Livro ‘Todas as Crônicas’ por Clarice Lispector

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Todas as crônicas reúne pela primeira vez em um só volume a íntegra da obra de Clarice Lispector como cronista, apresentando mais de uma centena de textos inéditos. “Aquela sexta-feira 18 de agosto de 1967 foi especialmente tensa na redação do Caderno B. Pesava sobre nós uma dupla responsabilidade, inaugurar na manhã seguinte a presença do suplemento aos sábados, e apresentar Clarice Lispector como cronista. Ela disse logo a que vinha. Rompendo com a tradição da crônica corrida, ocupou seu espaço na segunda página com vários textos curtos, uma verdadeira amostra daqueles que seriam seus temas centrais ao longo dos próximos seis anos: a relação mãe/filho, a revolta contra a resignação, a busca do eu, os desvãos do pensamento, e a transformação do fato cotidiano em pura metafísica.” – Do prefácio de Marina Colasanti “Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida…

Páginas: 704 páginas; Editora: Rocco; Edição: 1 (1 de agosto de 2018); ISBN-10: 8532531210; ISBN-13: 978-8532531216; ASIN: B07FK3B3WR

Biografia do autor: Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque Clarice por inteiro só os verdadeiramente íntimos conheceram e, ainda assim, com detalhes ciosamente protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.

Leia trecho do livro

Prefácio
MARINA COLASANTI

Organização e posfácio
PEDRO KARP VASQUEZ

Pesquisa textual
LARISSA VAZ

Prefácio
Jornal do Brasil
1968
1969
1970
1971
1972
1973
Jornais e revistas
O Jornal
Senhor
Joia
Última hora
Para não esquecer
Posfácio
Índice
Créditos
A Autora

PREFÁCIO

Nem uma vírgula

Aquela sexta-feira 18 de agosto de 1967 foi especialmente tensa na redação do Caderno B. Pesava sobre nós uma dupla responsabilidade, inaugurar na manhã seguinte a presença do suplemento aos sábados e apresentar Clarice Lispector como cronista.

Ela disse logo a que vinha. Rompendo a tradição da crônica corrida, ocupou seu espaço na segunda página com vários textos curtos, uma verdadeira amostra daqueles que seriam seus temas centrais ao longo dos próximos seis anos: a relação mãe-filho, a revolta contra a resignação, a busca do eu, os desvãos do pensamento e a transformação do fato cotidiano em pura metafisica.

Desde o princípio Clarice me foi entregue. O editor do Caderno parecia ter medo dela, mas era uma reverência que se confundia com falta de jeito. Achou mais tranquilo me incumbir de recebê-la quando viesse eventualmente ao jornal, de fazer-lhe as comunicações necessárias, de atender o telefone quando ela ligava.

E, sobretudo, de receber seus textos e responsabilizar-me por eles.

Feliz fiquei eu com esse encargo. Desde a adolescência a admirava, e agora, textos semelhantes àqueles que eu havia lido na sua seção “Children’s Comer” na revista Senhor, eram entregues em minhas mãos.

Não creio que Clarice tenha se lembrado que já nos conhecíamos, ou melhor, que eu já a conhecia. Era ainda novata no Jornal do Brasil, no dia em que nosso amigo comum, o jornalista Yllen Kerr, me disse que ia visitá-la, e perguntou se eu queria ir junto. Fomos. A empregada abriu a porta, sentamos na sala em penumbra. Clarice demorou justo o tempo para ser desejada. E veio.

Talvez por eu estar sentada, pareceu-me ainda mais alta do que era. Tinha presença imponente. E estava consciente do impacto provocado por sua estranha beleza. Nada nela era casual, tudo havia sido escolhido com cuidado — nos anos seguintes, jamais a veria sem maquiagem. A conversa aconteceu só entre ela e Yllen, uma conversa cheia de pausas, tateante, como se os dois estivessem andando sobre um fio. Ela fazia pausas que ele não se atrevia a interromper ou que interrompia exatamente quando ela retomava o discurso, então os dois paravam por instantes esperando o próximo passo. Eu, muda, a observava, acompanhando os gestos das mãos, reparando na escolha das pulseiras sem brilho, como se antigas ou rústicas, na roupa escura que se fundia na sala escura, só um abajur aceso. Não foi uma visita longa nem íntima, mas inesquecível para mim.

