Livro ‘Viva Como Se Estivesse de Partida’ por Rafael Henzel

Baixar PDF Viva como se estivesse de partida

Depois de mudar três vezes de assento, esperar por horas até ser resgatado e passar por um árduo processo de recuperação, Rafael Henzel, um dos seis sobreviventes do acidente aéreo da Chapecoense, reflete sobre o que mudou em sua vida e o que aprendeu a de fato valorizar. Superando a catástrofe e olhando sempre para o lado bom da vida, ele nos mostra que não é preciso sobreviver a uma tragédia para começar de novo. Viva como se estivesse de partida é o relato emocionante de um homem que por muitos é considerado um milagre, mas que se vê apenas como um instrumento que lembra a todos que o cercam de que é preciso ter fé. Sempre.

Páginas: 120 páginas; Editora: Principium; Edição: 1ª (5 de maio de 2017); ISBN-10: 9788525064202; ISBN-13: 978-8525064202; ASIN: B073XWHXHG

Leia trecho do livro

SUMÁRIO

Um sonho interrompido
A solidariedade deixa marcas
A motivação é estar vivo
Coragem em cada abraço
Uma mensagem de esperança
Tempo de serenidade
Uma regra sem exceção
O milagre existe
Felicidade que transborda
O futuro me reserva gratidão
Hora de olhar para a frente
Nós não estamos sozinhos
Posfácio Caderno de fotos
Agradecimentos
Notas
Sobre o autor
Créditos

Este livro é dedicado a todas as vítimas do voo da LaMía e seus familiares e a todas as pessoas mundo afora que oraram por esses amigos que nos deram grandes alegrias.

Dedico esta obra também a todos aqueles que, numa rede infinita de solidariedade, me deram a oportunidade de levar a mensagem de que muitas vezes o impossível é possível.

E, por fim, dedico Viva como se estivesse de partida aos sobreviventes: os membros da tripulação Erwin Tumiri e Ximena Suárez e os jogadores Neto, Follmann e Alan, provas de que Deus é poderoso.

Que os vossos esforços desafiem as impossibilidades, lembrai-vos de que as grandes coisas do homem foram conquistadas do que parecia impossível
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— CHARLES CHAPLIN

UM SONHO INTERROMPIDO

O RELÓGIO MARCAVA MEIA-NOITE do dia 23 de novembro de 2016. Eram os últimos momentos do jogo que alçaria uma equipe de futebol, e também uma cidade e uma região, a um patamar jamais imaginado. Anos antes, a Chapecoense costumava apenas sobreviver no Campeonato Catarinense. Dessa vez, não. Era a semifinal da Copa Sul-Americana. O estádio estava iluminado, não apenas pelos refletores, mas pelas luzes dos celulares de 16 mil torcedores. Alegoricamente, iluminado ainda pelo brilho de atletas que chegavam ao penúltimo degrau de uma das competições mais importantes da América do Sul.

Na cabine da Arena Condá, eu estava tenso. Afinal, do outro lado atacava o San Lorenzo, time tradicional da Argentina, que em 2014 havia conquistado o título da Libertadores da América. Um gol adversário, àquela altura do segundo tempo, poderia interromper um sonho — e isso quase aconteceu, trinta segundos antes de o jogo terminar, num cruzamento para a área, seguido por um chute a poucos metros da linha do gol. Com o pé direito, quase por reflexo, Danilo evitou o gol argentino que poria um ponto-final na competição para a Chapecoense. Fui junto com o goleiro. Vibrei com ele e chorei como muitos quando o árbitro encerrou a partida. Numa torrente, palavras e lágrimas faziam a alegria transbordar nas frases ditas ao microfone. A final da nossa “Copa do Mundo” se aproximava.

A classificação para a final tinha um sentimento de novidade, tal qual a primeira vez em que eu entrara no estádio índio Condá. Como nas tardes de domingo nas quais eu vendia pastel ou picolé na porta do estádio para ajudar a família. Lembrei as tantas vezes na adolescência, sem dinheiro para comprar ingresso e ver a Chapecoense, que esperei até os quinze minutos do segundo tempo pela abertura do portão para entrar de graça. Ou que contei com a boa vontade do porteiro em permitir meu acesso às arquibancadas no segundo tempo.

Mesmo com vários anos de jornalismo, eu ainda me impressionava com as entrevistas após as partidas. Na maioria das vezes, jogadores e treinador exaltavam os torcedores e a cidade. Essa cumplicidade se comprovava nas ruas, nos supermercados, no shopping center, nas escolas, nos diversos cantos da nossa cidade de 210 mil habitantes. Cada um dos jogadores parecia um vizinho mais próximo, um amigo sempre disposto a nos saudar. Eles podiam ser considerados os nossos embaixadores pelo país e pelo mundo.

