Feminismo, ativismo, arte, literatura, sistema judicial, sistema penitenciário, antipsiquiatria, resistência, Nadya atravessa todos esses temas de corpo inteiro, num relato poderoso e comovente do qual é impossível passar ileso. Nadya Tolokonnikova é uma das integrantes do coletivo artístico ativista russo e banda punk Pussy Riot. Este guia para o ativismo punk emana da experiência de Nadya suas leituras, sua ética e sua visão de mundo como ativista, desenvolvidas ao longo dos quase dois anos de encarceramento num campo de trabalho forçado na Rússia. Em 21 de fevereiro de 2012, foi presa por cantar uma música anti-Putin em uma igreja de Moscou. Emergiu como símbolo internacional de resistência radical, com gritos de “Free Pussy Riot” (Liberte Pussy Riot) tendo se espalhado pelo mundo todo…
Páginas: 288 páginas; ISBN-10: 8571260249; ISBN-13: 978-8571260245; Editora: Ubu Editora; 1ª Edição (22 abril 2019); ASIN: B07QP37DY8
Biografia do autor: Nadya Tolokonnikova é uma artista visual e ativista russa, estudou filosofia na Universidade Estatal de Moscou. Em 2007, se uniu temporariamente ao coletivo Voina, no qual realizou algumas performances artísticas memoráveis. Em 2011, fundou a banda punk feminista Pussy Riot, cuja apresentação mais polêmica se deu em 2012, com uma música crítica ao presidente da Rússia Vladimir Putin, performada na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou. Isso desencadeou no encarceramento de Nadya e Maria Alyokhina, outra participante da banda, por quase 2 anos. Durante seu tempo na prisão, Tolokonnikova realizou uma greve de fome para protestar contra as condições de vida às quais os prisioneiros eram submetidos. Em 2012, recebeu o LennonOno Grant for Peace. Em 2013, Putin concedeu anistia política a Nadya. Após sua liberação, fundou a Zona Prava, uma ONG voltada ao auxílio legal de prisioneiros. E, em 2014, ela e Alyokhina criaram um website chamado MediaZona, que gera conteúdo relacionado às leis, ao sistema penal e ao poder judiciário da Rússia, e é agora produzido em parceria com o The Guardian. No mesmo ano, Tolokonnikova recebeu o Hannah Arendt Prize for Political Thought.
Leia trecho do livro
TRADUÇÃO
JAMILLE PINHEIRO DIAS
BRENO LONGHI
ILUSTRAÇÕES
ROMAN DUROV
INTRODUÇÃO
Proposições preliminares
Somos superpotências
Palavras, ações, heróis
REGRA N° 1— SEJA PIRATA
Palavras
A República Popular Pirata
As águas internacionais da pirataria
Ações
Sem fronteiras
Heróis
Diógenes
REGRA N° 2 – FAÇA VOCÊ MESMO
Palavras
A cultura do faça-você-mesmo
Política lixo
A senhora simplicidade: arte de baixo custo
Ações
Morte ao sexista
Conselhos básicos para começar uma banda punk feminista política
Heróis
D. A. Prigov
REGRA N° 3 — RECUPERE A ALEGRIA
Palavras
Viveremos de amor e riso
Dadá
Ações
Se a juventude está unida
Heróis
1968
REGRA N° 4 — FAÇA O GOVERNO CAGAR NAS CALÇAS
Palavras
Questione o status quo
Ações
Nada de conversa fiada
Arte em ação
Os machistas estão fodidos
Heróis
Martin Luther King
REGRA N° 5 — SEJA UM DELINQUENTE ARTÍSTICO
Palavras
O ser humano como animal político e artístico Quebre a (quarta) parede
Uma oração
Ações
Pussy Riot na igreja
Heróis
Yes Men
REGRA N° 6 — IDENTIFIQUE OS ABUSOS DE PODER
Palavras
Mentir, trapacear, roubar (todo mundo faz isso): ou quem é o Sr. Putin e o que isso tem a ver com o Sr. Trump?
