Livro ‘O Coração das Coisas’ por Leandro Karnal

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“Ver o todo pela parte e adensar coisas passageiras em seu sentido maior: eis minha maneira de encarar o coração de tudo.” “Entre o herói e o canalha, existe uma outra categoria, talvez a mais numerosa, o cúmplice silencioso, que nada fez para ajudar e também não tomou parte direta nas mortes. A maioria calada é sempre a face tranquila do mal em todas as épocas.” “Nunca tantos seres humanos tiveram a capacidade de ler. Nunca tantos leitores tiveram crescente dificuldade com a interpretação do lido.” “A dúvida incomoda muito e, não obstante, dela nasce quase toda transformação científica ou de valores.” “Viver é traduzir, ressignificar, adaptar, compreender, refazer, trair, ser literal ou fugir do original em bela licença poética.”

Páginas: 272 páginas; Editora: Editora Contexto; Edição: 1 (1 de junho de 2019); ISBN-10: 8552001438; ISBN-13: 978-8552001430; ASIN: B07R68KXHR

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Biografia do autor: Leandro Karnal é professor, historiador, graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Leciona há 30 anos, tendo passado por ensino fundamental, médio, escolas públicas e privadas, cursinhos pré-vestibulares, universidades variadas e hoje leciona na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Viaja bastante e observa professores e alunos em meios como comunidades indígenas no México, escolas da França, aulas no Norte da Índia, Vietnã e China. Sua meta de vida é ser lembrado como alguém que tentou ser um bom professor. 

Leia trecho do livro

Para Fabiana Knipl Rodrigues.

Um livro que tem este título deve ser dedicado a você.
Sua generosidade e afeto a tornam sinônimo de coração.

Introdução

Em 2017, surgiu pela Editora Contexto a primeira reunião das minhas crônicas no Estadão: Diálogo de Culturas . No ano seguinte, o livro O mundo como eu vejo chegava às livrarias. Completando a família, eis o terceiro, que você, estimado leitor e querida leitora, segura diante de si. Como no livro de 2018, dividi os temas em partes que representam diversos caminhos do meu pensamento: “A microfísica da vida”, “O tempo e a História”, “Deus e os homens”, “Educar quem e como?” e “O universo cultural”. São campos que me seduzem um pouco mais do que outros. No sentido positivo e negativo da expressão, sou um polímata, uma pessoa interessada em muitas coisas.

A natureza do gênero crônica e a minha formação alargam os dois primeiros setores. Tenho um olhar atento para o cotidiano e a experiência nasce da rua. Observo uma cena na fila do aeroporto, um pequeno ato na rua, uma situação hilária ou triste: a escrita é o estuário de muitos pequenos filetes d’água. O ato individual remete a alguma leitura, vivência anterior ou devaneio que busca amparo bibliográfico e conceitual. Ver o todo pela parte e adensar coisas passageiras em seu sentido maior: eis minha maneira de encarar o coração de tudo.

Com talento menor sigo o modelo de Michel de Montaigne. O modelo dos ensaios do francês sempre foi poderoso para minha busca. O filósofo se junta a Shakespeare, à Bíblia e aos acontecimentos históricos como as peças centrais da canastra da qual extraio as ideias.

Escrever é uma ourivesaria meticulosa e algo obsessiva. No avião ou nas minhas alvoradas produtivas, vejo a tela e suponho um tema e um caminho mental para desenvolvê-lo. Tudo transcorre em silêncio abissal. De repente, na rua ou por mensagem eletrônica, surge a personagem central: o leitor. É um dos momentos bons da existência: você se comunica com alguém que não conhece pessoalmente. Escrita é ponte e lente. Une pessoas e traduz visões. A ideia sai de mim, cresce, voa, encontra outra consciência e é refeita e ressignificada. A compreensão varia entre o autor e o leitor, mas ela não pertence, a rigor, a nenhum dos dois. Esse é o ponto mais interessante da produção cultural.

Peço ideias, submeto a revisões e discuto temas com três pessoas muito especiais: Luiz Estevam de Oliveira Fernandes, Rose Karnal e Valderez Carneiro da Silva. Sem eles não seria possível escrever ou o resultado seria pior. Muito obrigado a eles, do fundo do meu coração.