E porque Alberto Dines, editor-chefe do Jornal do Brasil, a havia convidado a colaborar no Caderno B, eis que aquela escritora estupenda me pedia para ter cuidado com seus textos. Como se o contrário fosse possível.

No princípio da sua colaboração, veio à redação algumas vezes. Depois, nunca mais. Mandava os textos por uma funcionária, em um envelope grande de papel pardo, sempre igual, subscritado com aquela letra difícil, a única letra permitida pelo incêndio que havia lhe abocanhado a mão direita.

E cada vez, ao estender-me o envelope, a funcionária repetia a recomendação feita por Clarice, que eu tivesse cuidado com seus textos, porque precisava deles e não tinha cópia. Mas não era a voz da funcionária que eu ouvia, era a dela, que tantas vezes ao telefone havia me dito, com aquele seu modo de moer os “erres” na garganta, da sua impossibilidade de usar papel-carbono, porque “o carbono frrranze”. Eu repetia o “frrranze” na cabeça e redobrava os cuidados.

Determinamos que uma caixa separada junto à mesa da editoria receberia só a colaboração semanal de Clarice. E levei a funcionária até aquela espécie de ninho, para que transmitisse a Clarice o carinho especial com que seu trabalho era tratado.

Assim mesmo, a funcionária continuou repetindo o mantra, que mais servia para tranquilizar a própria Clarice do que para nos pôr em alerta.

Anos depois, encontrando alguns daqueles textos de que havia sido íntima transferidos para o contexto de um ou outro romance, entendi ainda mais fundamente por que o fato de não ter cópia deixava Clarice tão ameaçada. Qualquer frase podia tornar-se insubstituível no futuro, nenhuma podia se perder.

Como secretária de texto do Caderno B, cabia-me o privilégio de ler Clarice antes que o texto fosse baixado para a oficina. Fazia mínimas correções dos erros de datilografia, não mais do que isso. Nem teria sido necessário. Entretanto, outro dos seus pedidos constantes era que recomendássemos aos revisores para não mexer em suas vírgulas. “Minha pontuação”, disse ela mais de uma vez, “é a minha respiração.” E durante todos os anos que durou sua presença no Caderno B, Clarice pôde respirar tranquila, nem uma vírgula foi tirada do lugar.

MARINA COLASANTI

Livro 'Todas as Crônicas' por Clarice Lispector

Jornal do Brasil

AS CRIANÇAS CHATAS
Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: não posso, estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? — pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam, no ninho da resignação. E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta.


A SURPRESA
Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência. Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.


BRINCAR DE PENSAR
A arte de pensar sem riscos. Não fossem os caminhos de emoção a que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir. Não se convidam amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar. O melhor modo é convidar apenas para uma visita, e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.

Isso, enquanto jogo leve. Pois para pensar fundo — que é o grau máximo do hobby — é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar. Exige-se tanto de quem ouve as palavras e os silêncios — como se exigiria para sentir. Não, não é verdade. Para sentir exige-se mais.

Bom, mas, quanto a pensar como divertimento, a ausência de riscos o põe ao alcance de todos. Algum risco tem, é claro. Brinca-se e pode-se sair de coração pesado. Mas de um modo geral, uma vez tomados os cuidados intuitivos, não tem perigo.

Como hobby, apresenta a vantagem de ser por excelência transportável. Embora no seio do ar ainda seja melhor, segundo eu. Em certas horas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto a cidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa, mas ninguém sabe — nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma oficina de consertos ou uma sala de costuras — nessas horas: pensa-se. Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde; só de noite é que não aconselho.

Uma vez por exemplo — no tempo em que mandávamos roupa para lavar fora — eu estava fazendo o rol. Talvez por hábito de dar título ou por súbita vontade de ter caderno limpo como em escola, escrevi: rol de… E foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar — como — hobby. E escrevi esperta: rol de sentimentos. O que eu queria dizer com isto tive que deixar para ver depois — outro sinal de se estar em caminho certo é o de não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender.

Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto —como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor — como se chama? Estar ocupada — e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu? Mas devo avisar. Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo e que começa a brincar conosco. Não e bom. É apenas frutífero.


COSMONAUTA NA TERRA Extremamente atrasada, reflito sobre os cosmonautas. Ou melhor, sobre o primeiro cosmonauta. Quase um dia depois de Gagarin, nossos sentimentos já estavam atrasados em contraposição à velocidade com que o acontecimento nos ultrapassava. Agora, então, é atrasadíssima que repenso no assunto. É um assunto difícil de se sentir.