A nossa “Copa do Mundo” começou a ser disputada em Cuiabá, contra o time que tem o mesmo nome da capital do Mato Grosso. Era dia do meu aniversário. Naquele 25 de agosto, longe de casa e da família, eu estava pronto para narrar o que seria uma trajetória histórica para a Chapecoense. Os duelos, vencidos nos últimos minutos de jogo e nos pênaltis, foram repletos de emoção. O pé salvador de Danilo no último lance da semifinal era mais uma dessas alegrias transbordantes.

O ano de 2016 foi intenso para o clube e para quem o acompanhava. Até aquele momento, eu já havia narrado vinte jogos do Campeonato Catarinense — que culminaram no título da Chape —, 36 jogos do Campeonato Brasileiro e outros oito da Copa Sul-Americana. Além disso, eu mantinha o foco nos programas matinais e vespertinos que apresento na rádio. Mas eu imaginava que o principal estava por vir. O principal para mim, para a cidade e para a Chapecoense. Seria o maior ano de todos. Com a permanência na elite do Campeonato Brasileiro do ano seguinte garantida semanas antes, a final da Copa tornara-se uma realidade. Vencê-la era um objetivo comum para todos nós.

Apenas na sexta-feira, dia 25 de novembro, pude programar a viagem para a Colômbia, onde ocorreria a primeira partida da final. Foi quando a diretoria definiu a empresa que nos levaria com a delegação e os valores que pagaríamos para acompanhar o primeiro jogo da decisão. Eu sempre compartilhava com minha família esses momentos. Nossos encontros eram regados por fatos e fotos das viagens que o trabalho me proporcionava, e, daquela vez, a expectativa pelo próximo roteiro, a Colômbia, era grande. Apesar de meses antes ter visitado a trabalho a cidade de Barranquilla, no mesmo país, a ocasião seria completamente diferente.

Por causa da correria do cotidiano, não costumávamos almoçar na casa da minha mãe tanto quanto gostaríamos. Mas no sábado, antes da viagem para a final, estive com ela. Nesse almoço, compareceram também a familia da minha irmã, o meu filho e a minha esposa. Todos ficaram por dentro da minha agenda para os dias seguintes e se animaram com tudo aquilo que acontecia na minha vida e com a equipe da Chapecoense. Eu partiria no domingo cedinho para São Paulo, pois haveria o jogo contra o Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro, e na segunda-feira para a Colômbia. Naquela ocasião, nos despedimos — e mal sabíamos que poderia ter sido a última vez em que nos veríamos.

A madrugada de domingo começou com um grande encontro de amigos que fariam o mesmo itinerário do nosso grupo da rádio Oeste Capital FM. No aeroporto de Chapecó, o assunto era unânime: aquele seria um momento muito importante para o oeste de Santa Catarina. Entretanto, era impossível prever que torcedores, dirigentes e colegas da imprensa partiam para a jornada da qual, infelizmente, não retornariam.

Já em São Paulo, seguimos para o Allianz Parque, onde gravamos vídeos, almoçamos e recebemos a Chapecoense. Foi tudo perfeito. Não houve nenhum erro técnico na transmissão, nenhuma desilusão com a derrota para o Palmeiras. Acima de tudo, aquele era um sonho que se tornava realidade. No dia 7 de dezembro, no último jogo do ano contra os colombianos do Atlético Nacional, realizaríamos a mesma festa de campeão que o Palmeiras estava fazendo com a vitória sobre a Chapecoense pelo placar mínimo. Nada nos tirava a alegria. “Hoje, o Palmeiras comemora. Quarta-feira, na Colômbia, será a nossa vez”, eu disse ao microfone, após o apito final em São Paulo.

Lembro que não foi fácil dormir naquela noite. A ansiedade me tirava o sono. Pensava como seria a viagem, como seria o primeiro embate da final. Na manhã da véspera, ficamos sabendo que a empresa LaMia, que nos levaria a partir de São Paulo, não tinha sido autorizada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) a pousar em aeroportos brasileiros. Sinceramente, isso não foi marcante, já que, na ida para Barranquilla, em outubro, a nossa viagem com a empresa também começara a partir da Bolívia. Assim, a segunda-feira, 28 de novembro, iniciou de forma normal. Acordei às seis e meia da manhã para gravar o primeiro programa do dia, que ia ao ar das sete às dez horas. Pelo grupo de um aplicativo, recebi a informação de que a delegação chegaria por volta das onze e meia ao Aeroporto Internacional de Guarulhos.