Fascistas de extrema-direita
Ações
Arranque a própria língua a dentadas Recupere as ruas
Heróis
Os irmãos Berrigan
REGRA N° 7 — NÃO DESISTA FÁCIL. RESISTA. ORGANIZE-SE.
Palavras
Encare as cicatrizes como medalhas de honra ao mérito
Ações
A liberdade é o crime que contém todos os crimes
Heróis
Emmeline Pankhurst
REGRA N° 8 — ESCAPE DA PRISÃO
Palavras
O complexo industrial-prisional
Ações
Rebelião
Heróis
Michel Foucault
Teologia da libertação: Uma conversa com Chris Hedges
REGRA N° 9 — CRIE ALTERNATIVAS
Palavras
Seja esquisito Todo o poder para a imaginação
Ações
Alternativa: outra policia é possível
Alternativa: uma imprensa diferente é possível
Heróis
Alexandra Kollontai
REGRA N° 10 — SEJAMOS PESSOAS
Palavras
Bruxa e puta com orgulho
O monstro da perfeição obrigatória
Ações
A revolução é minha namorada
Heróis
bell hooks
CONSIDERAÇÕES FINAIS — A ESPERANÇA VEM DOS DESESPERADOS
POSFÁCIO POR OUVIA WILDE
INDICAÇÕES DE LEITURA PUSSY RIOT
SOBRE A AUTORA
INTRODUÇÃO
Proposições preliminares
Quando eu tinha catorze anos, escrevi um artigo sobre poluição e mudança climática e o levei à redação de um jornal local. Lá me disseram que eu era uma menina bem legal e até que não escrevia mal, mas que seria melhor me ater a escrever sobre o zoológico. O artigo sobre os níveis catastróficos de poluição da minha cidade natal não foi publicado. Fazer o quê?
Vivi muitas coisas desde então, entre elas ser presa e passar dois anos na cadeia. No fundo, porém, nada mudou pra valer. Continuo fazendo perguntas que incomodam. Aqui, ali, em todo canto.
Essas perguntas, ainda que não tenham respostas em certos casos, sempre me motivaram a agir. Creio que dediquei a minha vida ao ativismo. Minhas amigas e eu começamos a reivindicar o espaço público e a participar de manifestações políticas há bastante tempo, em 2007, quando éramos apenas umas molecas de dezessete ou dezoito anos. Fundamos o Pussy Riot em outubro de 2011, mas antes passamos cinco anos fazendo pesquisas formais e profundas sobre ativismo, aprendendo a fugir da polícia, a fazer arte sem grana nenhuma, a pular cercas e a fabricar coquetel molotov.
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Nasci alguns dias antes da queda do Muro de Berlim. Naquele momento, acreditava-se que, após a suposta eliminação do paradigma da Guerra Fria, enfim passaríamos a viver em paz… Não foi bem assim. O que vimos, na verdade, foi um aumento astronômico da desigualdade, as oligarquias ganhando cada vez mais poder ao redor do mundo, a educação e a saúde públicas sendo ameaçadas, além de uma crise ambiental provavelmente irreversível.
Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social — a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença — a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais — veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou de uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos.
Se a agressão nacionalista, o fechamento de fronteiras e os excepcionalismos [a crença na sua superioridade em relação aos demais] de todo tipo realmente funcionassem para a sociedade, a Coreia do Norte seria o país mais próspero do planeta. Mas, ainda que nada disso tenha dado certo, as pessoas continuam apostando as fichas nessa ideia. Isso explica o êxito de Trump, do Brexit, de Le Pen, Orbán e assim por diante. Na Rússia, o presidente Putin também faz o mesmo jogo: explora o complexo de raiva, sofrimento e empobrecimento do povo russo, causado pela crise econômica, a privatização maquiavélica e a desregulamentação ocorridas nos anos 1990.
