Na manhã de um dia de primavera de 1977, Lydia Lee não aparece para tomar café. Mais tarde, seu corpo é encontrado em um lago de uma cidade em que ela e sua família sino-americana nunca se adaptaram muito bem. Quem ou o que fez com que Lydia — uma estudante promissora de 16 anos, adorada pelos pais e que com frequência podia ser ouvida conversando alegremente ao telefone — fugisse de casa e se aventurasse em um bote tarde da noite, mesmo tendo pavor de água e sem saber nadar? À medida que a polícia tenta desvendar o caso do desaparecimento, os familiares de Lydia descobrem que mal a conheciam. E a resposta surpreendente também está muito abaixo da superfície. Conforme analisa e expõe os segredos da família Lee — os sonhos que deram lugar às decepções, as inseguranças omitidas, as traições e os arrependimentos —, Celeste Ng desenvolve um romance sobre as diversas formas com que pais…
Editora: Intrínseca; 1ª edição (2 maio 2018); Páginas: 304 páginas; ISBN-10: 8551003186; ISBN-13: 978-8551003183; ASIN: B06WGRJV4Y
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Biografia do autor: Celeste Ng cresceu em Pittsburgh, Pensilvânia, e Shaker Heights, Ohio, nos Estados Unidos, em uma família de cientistas. Formou-se em Harvard e fez o mestrado em belas-artes pela Universidade de Michigan, onde ganhou o Hopwood Award. Seus ensaios e trabalhos de ficção já foram publicados na One Story, TriQuarterly, Bellevue Literary Review, Kenyon Review Online. Atualmente Ng mora em Cambridge, Massachusetts, com o marido e o filho.
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um
Lydia está morta. Mas eles ainda não sabem disso. Dia 3 de maio de 1977, seis e meia da manhã, ninguém sabe nada a não ser por este fato inofensivo: Lydia está atrasada para o café da manhã. Como sempre, sua mãe colocou, ao lado de sua tigela de cereal, um lápis bem apontado e o dever de casa de física de Lydia, seis problemas assinalados com pequenos tiques. A caminho do trabalho, o pai de Lydia sintoniza a rádio WXKP, a Melhor Fonte de Notícias do Noroeste de Ohio, cuja transmissão é dificultada pelo chiado da estática. Na escada, o irmão de Lydia boceja, ainda envolto nas reminiscências de um sonho. E, em sua cadeira no canto da cozinha, a irmã está curvada, os olhos bem abertos sobre o cereal, sugando-o floco por floco, esperando Lydia aparecer. É ela quem diz, finalmente:
— Lydia está demorando muito hoje.
No andar de cima, Marilyn abre a porta do quarto da filha e vê a cama intacta: os cantos do lençol ainda dobrados sob o edredom, como num leito de hospital, o travesseiro ainda fofo e arredondado. Nada parece fora do lugar. Calças de veludo cor de mostarda emboladas no chão, uma única meia listrada com as cores do arco-íris. Uma fileira de fitas condecorativas de feiras de ciências na parede, um cartão-postal com a foto de Einstein. A bolsa de lona amarfanhada no chão do armário. Sua mochila verde encolhida na escrivaninha. O perfume Baby Soft na cômoda, um cheiro agradável de talco de bebê ainda pairando no ar. Mas nada de Lydia.
Marilyn fecha os olhos. Quem sabe, quando os abrir, Lydia estará ali, coberta até a cabeça pelo edredom, com mechas de cabelo escapando por baixo, como de costume. Uma montanha mal-humorada encolhida sob o edredom, que Marilyn de alguma forma não tinha visto. Eu estava no banheiro, mãe. Desci para beber água. Estava deitada aqui o tempo todo. É claro que, quando ela olha, nada muda. As cortinas fechadas brilham feito uma tela de televisão branca.
No andar de baixo, ela para na soleira da porta da cozinha e põe as mãos em cada lado do batente. Seu silêncio diz tudo.
— Vou olhar lá fora — diz, por fi m. — Talvez, por algum motivo…
Mantém o olhar fixo no chão ao avançar em direção à porta de entrada, como se as pegadas de Lydia pudessem estar gravadas na passadeira do corredor.
Nath diz a Hannah:
— Ela estava no quarto ontem à noite. Ouvi o rádio tocando. Às onze e meia. — Nath silencia, lembrando que não dera boa-noite a ela.
— Alguém pode ser sequestrado com dezesseis anos? — pergunta Hannah.