Chegamos antes deles para despachar a bagagem. No entanto, eu e os demais colegas ficamos mais de três horas esperando para despachá-la e pegar os bilhetes com outra empresa boliviana, que nos levaria até a conexão em Santa Cruz de la Sierra. Apesar da espera prolongada, não podia haver clima melhor no grupo. Jogadores, dirigentes, comissão técnica, convidados e jornalistas contavam histórias, comentavam o jogo anterior e projetavam o confronto na Colômbia. Todos estavam unidos. Todos queriam participar daquela história de um time que alcançava a glória vindo de uma cidade do interior.

A decolagem do nosso voo para Santa Cruz de la Sierra estava prevista para as 3h15 daquela tarde. Porém, por causa da demora da companhia aérea em imprimir os cartões de embarque, nossa saída atrasou mais de uma hora. Entre um suco e outro, gravamos uma conversa com Neto, um jogador que no início do ano havia sofrido uma lesão na coluna, mas que, com muita fé e tratamento, conseguira se recuperar. Como muitos, chegava a um momento especial na carreira. Neto falou em Deus, em mérito, em destino. Menos de doze horas mais tarde, nossos destinos seriam separados das outras 71 pessoas com quem compartilhamos o segundo voo.

Eram cinco horas da tarde de segunda-feira quando o avião finalmente decolou da pista do aeroporto de Guarulhos. A delegação, misturada aos demais passageiros, viajou tranquila. Houve apenas uma pequena turbulência. Poucas horas depois, pousamos no aeroporto boliviano. Por causa do atraso no Brasil, a troca de aeronave foi rápida. Fomos recebidos pela tripulação da LaMia, praticamente a mesma que nos levara para Barranquilla no mês anterior. O voo fretado não tinha de obedecer aos mesmos procedimentos de um voo comercial. Antes de decolarmos, saímos algumas vezes da aeronave. Numa delas, fiz uma selfie com o jato ao fundo, personalizado com o emblema da Chapecoense, por achar interessante as plotagens que a empresa fazia com a marca das equipes que contratavam o seu serviço.

Quatro horas e meia, aproximadamente, nos separavam do aeroporto de Rionegro, localizado a quarenta minutos de Medellín. Cada passageiro encontrou uma maneira de passar esse tempo. Alguns atletas jogavam cartas, outros ensaiaram um pagode, um grupo levou um videogame. Nós, os jornalistas, conversávamos sobre nossas carreiras, histórias de futebol, memórias pessoais. Éramos 22 jornalistas, radialistas e técnicos de emissoras de TV. Além de mim, oito colegas da imprensa de Chapecó viajavam entusiasmados com a oportunidade de testemunhar a maior decisão dos 43 anos da Chapecoense.

Tentei dormir durante a viagem. Apesar do cansaço por acordar cedo e viver um dia intenso, não consegui. Busquei me distrair trocando de lugar várias vezes. Em instante nenhum recebemos da cabine informações sobre o tempo de voo, escalas ou hora do pouso. Como sentei na penúltima fileira, na poltrona do meio, perguntei algumas vezes para os tripulantes que estavam próximos quanto tempo restava de viagem. Todas as perguntas foram respondidas com “dez minutos”. Nem eu nem qualquer outro passageiro tinha a mínima ideia do que se passava. Apenas aqueles que estavam na cabine de comando tinham algum conhecimento da situação. Mesmo do banco do meio, tentei visualizar pela janela alguma luz que pudesse indicar que estávamos chegando.

O voo seguia tranquilo, ainda que cansativo. Particularmente, eu não imaginava que o tempo no ar já alcançava o limite da autonomia da aeronave. Era quase 1h15 da madrugada da terça-feira, horário de Brasília, quando algo muito estranho aconteceu. Notei os motores desligarem. Houve um silêncio horrível. Não bastasse isso, todas as luzes da aeronave se apagaram, e as de emergência se acenderam. Fiquei preocupado, assim como alguns dos demais passageiros que ainda estavam acordados. Alguns questionavam: “O que está acontecendo?”. Atrás de mim, alguns tripulantes diziam que estava tudo normal. Observei, à minha esquerda, que a comissária afivelava o cinto de segurança. Fiz o mesmo. Ela estava na parte de trás da aeronave, de costas para os passageiros e voltada para a parede que dava acesso ao banheiro. Meu coração batia acelerado. Algo me dava a impressão de que o avião iria cair por causa das turbinas desligadas. Porém, minutos depois, disse aos colegas que estavam ao meu lado: “Acho que o pior já passou”. Imaginei isso porque o avião não enfrentou turbulências, nem despencou. Mal sabíamos que ele estava planando rumo à colisão com o Cerro Gordo, minutos depois, a quinze quilômetros da pista do Aeroporto Internacional José María Córdova, em Rionegro. Aí aconteceu a pancada.