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Posso não ser presidenta nem deputada. Não tenho muito dinheiro nem poder. Mas uso minha voz para dizer humildemente que, fazendo uma retrospectiva do século xx, o nacionalismo e o excepcionalismo me dão arrepios.
Agora, mais do que nunca, precisamos reivindicar o poder que está nas mãos dos políticos, dos oligarcas e dos interesses ocultos que nos colocaram nessa situação. Chega de nos comportarmos como se fôssemos a última espécie da Terra.
O futuro nunca nos prometeu ser um mar de rosas, ou progressista, ou seja lá o que for. As coisas podem piorar. Elas têm piorado no meu país desde 2012, ano em que o Pussy Riot foi colocado atrás das grades e Putin se tornou presidente pela terceira vez.
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Sem dúvida, nós do Pussy Riot tivemos muita sorte de não termos sido esquecidas nem abandonadas quando fomos silenciadas pelos muros da prisão.
Todos os interrogadores que falaram conosco após nossa prisão recomendaram que a) desistíssemos, b) nos calássemos e c) declarássemos amor incondicional por Vladimir Putin. “Ninguém liga para o que vai acontecer com vocês; vão morrer aqui na prisão, e ninguém vai ficar sabendo. Não sejam burras — digam que adoram Putin.” Mas insistimos que não. E muitos nos apoiaram em nossa teimosia.
Muitas vezes me sinto culpada por todo o apoio que as pessoas deram ao Pussy Riot. Foi incrível. Existem muitas pessoas presas por motivos politicos em nosso país e, infelizmente, a situação está piorando. Os demais casos não atraem a atenção midiática que certamente merecem. Infelizmente, as condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos tornam-se constantes, as pessoas param de reagir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam.
As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo. Mas, em outras ocasiões, é possível transpor montanhas de uma hora para a outra. Nunca se sabe. Prefiro continuar tentando conquistar mudanças graduais com humildade, mantendo a perseverança.
Somos superpotências
Fala-se muito da Rússia nos Estados Unidos hoje em dia. Mas muita gente não sabe como a Rússia realmente é. Qual a diferença entre um país tão bonito, cheio de pessoas maravilhosas, criativas e dedicadas e o seu governo cleptocrático? Muita gente se pergunta como é viver sob o domínio de um homem autoritário e misógino, detentor de um poder quase absoluto. Posso dar algum vislumbre de como é esse mundo.
A relação entre a Rússia e os Estados Unidos é um verdadeiro desastre. E eu, como se sofresse de uma estranha compulsão quase masoquista, aprecio o percurso que tenho seguido à sombra desses dois impérios. Minha existência se dá em algum ponto entre essas gigantescas máquinas imperialistas.
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Não me importo com fronteiras (embora as fronteiras se importem comigo). Sei que existe poder na união interseccional, inclusiva e internacional de quem se importa mais com as pessoas do que com dinheiro ou status.
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Somos mais do que átomos, separados uns dos outros, assustados pela tv e pela desconfiança mútua, confinados em casa e no iPhone, descarregando a raiva e o ressentimento contra nós mesmos e contra os outros. Não queremos viver em um mundo onde todos estão à venda e não resta lugar para o bem comum. Desprezamos essa abordagem cínica e estamos prontas para lutar. Mais do que isso, estamos fazendo mais do que resistir. Somos proativas. Vivemos de acordo com nossos valores no momento presente.
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Quando tento encontrar palavras para falar da política mundial numa abordagem mais holística, quando proponho um debate sobre o futuro do planeta, e não sobre as ambições e a riqueza das nações, inevitavelmente começo a parecer ingênua e utópica para muita gente. Por algum tempo acreditei que isso se devia às minhas parcas habilidades de comunicação pessoal, e talvez isso seja de fato parte do problema. Mas vejo esse fracasso das palavras como um sintoma de algo maior. Nunca chegamos a desenvolver uma linguagem com a qual pudéssemos discutir o bem-estar da Terra como sistema. Categorizamos as pessoas de acordo com a procedência, sem aprendermos a falar delas como parte da espécie humana, mais ampla.