Um dia desses um menino, advertido de que a bola com que brincava cairia no chão e amolaria os vizinhos de baixo, respondeu: ora, o mundo já é automático, quando uma mão joga a bola no ar, a outra já é automática e pega-a, não cai não.

A questão é que nossa mão ainda não é bastante automática. Foi com susto que Gagarin subiu, pois se o automático do mundo não funcionasse a bola viria mais do que transtornar os vizinhos de baixo. E foi com susto que minha mão pouco automática tremeu à possibilidade de não ser rápida bastante e deixar o “acontecimento cosmonauta” me escapar. A responsabilidade de sentir foi grande, a responsabilidade de não deixar cair a bola que nos jogaram.

A necessidade de tornar tudo um pouco mais lógico — o que de algum modo equivale ao automático — me faz tentar criteriosamente o bom susto que me pegou:

— De agora em diante, me referindo à Terra, não direi mais indiscriminadamente “o mundo”. “Mapa mundial”, considerarei expressão não apropriada; quando eu disser “o meu mundo”, me lembrarei com um susto de alegria que também meu mapa precisa ser refundido, e que ninguém me garante que, visto de fora, o meu inundo não seja azul. Considerações: antes do primeiro cosmonauta, estaria certo alguém dizer, referindo-se ao próprio nascimento, “vim ao inundo”. Mas só há pouco tempo nascemos para o mundo. Quase encabulados.

— Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.

— Se eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.

— O grande favor do acaso: estarmos ainda vivos quando o grande mundo começou. Quanto ao que vem: precisamos fumar menos, cuidar mais de nós, para termos mais tempo e viver e ver um pouco mais; além de pedirmos pressa aos cientistas — pois nosso tempo pessoal urge.

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VITÓRIA NOSSA
O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia.

Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos nem aos outros. Não temos nenhuma alegria que já tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos pois isso seria o começo de uma vida larga e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga: teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Temos feito arte por não sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado nossa indiferença com a angústia, disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam. Temos sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia.


TANTO ESFORÇO
Foi uma visita. A antiga colega veio de São Paulo e visitou-a. Recebeu-a com sanduíches e chá, aperfeiçoando como pôde a visita, a tarde e o encontro. A amiga chegou linda e feminina. Com o correr das horas começou pouco a pouco a se desfazer, até que apareceu uma cara não tão moça nem tão alegre, mais intensa, de amargura mais viva. Raspou-se em breve a sua beleza menor e mais fácil. E em breve a dona da casa tinha diante de si uma mulher que, se era menos bonita, era mais bela, e que discursava como antigamente o seu ardente pensamento, confundindo-se, usando lugares-comuns do raciocínio, tentando provar-lhe a necessidade de se caminhar para a frente, provando que “cada um tinha uma missão a cumprir”. Nesse ponto a palavra missão deve ter-lhe parecido usada demais, não para si mesma, mas para a dona da casa que fora uma das inteligentes do grupo. Então corrigiu: “missão, ou o que você quiser.” A dona da casa mexeu-se na cadeira, perturbada.

Quando a visita saiu, estava com o andar feio, parecia tomada por aquele cansaço que vem de decisões prematuras demais em relação ao tempo de ação: tudo o que ela decidira, demoraria anos até poder alcançar. Ou até nunca alcançar. A dona da casa desceu de elevador com a visita, levou-a até a rua. Estranhou ao vê-la de costas: o reverso da medalha eram cabelos desfeitos e infantis, ombros exagerados pela roupa mal cortada, vestido curto, pernas grossas. Sim. Uma mulher maravilhosa e solitária. Lutando sobretudo contra o próprio preconceito que a aconselhava a ser menos do que era, que a mandava dobrar-se. Tanto, tanto esforço, e os cabelos caindo infantis. Ao seu lado, na rua, passavam criaturas que certamente se haviam dificultado menos, e que seguiam para um destino mais imediato. A dona da casa sentiu no peito o peso de uma compreensão constrangida: como ajudá-la? Sem que jamais pudesse transformar a compreensão em um ato.


O PROCESSO
— Que é que eu faço? Não estou aguentando viver. A vida é tão curta, e eu não estou aguentando viver.
— Não sei. Eu sinto o mesmo. Mas há coisas, há muitas coisas. Há um ponto em que o desespero é uma luz, e um amor.
— E depois?
— Depois vem a Natureza.
— Você está chamando a morte de natureza?
— Não. Estou chamando a natureza de Natureza.
— Será que todas as vidas foram isso?
— Acho que sim.