“O que é isso?”, perguntei a mim mesmo quando acordei no meio do nada. Essa é a descrição exata. Não havia mais aeronave, não havia mais os companheiros de viagem. Na verdade, eu conseguia visualizar apenas dois deles, um de cada lado, e infelizmente estavam mortos. Parecia que eu havia sido colocado em um cenário. Antes de desmaiar outra vez, lembro ter observado à minha direita, no alto, um poste de luz. Isso me deu confiança de que poderia ser resgatado. Também observei a presença, uns vinte metros abaixo, de dois tripulantes vivos, apoiados em uma árvore. Eles foram os únicos sobreviventes da empresa boliviana. Entretanto, até então eu não tinha nenhuma ideia da gravidade do acidente.

Os jogadores Jackson Follmann e Alan Ruschel, além dos dois tripulantes da LaMia, já haviam sido resgatados. Acordei, definitivamente, com gritos que vinham para o lado onde eu estava. Palavras em espanhol que procuravam por outras pessoas com vida no local. Eram guardas nacionais da Colômbia, que chegaram ao cerro antes do resgate. A esperança tomou conta de mim. Sabia que, apesar da tragédia, Deus havia me abraçado naquele momento.

Até a chegada do socorro, fiz testes com meu corpo para entender o que eu sofrera. Movi os pés. Eu estava preso à poltrona pelo cinto de segurança, cercado por dois colegas mortos debruçados no topo do morro onde o avião colidira. Mexi os braços e tentei livrar as pernas, porém não tive sucesso, porque estava com metade do corpo preso em galhos e coberto de terra e outros materiais. Como fiquei ali, sem quebrar as pernas, é algo que me pergunto até hoje.

Imagino que já haviam se passado quatro horas do impacto quando o resgate chegou até mim. Pedi que me retirassem pelas costas, porque eles teriam de me sustentar em uma altura maior se eu saísse de frente, por causa do declive do terreno. Como estava lúcido, não pensei que tivesse sofrido tantos ferimentos no rosto — no queixo, no nariz, no supercilio, ao lado do olho. Muito menos que quebrara sete costelas. Os socorristas colocaram o colete cervical em mim. Pedi água, reclamei do frio. Eles pediram para que eu ficasse calmo. Eu queria avisar a minha familia. Mesmo sem saber a extensão da tragédia, queria poupar todos de notícias que pudessem causar sofrimento.

O resgate não foi fácil. Eram seis pessoas desgastadas pelo trabalho de uma noite de buscas carregando uma pessoa de 106 quilos em uma maca morro afora, pedindo para que eu permanecesse acordado. Como eu sentia dores, apenas cruzei os braços e esperei a chegada da ambulância. O resgate, porém, estava longe de terminar. O acesso ao local só era possível com veículos de tração nas quatro rodas. As ambulâncias não conseguiam se aproximar. Todos os sobreviventes foram colocados em caminhonetes no primeiro trecho da descida, sem saber até onde seriam levados. Eu pensei o quanto seria desconfortável aquela viagem caso ela terminasse apenas em Medellín. Depois de chegar a uma tenda improvisada, montada pelos colombianos, fui sedado. Começava a minha luta pela sobrevivência e, a partir daquele momento, passei a receber demonstrações de solidariedade que vinham de quase todos os cantos do mundo.

A SOLIDARIEDADE DEIXA MARCAS

É INEXPLICÁVEL O QUANTO a tragédia uniu as pessoas. Não tínhamos nenhuma ligação cultural, esportiva ou étnica com a Colômbia. Nada. De repente, conseguiram reunir, em menos de dois dias após o acidente, 90 mil colombianos dentro e ao redor do estádio Atanasio Girardot, em Medellín. Todos mobilizados, vestidos de branco, levando velas acesas, prestando uma homenagem espontânea às vítimas. Eu me perguntava: “Como assim?”. Agora, parece evidente. Aquilo era apenas mais uma fração da solidariedade que começara já no trabalho de resgate no Cerro Gordo. Então aprendi a dimensão desse sentimento de ajuda. Percebi como a solidariedade contribuiu para a minha recuperação e para a dos demais sobreviventes.