O título saiu de uma crônica: “O coração das coisas”. A ideia não é mostrar aquele texto sobre o coração músculo e o coração símbolo como o texto mais definidor. A ideia é que tudo possui uma parte interna, um coração, uma alma para quem desejar, uma essência, se nosso senso filosófico não estiver de mau humor. Olhar além da aparência, pensar o interior de tudo, ver partes que a fala, o gesto e o fato parecem ocultar, eis o motivo do título. Viver é decifrar signos “sem ser sábio competente”, como cantava Violeta Parra. Os signos nos excedem, como excederam Violeta, que acabou se matando. É sempre preciso ter esperança, muita paciência, humildade e tentar, de vez em quando, ouvir o bater do coração das coisas. Esse tem sido o meu desafio. Eis uma parte do meu itinerário pela frente. O texto é seu, querida leitora e estimado leitor. Os signos agora buscam a reinvenção pela janela do seu olhar e pela generosidade do seu coração. Obrigado!

PARTE UM

A microfísica da vida

Um mundo com menos

Minha infância foi a comum da classe média brasileira de então. Se eu tivesse de identificar a grande diferença entre ser uma criança em 1970 e hoje, no mesmo patamar social, apontaria para a variedade atual. Variedade do quê? Tudo.

Sobre a mesa da nossa cozinha repousavam bananas, laranjas, ocasionalmente maçãs. Havia um abacateiro por perto e, na época certa, os frutos ameaçavam carros e cabeças. Minha avó tinha uma videira com cachos de uma uva rosada. Gostávamos das mexericas, chamadas no Sul de bergamotas. Surgia de quando em vez um tipo de mamão amarelo e algum melão. Nada de kiwis ou da bela e insípida fruta-dragão. Desconhecíamos physalis. Vi minha primeira lichia já doutor.

Desconhecíamos physalis. Vi minha primeira lichia já doutor. Havia chocolates. Eram sempre doces e com leite. Hoje há com 75% de cacau, com leite, com pimenta e com grãos de flor de sal. O café chegou ao paroxismo máximo: descafeinado, com aroma, intensidades variadas, com espuminha de leite, nuvem leve de canela, traços de pó de cacau e até grãos defecados por um animal. O simples refrigerante, hoje, comporta as possibilidades de vir acompanhado de gelo, limão em rodelas, suco espremido ou fatias de laranja. Também pode ser zero, diet ou com sabores especiais.

Quase tudo que ocorreu faz parte de um processo de mundialização cada vez mais intenso. Exportamos e importamos com maior facilidade. Além dos fatos econômicos e geopolíticos, a informação circula mais e entre mais gente. Apesar da explicação óbvia, há mais coisas atrás do biombo.

Eu usava um calçado esportivo preto chamado Ki-chute nas aulas de Educação Física. Hoje, uma prateleira de tênis na loja é uma festa de cores cada vez mais impressionantes. É difícil escolher agora, em parte porque ficaram mais caros e em parte porque trazem excesso de informações. Sempre vejo nos tênis atuais a chance boa de que, em caso de cair em meio à neve em área isolada, serei visível até para um satélite do espaço.

Todo mundo que teve menos escolha e liberdade olha para hoje com a tendência de indicar que era mais feliz com menos e que as crianças atuais são mais entediadas. O desejo do consumo existe em todos os grupos sociais, ainda que nem todos possam atendê-lo. Zygmunt Bauman chega a sugerir que as lojas sejam denominadas farmácias, porque oferecem remédios para variados males. Está triste? Compre! Está eufórico? Compre! Está com tédio? Compre!

O mundo da internet tem um efeito secundário importante. Ele escancara as possibilidades de tudo para todos. Mesmo que eu não possa comprar X ou Y , estou exposto às ofertas. Sou seduzido como um Ulisses amarrado ao mastro, ouvindo sereias e ficando insano. A loucura passageira do rei de Ítaca pode ilustrar bem o desejo de consumir ainda que o ato da compra seja impossível. As sereias excedem a possibilidade de renúncia. Todos queremos nos atirar às rochas dos produtos.