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AMOR IMORREDOURO
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma amiga médica tenha discordado: argumentou que na sua profissão dá sua alma toda, e no entanto cobra dinheiro porque também precisa viver. Vendo, pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de minha alma — a parte de conversa de sábado.

Só que, sendo neófita, ainda me atrapalho com a escolha dos assuntos. Nesse estado de ânimo estava eu quando me encontrava na casa de uma amiga. O telefone tocou, era um amigo mútuo. Também falei com ele, e, é claro, anunciei-lhe que minha função era escrever todos os sábados. E sem mais nem menos perguntei: “o que mais interessa às pessoas? Às mulheres, digamos.” Antes que ele pudesse responder, ouvimos do fundo da enorme sala a minha amiga respondendo em voz alta e simples: “O homem.” Rimos, mas a resposta é séria. É com um pouco de pudor que sou obrigada a reconhecer que o que mais interessa à mulher é o homem.

Mas que isso não nos pareça humilhante, como se exigissem que em primeiro lugar tivéssemos interesses mais universais. Não nos humilhemos, porque se perguntarmos ao maior técnico do mundo em engenharia eletrônica o que é que mais interessa ao homem, a resposta íntima, imediata e franca, será: a mulher. E de vez em quando é bom lembrarmo-nos dessa verdade óbvia, por mais encabulante que seja. Hão de perguntar: “mas em matéria de gente, não são os filhos o que mais nos interessa?” Isto é diferente. Filhos são, como se diz, a nossa carne e o nosso sangue, e nem se chama de interesse. É outra coisa. É tão outra coisa que qualquer criança do inundo é como se fosse nossa carne e nosso sangue. Não, não estou fazendo literatura. Um dia desses me contaram sobre uma menina semiparalítica que precisou se vingar quebrando um jarro. E o sangue me doeu todo. Ela era uma filha colérica.

O homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é a nossa fonte de inspiração? É. O homem é o nosso desafio? É. O homem é o nosso inimigo? É. O homem é o nosso rival estimulante? É. O homem é o nosso igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O homem é bonito? É. O homem é engraçado? É. O homem é um menino? É. O homem também é um pai? É. Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos? Não. Nós somos interessantes porque o homem gosta de mulher interessante? Somos. O homem é a pessoa com quem temos o diálogo mais importante? É. O homem é um chato? Também. Nós gostamos de ser chateadas pelo homem? Gostamos.

Poderia continuar com esta lista interminável até meu diretor mandar parar. Mas acho que ninguém mais me mandaria parar. Pois penso que toquei num ponto nevrálgico. E, sendo um ponto nevrálgico, como o homem nos dói. E como a mulher dói no homem.

Com a minha mania de andar de táxi, entrevisto todos os choferes com quem viajo. Uma noite dessas viajei com um espanhol ainda bem moço, de bigodinho e olhar triste. Conversa vai, conversa vem, ele me perguntou se eu tinha filhos. Perguntei-lhe se ele também tinha, respondeu que não era casado, que jamais se casaria. E contou-me sua história. Há catorze anos amou uma jovem espanhola, na terra dele. Morava numa cidade pequena, com poucos médicos e recursos. A moça adoeceu, sem que ninguém soubesse de quê, e em três dias morreu. Morreu consciente de que ia morrer, predizendo: “Vou morrer em teus braços.” E morreu nos braços dele, pedindo: “Que Deus me salve.” O chofer durante três anos mal conseguia se alimentar. Na cidade pequena todos sabiam de sua paixão e queriam ajudá-lo. Levavam-no para festas, onde as moças, em vez de esperar que ele as tirasse para dançar, pediam-lhe para dançar com elas.

Mas de nada adiantou. O ambiente todo lembrava-lhe Clarita — este é o nome da moça morta, o que me assustou porque era quase meu nome e senti-me morta e amada. Então resolveu sair da Espanha e nem avisar aos pais. Informou-se de que só dois países na época recebiam imigrantes sem exigir carta de chamada: Brasil e Venezuela. Decidiu-se pelo Brasil. Aqui enriqueceu. Teve uma fábrica de sapatos, vendeu-a depois; comprou um bar-restaurante, vendeu-o depois. É que nada importava. Resolveu transformar seu carro de passeio em carro de praça e tornou-se chofer. Mora numa casa em Jacarepaguá, porque “lá tem cachoeiras de água doce (!) que são lindas”. Mas nesses catorze anos não conseguiu gostar de nenhuma mulher, e não tem “amor por nada, tudo dá no mesmo para ele”. Com delicadeza o espanhol deu a entender que no entanto a saudade diária que sente de Clarita não atrasa sua vida, que ele consegue ter casos e variar de mulheres. Mas amar — nunca mais.