Quando se iniciaram as buscas no local da queda do avião, as equipes de resgate pediram ajuda à população. Quem falasse português, fosse psicólogo ou tivesse uma caminhonete com tração nas quatro rodas podia se apresentar no aeroporto de Rionegro, onde deveríamos ter pousado. Precisaram fechar as portas, de tanta gente que apareceu. Na ocasião, tiveram que impedir o acesso à estrada por causa do grande número de voluntários com carros fracionados, para evitar que o trânsito ficasse congestionado e atrasasse a volta das ambulâncias. Naquele momento, ninguém sabia quantos estavam vivos, portanto, nem quantos veículos voltariam para o hospital. Infelizmente, só retornaram seis ambulâncias.

Colegas da TV Globo me contaram que, quando eles chegaram para fazer a reportagem no estádio de Medellín, estava tudo fechado. Havia 45 mil pessoas do lado de fora, impedindo o acesso aos portões. Eles falaram que eram brasileiros, que precisavam entrar para fazer a cobertura da homenagem. Imediatamente, abriram um clarão para eles chegarem ao estádio. Apenas porque os jornalistas eram brasileiros. Parecia que o povo colombiano queria mostrar que eles não tinham só a guerrilha das Pares, não tinham só o narcotráfico de décadas passadas. Estavam desmontando estereótipos. Os colombianos desejavam mostrar que são solidários. Eles deram um tapa com luva de pelica em todo o mundo com aquela homenagem. Tanto quanto o próprio fair play do Atlético Nacional — que durante as décadas de 1980 e 1990 era abastecido com dinheiro do narcotraficante Pablo Escobar. Eles deram o título da Copa Sul-Americana para a Chapecoense. O presidente do clube colombiano estava Americana para a Chapecoense. O presidente do clube colombiano estava lá conosco, foi muito educado com os quatro brasileiros sobreviventes que puderam comparecer à cerimônia.

Por isso, sei como a solidariedade pode amenizar o sofrimento. As famílias que viajaram para a Colômbia foram muito bem atendidas. Jamais ficaram desassistidas. Minha esposa, Jussara, e meu primo, Roger, que me acompanharam durante o tratamento em Medellín, foram levados para a casa do médico. Cada um ficou em um dos quartos dos filhos do dr. Juan, o anestesista. Os filhos dele foram dormir na sala. O dr. Juan estava comigo quando ficou sabendo que os meus parentes chegariam à Colômbia. Então organizou a própria casa e enviou familiares dele para recepcionar minha esposa e meu primo no portão de desembarque internacional do aeroporto. Levou os dois para a casa dele para dar a primeira assistência e, depois, para a clínica. Que demonstração de solidariedade incrível! Imagine a situação: você sai de Chapecó, percorre 7 mil quilômetros, chega a uma clínica em um país desconhecido onde o idioma é outro e ainda precisa descobrir com quem falar. Como lidar com tanta informação nova, além de ter um parente internado depois de um acidente aéreo? O dr. Juan e sua família, entretanto, tomaram tudo isso mais brando para nós.

Nunca nos faltou apoio na Colômbia. Passado o acompanhamento inicial, os familiares eram assistidos pelo programa de voluntários, que os amparavam o tempo todo. Eles falavam com a imprensa ou impediam o acesso dos jornalistas quando necessário. Compravam tudo para as famílias, de xampu a camisas. Encarregavam-se do transporte do hotel para o hospital e vice-versa. Eles os levavam para almoçar e jantar. Queriam ter certeza de que todos estavam bem. Enfim, essa solidariedade acaba nos envolvendo e nos faz querer melhorar. Não é fácil ficar no meio do nada, com dois amigos mortos ao seu lado, sem saber o que vai acontecer. A sensação é desoladora. Mas, de repente, as pessoas ocuparam o seu tempo e dedicaram as suas orações por nós. Tornaram-se íntimas da gente. Naquela circunstância, era o que eu precisava para a minha recuperação.

Eu quase me entreguei nos primeiros dias de hospital. No entanto, descobri que poderia ajudar a mim mesmo se permitisse que toda aquela emoção me envolvesse. Lembro que, no início do tratamento, eu nem abria os olhos, pois sentia muita dor ao me mexer e tomava muitos remédios. Praticamente não interagia. Ficava no escuro, fechava os olhos ou mirava o teto. Oportunamente, o pensamento positivo que vinha de fora me contagiou. E me dei conta de que eu estava ali, vivo perante uma tragédia que vitimara 71 passageiros e tripulantes. Pensei: “Como é que eu vou desistir?”. Foi a hora da virada, na qual comecei a focar com empenho no tratamento.