Sobrevivemos à crise dos mísseis cubanos e a muitos outros desafios. E agora, sem resistir, retrocedemos ao antigo paradigma da Guerra Fria. O Boletim dos Cientistas Atômicos ajustou o Relógio do Juízo Final para dois minutos e meio antes da meia-noite. As ameaças globais são piores agora do que quando se produziu a Iniciativa de Defesa Estratégica dos Estados Unidos nos anos 1980. E nos comprazemos em poder novamente culpar nossos contrários, um inimigo externo.
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Quando duas pessoas passam um longo tempo se enfrentando, elas acabam ficando cada vez mais parecidas uma com a outra. Você espelha seu / sua oponente, e é sempre possível que, mais cedo ou mais tarde, você se torne indistinguível dele / dela. É um jogo de imitação sem fim. Quando seu / sua oponente é uma pessoa de grandes qualidades, talvez o espelhamento seja bom para você. Mas, quando se trata de uma relação entre impérios, o resultado geralmente é desastroso.
Quando Putin precisa implementar uma nova lei absurda entre os russos, ele se respalda nas práticas americanas. Quando a polícia russa é autorizada a se comportar violentamente em relação aos manifestantes, ela diz: “Por que você está reclamando? Nos Estados Unidos você já teria sido morto por um policial se protestasse desse jeito”. Quando defendo a reforma penitenciária na Rússia e digo que nenhum ser humano deveria ser torturado e privado de medicação, as autoridades locais me dizem: “Veja Guantánamo, lá é ainda pior!”. Quando Putin investe mais recursos no complexo militar-industrial em vez de cuidar de uma infraestrutura que está caindo aos pedaços, ele diz: “Veja o que fazem na Otan! Veja os drones! Veja os bombardeios no Iraque!”.
É verdade. Pior que é verdade. Ainda assim, acredito que a pergunta a fazer é a seguinte: quem tomou essa decisão de copiar o pior e quando?
Quando meu governo contrata brutamontes para me bater e queimar meus olhos com uma substância verde cáustica, o que dizem é: a) você é uma vadia antirrussa, b) seu objetivo é destruir a Rússia, c) você está sendo paga pela Hillary, d) volte para os Estados Unidos. E, quando alguém nos Estados Unidos questiona o poder e as bases das narrativas oficiais, é rotulado como antiamericano. Como diz Noam Chomsky (e ele sabe do que está falando):
Assim como na União Soviética, o “antissovietismo” foi considerado o mais grave de todos os crimes […]. Até onde sei, os Estados Unidos são a única sociedade livre na qual esse conceito vigora. O “americanismo”, o “antiamericanismo” e a ausência de “antiamericanismo” são noções que combinam bem com a “harmonia” e a ideia de se livrar desses “intrusos”.
O panorama é sombrio. Faz com que pensemos que a política é chata e inútil e que não vale a pena nos envolvermos com ela, porque não temos como alterar esse quadro. Mas digo que é possível. Basta tratarmos do assunto tendo em mente pessoas de carne e osso. É simples: a assistência médica, a educação, o livre acesso à informação, sem censura. Temos de parar de gastar nossos recursos com drones, mísseis balísticos intercontinentais e serviços de inteligência excessivamente voyeurísticos. Temos que remunerar as pessoas pelo trabalho ao qual se dedicam; não somos escravos. Estamos falando de direitos, não de privilégios. E tudo isso é possível — mudar o estado das coisas é muito mais factível do que nos fizeram acreditar.
Putin continua no poder, mas não porque as pessoas estejam felizes com a sua forma de governar. Constatamos que estamos ficando cada vez mais pobres enquanto Putin e sua equipe estão ficando cada vez mais ricos. Mas (há sempre um “mas”) o que podemos fazer, você e eu, se é impossível mudar as coisas? É o que nos dizem.
Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos.
O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm, mas que, por algum motivo, não usam.
