreende-se Christine, ao começar a despertar nos subterrâneos, avistando o lago e lembrando o rio que dá acesso ao inferno, na mitologia grega, e do barqueiro que conduzia as almas até ele.

No romance, há quem diga conhecer o lago, apesar de não saber exatamente onde fica. Surpreendentemente, esse lago é um dos elementos presentes em O Fantasma da Ópera que encontram lastro na realidade. Em 1861, enquanto operários trabalhavam na fundação do prédio, notaram que numa parte do terreno pantanoso havia um fluxo de água que parecia nunca cessar. A solução, então, foi criar um grande tanque de pedra para contornar o problema. Uma visita de Leroux aos subterrâneos do Garnier e a surpresa que teve ao encontrar o lago, bem como seu espanto diante da complexidade dos túneis, pode ter sido um dos fatores que o levaram a escrever o romance.

Parte dessas informações também aparecem nas notas de rodapé desta edição da obra. Aliás, sugiro fortemente ao leitor que não ignore essas notas. Muitas proporcionam uma verdadeira aula sobre a cultura e a arte parisiense — só nesse trecho, por exemplo, são doze os ganchos para pequenas aulas sobre a história da música clássica: “Gounod regera A marcha fúnebre para uma marionete; Reyer, sua bela abertura de Sigurd; Saint-Saëns, a Dança macabra e um Devaneio oriental; Massenet, uma Marcha húngara inédita; Guiraud, seu Carnaval; Delibes, A valsa lenta de Sylvia e os pizzicati de Coppelia; as srtas. Krauss e Denise Bloch haviam cantado: a primeira, o bolero das Vésperas sicilianas; a segunda o brindisi de Lucrécia Bórgia” —, além de, como já vimos, o autor desdobrar o próprio texto em algumas delas. Por meio de seu narrador, Leroux nos dá também algumas lições sobre o que é ser um morador de Paris: “Nunca será parisiense aquele que não aprender a pespegar uma máscara de alegria sobre seus desgostos e o véu da tristeza, do tédio ou da indiferença sobre sua alegria íntima. Ao saber que um de seus amigos está em dificuldade, não tente consolá-lo; ele lhe dirá que já está consolado; mas se lhe aconteceu alguma coisa boa, evite felicitá-lo: ele julga sua boa sorte tão natural que se espantará que comentem isso com ele. Em Paris, estamos sempre num baile de máscaras, e nunca seria no foyer do balé que personagens tão ‘esclarecidos’ como os srs. Debienne e Poligny cometeriam a gafe de mostrar sua aflição, que era real”, escreve em uma dada passagem, evidenciando o certo ar blasé que muitas vezes parece pairar sobre a capital francesa.

Em outro momento, soa a cometa para criticar uma certa permissividade da França, colocando no texto uma questão que permanece causando discussões entre os locais até hoje, e que se manifesta na obra de importantes escritores contemporâneos, como Michel Houellebecq: a relação com os estrangeiros que passam por Paris ou a escolhem como cidade para viver. “O Persa”, personagem responsável por levar o romance a uma interessante incursão pelo mundo árabe, “como Raoul, estava naturalmente de fraque. Só que, enquanto Raoul usava uma cartola, o Persa tinha na cabeça um barrete de astracã, já mencionado por mim. Aquilo era uma excrescência no código de elegância que regia as coxias, onde é exigida a cartola, mas ninguém ignora que na França permite-se tudo aos estrangeiros: o boné de viagem aos ingleses, o barrete de astracã aos persas”.

Ainda sobre o texto, surpreendem as generosas doses de humor que Leroux emprega ao longo da narrativa. Antes que a tragédia se consuma, o episódio do fiasco da principal soprano na noite do Fausto tem seus momentos de graça, com a Carlotta desafinando e coaxando. Mas as melhores risadas brotam, principalmente, durante alguns diálogos, como este:

– Senhorita! — declarei. – Foi o próprio monstro que a amarrou… É ele que irá desamarrá-la… Tem apenas de representar a cena necessária para isso…! Não esqueça que ele a asna!

– Oh! – ouvimos. – Como eu poderia esquecê-lo?

Uma ironia inesperada, sobretudo no momento dramático em que esse diálogo acontece.

Ainda com resquícios do Romantismo, as relações amorosas de O Fantasma da Ópera são um tanto idealizadas. Raoul vislumbra em Christine a amada praticamente intocável, enquanto Erik projeta na cantora um amálgama do belo — uma junção de beleza física, beleza artística e beleza da alma, no caso. Christine ama mesmo Raoul, num flerte que proporciona frases como “beijou o pobre Raoul como uma irmã” e declarações como “Oh, Raoul, como seremos felizes…! Vamos brincar de futuro maridinho e futura mulherzinha…!”. No entanto, também tem uma parte de seu coração dedicada a Erik, com quem constrói um relacionamento que hoje não teríamos problemas em chamar de abusivo, marcado pela chantagem, pela violência emocional e até por um sequestro, vale lembrar.