Se os médicos queriam, a minha família queria, o mundo queria, por que não focar no tratamento, fazer tudo o que os médicos falavam, compreender que o tempo seria o senhor da razão? Enquanto estava no hospital, a Jussara falava que eu era muito querido lá fora. Eu não tinha noção disso, porque achava que era apenas um cara de Chapecó que havia sofrido um acidente. Eu não tinha noção da grandiosidade da repercussão de tudo aquilo. Quando tiramos uma foto e publicamos nas redes sociais, logo tivemos milhões de compartilhamentos. Foi a primeira foto de um dos sobreviventes do acidente a ser publicada. Eu estava todo inchado, cabeludo, praticamente escondido num cobertor horrível. Ou seja, uma imagem que você não divulgaria em condições normais. Porém, a Jussara aparecia muito feliz ao meu lado na foto. Aquela postagem foi determinante para mim.

Recordo que eu lia os milhares de mensagens que chegavam e chorava. Aquilo me deu uma força muito grande, porque me queriam bem. Aquelas pessoas me queriam vivo. E vinham do Brasil inteiro. E eu ainda estava com pneumonia, num período crítico do tratamento. As redes sociais nos aproximam muito dos outros. Você consegue se comunicar com o mundo. Eu tinha o hábito de conversar com o público no Twitter, no Facebook, bem como através da própria rádio onde trabalho. Há muita gente acompanhando o meu trabalho via internet. E aí começaram a chegar as mensagens, que traziam apenas desejos positivos. As curtidas na minha página no Facebook pularam de 40 mil para 170 mil. No Twitter, passei de 2 mil seguidores para 35 mil. Isso me fortaleceu.

Logo, eu já queria luz dentro do quarto da clínica. “Menos escuro”, eu dizia. Colocava música para tocar no meu celular, canções diferentes dia após dia, cada vez mais animadas. Nos primeiros dias, recebi muitos hinos de recuperação, canções gospel ou gravadas por padres, que me emocionavam e me faziam chorar. Depois, vieram outras músicas populares, como “Trem-bala”, da Ana Vilela, que questiona a velocidade acelerada de nossas vidas e fala justamente da situação que eu vivia, de acreditar e sentir que o caminho o fortaleceu. Muito emocionante. Eu ouvia o samba “Tá escrito”, do Grupo Revelação: “Ergue essa cabeça, mete o pé e vai na fé. Manda essa tristeza embora”. Passei para músicas mais alegres, que eram o espírito da ocasião, como “Reggae Town”, do Jota Quest. Tudo isso me alimentava de positividade.

A dedicação dos indivíduos a sua volta conduz à reflexão. Você está muito humilde ali na cama do hospital, depende de todos, de quem você nunca viu na frente. Desconhecidos vão lhe dar banho. Imagine só, com 43 anos de idade, precisar de alguém para tomar banho! Eu era um profissional que estava passando por um momento de atividade intensa, indo de Buenos Aires para Chapecó, depois para São Paulo e Medellín. E então, de urna hora para outra, me vi ali, completamente vulnerável. Com isso passei a entender que não somos nada sozinhos, que dependemos uns dos outros em urna cadeia organizada. Você não é nada sem as suas teias de relações. E ninguém está cobrando nada de você.

Na minha última noite na clínica, até as enfermeiras que estavam de folga foram me dar um abraço. Porque eu acho que o mais interessante disso tudo é que é uma vitória para eles também. Todos vinham com gosto: as auxiliares de enfermagem, as enfermeiras, os médicos, as psicólogas. Lembro que a chefe do corpo clínico, a Adriana, chorou na minha despedida. Ela me disse uma frase marcante: “Aqui na Colômbia existe um ditado: para trás, nem para tomar impulso. Olhe para a frente”. É um conselho tocante. E foi isso que eu imaginei dali em diante. Embora a recuperação fosse demorada, consegui voltar ao trabalho em quarenta dias, como prometi.

Às vezes, não acreditamos nas nossas relações. Esquecemos que vivemos em um mundo sincronizado. Você não vive em uma bolha. Todos dependemos das outras pessoas, e as outras pessoas dependem de nós. É imprescindível ter essa compreensão. Não dá para ser arrogante e pensar: “Não preciso de você”. No mundo todos estão relacionados, ninguém é uma ilha. Dependemos de outros afluentes, como o trabalho de uma pessoa e a dedicação de outra. Sejamos solidários.

Frequentemente, os mais humildes são desrespeitados. Por exemplo, o cara que está catando lixo está ajudando você, contribuindo para a limpeza da sua rua. Alguns não dão bola, naturalizam os garis como se eles não existissem. E eles fazem parte do nosso dia a dia, também fazem parte de uma teia de relações. Merecem reconhecimento. Sem contar os mais próximos, como os nossos colegas de empresa, a nossa família. Todos estão relacionados.

Você está retribuindo? Em muitas ocasiões, não dá mais tempo de correr atrás. Não há uma segunda chance.