Havia diferenças sociais (inclusive maiores do que as de hoje) quando eu tinha 7 anos. Havia pobres e ricos e, provavelmente, um maior conformismo com as desigualdades. É difícil comparar épocas. Queríamos coisas e desejávamos consumir. Tenho a sensação subjetiva de que aceitávamos melhor a recusa da nossa vontade. Não era necessário, parece, que as crianças fossem intensamente felizes 24 horas por dia.

Despontam duas diferenças notáveis que tornam a infância e a juventude de hoje distintas da minha. Associamos a ideia de variedade ao conceito de liberdade. Mais coisas a escolher parece representar maior liberdade, quando apenas quer dizer mais coisas a escolher. A expansão dos nomes das pizzas no cardápio não gera um aumento na qualidade do que é oferecido, tampouco alegria efusiva. Ter tudo à disposição roça em quase ter nada.

Temos equilibrado no mundo atual dois malabares no ar instável: a oferta excessiva de coisas para um grupo e a negação do consumo para muitos. Isso gera uma frustração muito grande. Seria como matar de fome uma pessoa em uma delicatessen com cheiros sedutores.

Como explicar que a diminuição visível da desigualdade de renda em alguns anos deste século não foi acompanhada de uma queda de furtos ou roubos? Devemos levar em conta que a força do consumo aumentou e nem sempre o crime é famélico. A lei é quebrada pela busca de status , por um celular mais avançado e pelo tênis importado. Matamos e morremos por logomarcas e seu valor simbólico. Uns estão entediados pelo excesso e outros ressentidos pela falta. Ambos constituem uma dupla complicada para um projeto nacional.

O processo de globalização é irreversível. As promessas de variedade e abundância foram incorporadas no mundo do desejo de muitas pessoas. Todos querem ser felizes e isso, hoje, implica consumir. Lógico que, no modelo atual, o consumo é insustentável. O padrão da classe média norte-americana não pode ser universalizado, o planeta não aguentaria o modelo. O primeiro problema está aí. O segundo está na tensão causada pela exposição clara de altos padrões de consumo para todos, inclusive para quem não pode adquirir as coisas que deseja. Em função disso, aumenta tanto a dor social de quem nada tem como o endividamento dos que possuem pouco.

Por fim, o terceiro e último problema: acima dos padrões das necessidades básicas, o consumo não tem poder redentor ou de esteio de felicidade. É um ópio, uma cortina de fumaça, uma forma de não encarar as questões centrais. Eis um enorme desafio para ensinar às próximas gerações.

Justiça e vingança

No escritor romano Tácito, encontramos a possível origem de uma ideia que seria repetida por muitos pensadores moralistas e pessimistas: os homens apressam-se mais a retribuir um dano do que um benefício, porque a gratidão é um peso e a vingança, um prazer. Ofensas perdoadas (como em Os miseráveis, de Victor Hugo) ou causadoras de toda a trama (como na telenovela Avenida Brasil) trazem à tona nosso melhor e nosso pior. Em qualquer enredo, o momento em que a sofrida mocinha, que vinha suportando barbaridades desde o primeiro capítulo da novela, finalmente ergue um olhar de rebeldia e esbofeteia a vilã registra pico máximo de audiência. Sim, da Roma de Tácito à França de La Rochefoucauld, vingar-se é um prazer. Se o deleite puder ser envolvido na sua máscara mais frequente, a justiça, chegamos ao nirvana absoluto das delícias humanas. Buscar justiça é mais edificante do que buscar vingança. Nosso demônio interno adora usar a espada do anjo da justiça.

A Lei de Talião está nas fibras profundas da nossa existência. A vendeta épica, como no filme argentino O segredo dos seus olhos (Juan José Campanella, 2009), é pouco acessível aos mortais como nós. O custo de uma vingança tão extraordinária como a descrita no longa é o uso de todo o tempo de vida. Tal obsessão implica um ódio e uma memória muito especiais. Poucas pessoas querem pagar o preço total. Quando conseguem, formam a narrativa de O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas.