Se Christine não se entrega logo a Raoul é porque “o gênio da música a proíbe de se casar. Em uma relação que nasce nas catacumbas da Ópera e com direito a imposições como “Christine, você tem que me amar!”, ao que a cantora responde “Como pode dizer isso? A mim, que canto unicamente para você!”, chega uma hora em que a própria personagem se sente fatigada. No entanto, também sente medo de que, ao desagradar o Fantasma, coisas horríveis aconteçam: “Se eu não for, será ele que virá me buscar com sua voz. Ele me arrastará para sua morada, debaixo da terra, e se porá de joelhos diante de mim, com sua caveira! E dirá que me ama! E cairá em prantos! Ah, essas lágrimas, Raoul! Essas lágrimas nos dois buracos da caveira. Não posso mais ver essas lágrimas correrem!”, desabafa Christine.

Erik não tem essa personalidade por mero acaso. Se a sua famosa máscara “evocava a máscara natural do Mouro de Veneza”, ou seja, Otelo, o ciumento e vingativo personagem de Shakespeare, o que está por trás dela o motiva em seus atos. A aparência grotesca de Erik fez com que fosse rejeitado por todos e procurasse por um abrigo distante da sociedade. O isolamento acabou por levar também sua alma em direção às trevas, sendo que a única luz que permaneceu acesa para guiá-lo em algum caminho belo era o da música — a música que saía de suas cordas vocais, a música que encantava multidões no Garnier —, além do vinho, pois a adega com crus franceses evidencia seu bom gosto para a bebida. Ao se aproximar de Christine, busca de forma bruta alcançar aquela que, como já foi dito, incorpora tudo o que ele poderia vislumbrar de belo. Além disso, é uma tentativa de manter perto de si alguém que, enfim, dera-lhe atenção e o tratara como gente.

“Pobre e infeliz Erik? Devemos lastimá-lo? Amaldiçoá-lo? Ele só pedia para ser alguém como todo mundo! Mas era demasiado feio! E foi obrigado a esconder seu gênio ou usá-lo para executar truques, ao passo que, com um rosto comum, teria sido um dos mais nobres da raça humana! Possuía um coração no qual cabia o império do mundo e no fim viu-se obrigado a se contentar com um porão. Com efeito, é digno de pena o Fantasma da Ópera!” A série de questionamentos ecoa na voz da própria Christine já no fmal da saga: “Pobre Erik! Pobre Erik!”

AO FINAL DA SAGA escrita por Leroux, digo. O Fantasma da Ópera foi muito além do livro lançado pelo francês no começo do século XX. Apesar de a história seriada ter sido recebida com alguma empolgação pelo público, foram suas adaptações que garantiram a fama da obra e asseguraram que a trama se mantivesse vivíssima. A primeira versão no cinema chegou em 1925, numa produção norte-americana dirigida por Rupert Julian e estrelada por Lon Chaney. Vieram outras, inclusive uma estranhíssima mistura com Fausto na adaptação que Brian De Palma fez em O fantasma do paraíso, de 1974. A mais recente dessas transposições estreou em 2004, no Reino Unido, foi dirigida por Joel Schumacher, contou com Gerard Butler e Emmy Rossum no elenco e levou o mesmo nome do livro. É comum que a cada versão os diretores imprimam nuances diferentes à personalidade dos personagens, o que acaba interferindo, claro, na maneira como a trama se eterniza na mente do espectador.

Contudo, foi no teatro que a história ganhou uma proporção ímpar. É difícil estimar quantas foram as vezes que o texto de Leroux foi levado ao palco, e apenas uma dessas adaptações já seria suficiente para consagrar o nome do francês: a assinada pelo britânico Andrew Lloyd Webber, que estreou em 1986, na Broadway, e se tornou a peça mais bem-sucedida de toda a história do teatro. Mais de 140 milhões de pessoas assistiram ao espetáculo, que já foi levado para 35 países — entre eles o Brasil. Em 2006, a montagem superou Cats e se tornou a produção mais longeva na história da Broadway — onde segue em cartaz. A estimativa é que apenas essa adaptação de O Fantasma da Ópera já tenha rendido ao menos 6 bilhões de dólares. Não bastasse, gente como Paul Stanley, da banda Kiss, Paul Williams e o grupo finlandês Nightwish já emprestou seu talento para a saga de Erik, Christine e Raoul.

Se uma boa história conta, na verdade, ao menos duas histórias, e uma cidade interessante como Paris pode ser desdobrada em ao menos outras duas cidades, não é diferente com O Fantasma da Ópera. E não deixa de ser curioso que uma história que se passa sobretudo nas obscuras catacumbas do palácio Garnier tenha se transformado em uma das mais belas obras teatrais da história, aplaudida em palcos de todo o mundo.

Rodrigo Casarin²


1. A Comuna de Paris — 1871: Origens e massacre (Rio de Janeiro, Anfiteatro, 2015). &

2. Rodrigo Casarin é jornalista e edita o blog de livros Página Cinco (Uol). Já colaborou com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Suplemento Literário Pernambuco, Aventuras na História e Jornal Rascunho, escrevendo principalmente sobre o universo literário. É autor de Punk: O protesto não tem fim (com Igor Antunes Penteado). Em 2018, integrou o júri do Oceanos — Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa.

fim da amostra…


Tags: ,