Durante as semanas de recuperação, eu recebi inúmeros presentes. Tapetes, flores, vasos, quadros, imagens de São Jorge, rosários e terços nos quais rezaram por nós. Muitos foram até a rádio me entregar essas lembranças. Na frente da minha casa, do outro lado da rua, colocaram uma faixa me dando as boas-vindas a Chapecó. Fora as visitas e os abraços. Tudo isso aconteceu espontaneamente, por intermédio de pessoas que não me conheciam fora dos programas de rádio ou das reportagens na imprensa. Isso mostra como o caso teve uma repercussão notável e, o fundamental, como muitas vezes não acreditamos ser tão essenciais para os outros. Eu não sabia, por exemplo, que a minha vida era tão importante para tanta gente. Não fazia a mínima ideia. Por isso temos que cuidar muito de todos. Porque eles têm um interesse enorme em nós — e não é financeiro. As pessoas simplesmente gostam de você. E eu de fato não esperava aquele carinho do público.

Hoje, os resultados dessa sucessão de atos de solidariedade ficaram extremamente claros. No meio de tanta tragédia, havia um pouco de vida. E essa vida foi comemorada por todos. Dos 77 que embarcaram no voo, seis sobreviveram. Portanto, é preciso comemorar. Sim, é necessário chorar pelos que se foram, mas também comemorar porque nem todos partiram. E ainda há vida em cada momento. Repito: fiquei muito impressionado, porque não esperava que a nossa vida fosse tão importante para as outras pessoas. Isso foi emocionante demais. Desde os primeiros dias na Colômbia, quando eu recebi as mensagens, todas eram extremamente carinhosas. Tudo se resumia a carinho e mais carinho. Todos me diziam: “Vamos lá, vamos sair dessa”. Se o público queria, se a família queria, se os médicos queriam, não tinha por que eu não querer. Eu tinha que reagir de uma forma otimista e consegui. Respondi favoravelmente ao tratamento, mas só porque tive a ajuda e a solidariedade de todos.

A solidariedade que você recebeu fica marcada no seu corpo. Penso que a minha vida dependeu desse sentimento. Devo todas as graças que recebi a Deus principalmente — que me abraçou naquele momento —, à equipe médica, a Chapecó, ao nosso povo e ao da Colômbia. Foi notável, porque não havia motivo para fazerem tudo aquilo. Apesar da tragédia, os colombianos não tinham esse dever, mas, mesmo assim, nos ajudaram. E como nós podemos doar mais? Eventualmente, temos ações de solidariedade na nossa rádio em Chapecó, como troca de adesivos da Chapecoense por brinquedos para entregar a crianças pobres. Tudo o que podemos fazer para a comunidade, nós fazemos. E ainda é pouco, porque estamos falando de um veículo de comunicação.

A gratidão é uma das maiores qualidades que se pode ter. Vemos pessoas que são atendidas em tantos lugares e não falam um obrigado, nem dão um bom-dia ou um boa-tarde. Acho que espalhar gratidão, agradecer por tudo o que nos acontece no dia a dia, é espetacular. Como eu me sinto bem quando sou grato a alguém. Como deve ter sido maravilhoso para os médicos e para as enfermeiras todos saírem vivos do hospital. Não só saírem bem, mas sorrindo. Corno é bom sair contente de um estabelecimento comercial porque fomos bem atendidos pelos funcionários que trabalham lá. O sentimento de gratidão é maravilhoso. Eu quero espalhar gratidão, seja aqui, seja na Colômbia, seja em qualquer lugar. As pessoas precisam saber que eu sou muito grato a todos.

Pretendo ser mais solidário ainda, para agradecer pelo menos 1% do que as pessoas dedicaram a nós. Todos poderiam pôr a mão na consciência, por um momento que seja, e ser solidários com as pessoas que estão próximas. Mesmo que você não precise, graças a Deus. Como seria bom se você nunca precisasse de nada, absolutamente nada, que viesse da compaixão dos outros, da solidariedade dos outros. Porém, se você puder fazer isso, tenho certeza de que será gratificante. Você não precisa doar grandes quantias por mês para uma entidade beneficente. Em vez disso, você pode lhes oferecer o seu tempo, por exemplo. Ou pode doar um quilo de arroz quando ocorrer um evento com a renda revertida para alguma causa. Esse quilo de arroz vai se transformar depois em lucro para a entidade, no risoto, na macarronada ou no churrasco da comunidade.