Como não somos santos generosos e extraordinários com o poder de perdão do Monsenhor Bienvenu da já citada obra romântica francesa, também não teremos vinganças dignas de enredos comoventes. Quase todos somos medíocres no amor e nos ódios. Restam-nos as pequenas vinganças… Não tendo acesso ao elenco principal, nosso papel coadjuvante tem sido bem elaborado. Nosso dia a dia é tomado por microprazeres do “olho por olho e dente por dente”.

Recordo-me de uma história narrada por uma grande amiga. Casada com um homem muito incisivo (amo eufemismos), descreveu um episódio de vida turística com o consorte. Estando em Nova York, ela presenciou uma compra e como ele pagou em dinheiro. A responsável, zelosa e cumpridora de uma norma superior, pegou cada nota e as examinou com um pudor único. Olhou contra a luz uma a uma, apalpou, passou o dedo exigente sobre as microrranhuras do meio circulante para, enfim, encerrar o ritual da probidade com uma caneta capaz de eliminar as últimas dúvidas.

O marido em questão, em vez de reclamar imediatamente como estava habituado, assumiu uma posição cordata e silenciosa que trouxe estranheza à esposa, sabedora do seu gênio querelante. Ele sorria. Por que um homem demarcador rígido de espaços sorria diante da desconfiança indireta que lhe era imputada? Obviamente porque já antecipava sua vingança, sua pequena guerrilha de contra-ataque ao ato indigno de pública dúvida sobre sua honestidade.

A quantidade de fregueses à espera era grande na loja no coração de Manhattan. A fila, como muitos sabem, é um valor superior a Deus e à pátria nos Estados Unidos. Terminado o exame inquisitivo, aprovadas todas as cédulas entregues, a mulher deu a ele algumas pequenas notas de dólar como troco. Ele agradeceu, educado como uma moça pudica do velho Sacré-Coeur, e, de maneira teatral, passou a realizar exames no troco que excediam, largamente, o procedimento da funcionária. Cada nota foi apalpada, cheirada e sentida como se nelas residissem as verdades mais sublimes do Altíssimo. Depois, com o ar tranquilo de um monge do Himalaia, pediu a caneta verificadora e passou dezenas de traços em cada nota, exarando com vagar o veredicto final sobre a reta procedência do valor. Checou as imagens, colocou contra a luz e olhou com ponderação minuciosa.

Durante o angustiante procedimento, ele ficava elogiando o cuidado da caixa, dizendo que, de fato, nunca se pode confiar, que ela fazia bem, que era assim mesmo que se evitavam fraudes. Falava em voz alta e louvava a atenção extrema do estabelecimento, paralisando uma possível reação dela com profusos elogios. Finda a liturgia da vingança, agradeceu, bradou mais uma vez para toda a loja que a ação dela era exemplar e que ela e todos da fila deveriam continuar fazendo isso, com arengas contra o estelionato insidioso. Retirou-se, sorridente. A ação tivera efeito similar ao já indicado tapa no rosto da vilã no último capítulo. Catarse completa. Vingança, a doce figura de Tácito, estava impetrada!

Já foi dito que somos bons quando somos bons e somos ainda melhores quando somos maus. Mesmo os mais abnegados professores ocultam pouco um sorriso interno quando o aluno que atenazou sua vida o ano inteiro fica retido no conselho de classe. A mais zelosa das mães que adverte com insistência um filho que leve casaco e recebe um muxoxo em troca talvez exulte internamente quando o birrento reclama que passou muito frio. O castigo é a alma da lei e do sistema da autoridade. Tudo em pais, policiais e professores indica que nossos valorosos conselhos só se tornam importantes quando, ignorados, se transformam em desastres aos que fazem ouvidos de mercador.

Saramago, no diálogo da barca em O evangelho segundo Jesus Cristo, coloca na boca de Deus-Pai que o demônio é fundamental para a obra celestial. Sem o risco da punição, toda regra amorosa ficaria vazia. E se os fumantes morressem com pulmões de crianças no bosque? E se o consumo de gorduras e doces emagrecesse? E se os medíocres triunfassem? Se os adúlteros tivessem prazeres multiplicados e nenhum ônus decorrente do seu gesto infrator? O que seria da virtude sem o inferno ou o colesterol? Para isso existe a vingança, quero dizer, a justiça…