Nath cutuca sua tigela com uma colher. Os flocos de milho murcham e afundam no leite turvo.
A mãe volta para a cozinha, e, por uma gloriosa fração de segundo, Nath suspira de alívio: aí está ela, Lydia, sã e salva. Isso acontece às vezes — o rosto delas é tão parecido que, olhando de soslaio, dá para confundi-las: o mesmo queixo fino, as maçãs do rosto proeminentes e a covinha na bochecha esquerda, os mesmos ombros estreitos. Apenas a cor do cabelo era diferente, o de Lydia é de um preto profundo, enquanto o da mãe é cor de mel. Ele e Hannah haviam puxado ao pai — certa vez uma mulher parou os dois no mercado e perguntou:
— Chineses?
Eles responderam que sim, sem querer entrar em maiores detalhes, e a mulher balançou a cabeça, convencida.
— Eu sabia. Pelos olhos.
Então puxou o canto dos olhos com a ponta do dedo. Mas Lydia, desafiando a genética, de alguma forma tinha os olhos azuis da mãe, e eles sabiam que essa era mais uma razão para que fosse a sua preferida. E a do pai também.
Então Lydia leva a mão à testa e volta a ser sua mãe.
— O carro ainda está aqui — diz ela, mas Nath sabia que estaria.
Lydia não sabe dirigir; ainda não tem nem a carteira provisória. Na semana anterior, ela deixou todos surpresos ao ser reprovada no teste de direção, e o pai não a deixaria sequer se sentar ao volante sem a carteira de motorista. Nath revira o cereal, que se tornou um lodo no fundo da tigela. No hall de entrada soa o tique-taque do relógio, que se aproxima das sete e meia. Ninguém se mexe.
— Ainda vamos para a escola hoje? — pergunta Hannah.
Marilyn hesita. Então vai até sua bolsa e pega o chaveiro, num esforço para mostrar eficiência.
— Vocês dois já perderam o ônibus. Nath, vá com meu carro e deixe Hannah na escola no caminho. Não se preocupem. Vamos descobrir o que está acontecendo.
Ela não olha para nenhum dos dois. Eles não olham para ela.
Depois que os filhos saem, ela pega uma caneca no armário, tentando fazer as mãos pararem de tremer. Certa vez, quando Lydia ainda era bebê, Marilyn a deixou sozinha na sala, brincando sobre uma colcha, e foi até a cozinha para preparar uma xícara de chá. A menina tinha apenas onze meses. Marilyn tirou a chaleira do fogo e, quando se virou, encontrou Lydia de pé, à porta. Ela se assustou e colocou a mão na boca ardente do fogão. A palma de sua mão ficou com uma queimadura vermelha em espiral. Ela levou a mão aos lábios e olhou para Lydia com olhos lacrimejantes. De pé, ali, a filha estava estranhamente alerta, como se observasse a cozinha pela primeira vez. Marilyn não pensou em como perdera aqueles primeiros passos nem em como sua filha havia crescido. O que passou por sua cabeça não foi Como pude perder isso?, mas O que mais você vem escondendo?. Nath havia se levantado, cambaleado, caído e andado bem diante dela, mas Marilyn não conseguia se lembrar nem de ter visto Lydia começando a ficar de pé. No entanto, ela parecia bem firme sobre os pés descalços, os dedinhos da mão escapando por pouco das mangas amassadas do macacão. Marilyn ficara de costas para a filha muitas vezes, ao abrir a porta da geladeira ou tirar a roupa da máquina. Lydia podia ter começado a andar semanas antes, enquanto Marilyn estava de olho em uma panela, e ela jamais saberia.
Ela pegou Lydia no colo, afagou seu cabelo e disse que a filha era muito esperta, que o pai ficaria orgulhoso quando voltasse para casa. Mas estava com a sensação de ter encontrado uma porta trancada em um cômodo conhecido: Lydia, tão pequena, ainda no berço, tinha segredos. Marilyn podia alimentá-la, dar banho, passar suas perninhas pelas calças do pijama, mas partes da vida da filha já eram inacessíveis. Ela beijou a bochecha de Lydia e a abraçou, tentando se aquecer junto ao corpinho da criança.
Agora, bebendo chá, Marilyn recorda aquela surpresa.
O número de telefone da escola está preso no painel de cortiça ao lado da geladeira; Marilyn puxa o cartão e disca, enrolando o fio no dedo enquanto o telefone chama.
— Middlewood High — diz a secretária depois do quarto toque. — Dottie falando.