Não se trata unicamente de dinheiro. Você pode doar também a sua intelectualidade, a sua habilidade profissional. Num fim de semana, quem sabe? Tantas entidades realizam pedágios para arrecadar recursos financeiros. De repente, você pode cooperar com uma ideia diferente, para que essas entidades não dependam apenas de doações de pequenas quantias. Estamos falando de um país que possui muitas cabeças excelentes. Como estamos colaborando na nossa rua, no nosso bairro, na nossa cidade? Somos solidários ou apenas reclamamos?

Chapecó é uma cidade que possuí muitas comunidades de assistência dependentes de ações que precisam ser incentivadas. Isso vale para o mundo todo. Eu acho que uma missão que temos daqui por diante é fazer as pessoas colaborarem, abrirem seus corações para a solidariedade. Nós fomos muito impactados pela solidariedade dos outros. Então, temos que aprender a ser solidários também.

A MOTIVAÇÃO É ESTAR VIVO

JÁ CONTEI COMO A solidariedade me deu Forças para seguir o tratamento médico. Até que eu, por fim, permitisse que a positividade das mensagens que chegavam me envolvesse, passei por momentos muito difíceis. Eu não tinha jogado a toalha, mas estava muito para baixo. Imagine, para quem nunca tinha nem mesmo ficado internado, de repente estar cheio de aparelhos em uma uri. Além do fato de trabalhar em rádio e estar rouco, não poder falar —na verdade, mal me saía a voz. Naquela iluminação artificial da UTI, eu fechava os olhos e via árvores, uma imagem aproximada do local do acidente, onde fui encontrado. Mas não eram sonhos nem pesadelos. Simplesmente parecia que aquele cenário estava gravado em mim.

Dois dias depois, retiraram os tubos que me ajudavam a respirar, e eu comecei a acreditar que a recuperação era possível. Quando descobriram a bactéria da pneumonia, os médicos iniciaram um tratamento de sete dias. Ganhei confiança. Também fiz uma cirurgia de vinte minutos no pé que foi ferido no acidente. Faltava recuperar plenamente os movimentos das pernas, que doíam muito, e restabelecer os pulmões. Então, com o apoio do mundo inteiro, que chegava via mensagens e presentes, eu me perguntei: “O que preciso fazer?”. Fisioterapia à noite? Vamos fazer. As madrugadas não passavam. Todos dormiam, e eu permanecia acordado. Não consegui dormir nenhuma vez no hospital. Eu ficava quase em apneia. Não havia me adaptado ao fuso horário da Colômbia. As noites eram intermináveis naquelas condições. E, como eu ficava sempre deitado, tempo era o que eu mais tinha.

Todas as madrugadas, eu fazia exercícios. Repetia o que a fisioterapeuta me ensinava durante o dia. Surpreendia até a minha esposa, que acordava no meio da noite e me via com a perna levantada. Também fazia a fisioterapia pulmonar no exercitador respiratório. Esse aparelho, chamado de inspirômetro de incentivo, tem três tubos transparentes, cada um com uma bolinha. O paciente inspira por um bocal, fazendo essas bolas subirem, sequencialmente, dez vezes. Sugando o ar pela boca, exercita-se a musculatura respiratória e aumenta-se o volume dos pulmões. Como eu estava debilitado, não conseguia fazer subir nem a primeira bolinha. Dias depois, eu batia as três lá em cima, e a terceira ficava ainda mais tempo no ar. Isso tudo foi acontecendo aos poucos, fui melhorando, e eu fiquei extremamente confiante. Sabia que necessitava daquilo para poder voltar ao trabalho. Daí, a recuperação avançou.

Sempre fui movido por motivação. Acho que todo mundo é assim. Na minha profissão de jornalista, quem me dá motivação são os ouvintes da rádio. Em casa, sou muito motivado. Tento incentivar a minha esposa e o meu filho. A motivação gera alegria, principalmente se estimularmos as pessoas nos problemas que são palpáveis, para não haver frustração depois. Fiquei muito motivado depois dessa experiência, por um motivo simples: a vida. Que motivação maior eu posso ter do que estar circulando, estar aqui entre nós, vivo? O milagre aconteceu. E, de tanto apoio recebido, decidi: em qualquer oportunidade ao meu alcance, vou trabalhar muito para ajudar quem tem que ser ajudado e para agradecer às pessoas. Foram elas que me deram toda essa motivação.

A motivação é fundamental para sair de situações como aquela na qual eu estava. Na cama de um hospital, você precisa ser encorajado continuamente. E, mais do que tudo, responder à motivação, não ficar passivo. Se todo mundo deseja que fiquemos bem, por que não vamos querer o mesmo? A motivação vinha dos médicos, das enfermeiras, das auxiliares de enfermagem, dos familiares. Vinha de gente desconhecida do mundo todo.


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