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O dissidente, artista e escritor Václav Havei passou cinco anos em um campo de prisioneiros soviéticos como punição por suas opiniões políticas e, posteriormente, após a queda da urss, tomou-se presidente da Tchecoslováquia. Havei escreveu uma obra brilhante e inspiradora chamada lhe Power of the Powerless [O poder dos que não têm poder] (1978), ensaio que entrou na minha vida como que por milagre.
Após ser condenada a dois anos de prisão, fui levada a um dos campos de trabalho forçado mais severos da Rússia, na Mordóvia. Depois de apenas quatro semanas de trabalho extremamente traumáticas no campo (quando eu ainda tinha pela frente mais de um ano e meio de cárcere), fiquei desanimada e apática. Tinham destroçado meu espírito. Acabei me tornando obediente em razão de tantos abusos, do trauma e da pressão psicológica. “O que posso fazer contra essa máquina totalitária, isolada de todos os meus amigos e companheiros, terrivelmente sozinha, sem chance de sair daqui tão cedo?”, pensei. Estava nas mãos de carcereiros, que não são responsabilizados pelos ferimentos e pelas mortes de prisioneiros. Literalmente pertencíamos a eles. Havíamos nos tomado escravos sem palavras e sem vida, seres descartáveis, sombras sonâmbulas do que um dia foram seres humanos.
Mas sou uma mulher de sorte.
Sou uma mulher de sorte porque descobri lhe Power of the Powerless. Li o livro escondida dos funcionários da prisão e chorei de alegria. Aquelas lágrimas resgataram minha confiança e minha coragem. Só nos despedaçamos quando nos permitimos ser despedaçados.
Havei diz:
Parte da essência do sistema pós-totalitário é que ele envolve todos em sua esfera de poder, não para que se percebam como seres humanos, mas para que abdiquem de sua identidade humana em favor da identidade do sistema, ou seja, para que possam se tornar agentes do automatismo geral do sistema e servos de seus objetivos autodeterminados […].
Mais do que isso: também para que eles aprendam a se sentir confortáveis com esse envolvimento, identifiquem-se com ele como se fosse algo natural e inevitável e, em última análise, para que possam — sem nenhum incentivo externo — considerar qualquer não envolvimento como uma anormalidade, uma afronta, um ataque a si mesmos, uma forma de abandonar a sociedade. Ao atrair todos para dentro de sua estrutura de poder, o sistema pós-totalitário os converte em um instrumento de uma totalidade recíproca, a autototalídade da sociedade.
As palavras têm poder: o ensaio de Havei teve um impacto profundo na Europa Oriental. Para Zbigniew Bujak, ativista do sindicato polonês Solidariedade:
Tomamos conhecimento desse ensaio na fábrica Ursus em 1979, em um momento em que sentiamos que tínhamos chegado ao fim da linha. Inspirados pelo kor [Comitê de Defesa dos Trabalhadores Poloneses], discutíamos entre nós, conversando com as pessoas, participando de reuniões públicas, tentando falar da realidade da fábrica, do país e da política. Chegou a um ponto em que as pessoas achavam que tínhamos enlouquecido. Por que fazer tudo aquilo? Por que assumir tantos riscos? Sem resultados imediatos e tangíveis à vista, começamos a duvidar do propósito do que estávamos fazendo. Será que não deveríamos pensar em outros métodos, outras maneiras?
Foí então que apareceu o ensaio de Havei. A leitura nos deu as bases teóricas para levar nossas ações adiante. Levantou nosso ânimo. Não desistimos e, um ano depois — em agosto de 1980 —, ficou claro que o aparato do partido e a administração da fábrica tinham medo de nós. Reconheceram a nossa importância.
Quando nos faltam forças para agir, é preciso encontrar palavras que nos inspirem. Por isso, lembre-se de um ponto fundamental: nada de deixar sua confiança arrefecer. O poder está nas suas mãos. Juntos, como comunidade ou como movimento, podemos fazer milagres. E faremos.
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