Ela se lembra de Dottie: uma mulher cujo corpo se parecia com uma almofada de sofá, que usava seu cabelo ruivo desbotado preso em um coque alto.
— Bom dia — começa Marilyn, e então vacila. — Minha filha foi para o colégio hoje?
Dottie estala discretamente a língua, demonstrando impaciência.
— Quem está falando, por favor?
Após levar um instante para recordar o próprio nome, ela diz:
— Marilyn. Marilyn Lee. Minha filha é Lydia Lee. Segundo ano.
— Deixe-me dar uma olhada no horário dela. Primeiro tempo… — A mulher hesita. — Física do terceiro ano?
— É, isso mesmo. Com o Sr. Kelly.
— Vou pedir que alguém vá até a sala verificar.
Ouve-se um baque quando a secretária coloca o telefone na escrivaninha. Marilyn observa sua caneca, a poça de água formada ao redor, na bancada. Alguns anos antes, uma menininha entrou engatinhando em um galpão e acabou ficando sufocada. Depois disso, o departamento de polícia enviou um folheto para todas as casas da vizinhança: Se seu filho estiver desaparecido, procure por ele no mesmo instante. Verifique dentro de máquinas de lavar e de secar roupas, porta-malas, depósitos de ferramentas, em qualquer lugar para onde ele possa ter engatinhado e se escondido. Telefone para a polícia imediatamente se não conseguir encontrá-lo.
— Sra. Lee? — chama a secretária. — Sua filha não veio para o primeiro tempo. A senhora está ligando para justificar a ausência?
Marilyn desliga sem responder. Coloca de volta o número de telefone no quadro de cortiça, e seus dedos úmidos borram a tinta, de forma que os dígitos ficam turvos, como se soprados por um vento forte ou estivessem submersos.
Ela olha em cada cômodo, abre cada armário. Espia a garagem vazia: nada, a não ser uma mancha de óleo no concreto e o cheiro sutil e inebriante de gasolina. Ela não sabe bem o que procura: pegadas incriminadoras? Um rastro de migalhas de pão? Quando tinha doze anos, uma menina mais velha de sua escola desaparecera e fora encontrada morta. Ginny Barron. Ela costumava usar sapatos boneca que Marilyn cobiçava desesperadamente. A menina tinha ido comprar cigarros para o pai, e dois dias depois encontraram seu corpo ao lado da estrada, perto de Charlottesville, estrangulado e nu.
Então a mente de Marilyn começa a ficar agitada. O verão do Filho de Sam, o serial killer, acaba de começar — embora os jornais só tenham passado a chamá-lo por esse nome recentemente —, e, mesmo em Ohio, as manchetes mencionam o último tiroteio. Dali a alguns meses, a polícia pegará David Berkowitz e o país passará a se concentrar em outras coisas: a morte de Elvis, o novo Atari, Fonzie pulando um tubarão. Naquele instante, porém, em que nova-iorquinos de cabelo escuro compram perucas louras, Marilyn tem a sensação de que o mundo é um lugar aterrorizante e sem sentido. Coisas como essa não acontecem aqui, ela lembra a si mesma. Não em Middlewood, que se autodenomina cidade, mas não passa de um povoado universitário com três mil habitantes, onde dirigir durante uma hora só leva você a Toledo, onde sair sábado à noite significa ir ao rinque de patinação ou ao boliche, ou a um cinema ao ar livre; onde até o lago Middlewood, no centro da cidadezinha, não passa de uma lagoa superestimada. (Ela está enganada quanto à última observação: o lago tem trezentos metros de largura e é fundo.) Ainda assim, sente um formigamento na lombar, como se besouros caminhassem por sua coluna.
Dentro de casa, Marilyn abre a cortina do chuveiro, os anéis guinchando contra a haste, e observa a curva branca da banheira. Ela procura em todos os armários da cozinha. Olha dentro da despensa, do armário de casacos, do forno. Então, abre a geladeira e espia ali. Azeitonas. Leite. Um frango embalado num pacote cor-de-rosa de espuma, um pé de alface, um cacho de uvas cor de jade. Ela toca o vidro frio do pote de manteiga de amendoim e fecha a porta, balançando a cabeça. Como se Lydia pudesse de alguma forma estar ali dentro.
O sol da manhã banha a casa, cremoso feito mousse de limão, iluminando o interior das cômodas, dos armários vazios, e o chão imaculado. Marilyn olha para as mãos, também vazias e quase incandescentes na luz do sol. Pega o telefone e liga para o marido.