Bom. Minha história termina de um modo um pouco inesperado e assustador.

Estávamos quase chegando ao meu ponto de parada, quando ele falou de novo na sua casa em Jacarepaguá e nas cachoeiras de água doce, como se existissem de água salgada. Eu disse meio distraída: “Como gostaria de descansar uns dias num lugar desses.”

Pois calha que era exatamente o que eu não devia ter dito. Porque, sob o risco de enveredar com o carro por alguma casa adentro, ele subitamente virou a cabeça para trás e perguntou-me com a voz carregada de intenções: “A senhora quer mesmo?! Pois pode vir!” Nervosíssima com a repentina mudança de clima, ouvi-me responder depressa e alto que não podia porque ia me operar e “ficar muito doente”(!). Dagora em diante só entrevistarei os choferes bem velhinhos. Mas isso prova que o espanhol é um homem sincero: a saudade intensa por Clarita não atrasa mesmo sua vida.

O final dessa história desilude um pouco os corações sentimentais. Muita gente gostaria que o amor de catorze anos atrasasse e muito a sua vida. A história ficaria melhor. Mas é que não posso mentir para agradar vocês. E além do mais acho justo que a vida dele não fique totalmente atrasada. Já basta o drama de não conseguir amar ninguém mais.

Esqueci de dizer que ele também me contou histórias de negócios comerciais e de desfalques — a viagem era longa, o tráfego péssimo. Mas encontrou em mim ouvidos distraídos. Só o que se chama de amor imorredouro tinha me interessado. Agora estou me lembrando vagamente do desfalque. Talvez, concentrando-me, eu me lembre melhor, e conte no próximo sábado. Mas acho que não interessa.

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PRECE POR UM PADRE
Uma noite gaguejei uma prece por um padre que tem medo de morrer e tem vergonha de ter medo. Eu disse um pouco para Deus, com algum pudor: alivia a alma do Padre X…, faze com que ele sinta que Tua mão está dada à dele, faze com que ele sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que ele sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que ele sinta uma alegria modesta e diária, faze com que ele não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que ele se lembre de que também não há explicação por que um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que ele receba o mundo sem medo, pois para esse mundo incompreensível nós fomos criados e nós mesmos também incompreensíveis, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-o para que ele viva com alegria o pão que ele come, o sono que ele dorme, faze com que ele tenha caridade por si mesmo, pois senão não poderá sentir que Deus o amou, faze com que ele perca o pudor de desejar que na hora da sua morte ele tenha uma mão humana para apertar a sua, amém. (Padre X… tinha me pedido para eu rezar por ele.)


NÃO SENTIR
O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o beneficio de seu próprio aviso prévio.


IR PARA
Esta noite um gato chorou tanto que tive uma das mais profundas compaixões pelo que é vivo. Parecia dor, e, em nossos termos humanos e animais, era. Mas seria dor, ou era “ir”, “ir para”? Pois o que é vivo vai para.


DAQUI A VINTE E CINCO ANOS
Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.

Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características fisicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas fisicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.

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PRIMAVERA AO CORRER DA MÁQUINA
Os primeiros calores da nova estação, tão antigos como um primeiro sopro. E que me faz não poder deixar de sorrir. Sem me olhar ao espelho, é um sorriso que tem a idiotice dos anjos.

Muito antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente uma tepidez de vento, as primeiras doçuras do ar. Impossível! impossível que essa doçura de ar não traga outras! diz o coração se quebrando.

Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera. Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é amor. Esse primeiro calor ainda fresco traz: tudo.

Apenas isso, e indiviso: tudo. E tudo é muito para um coração de repente enfraquecido que só suporta o menos, só pode querer o pouco e aos poucos. Sinto hoje, e também mordente, uma espécie de lembrança ainda vindoura do dia de hoje. E dizer que nunca, nunca dei isto que estou sentindo a ninguém e a nada. Dei a mim mesma? Só dei na medida em que a pungência do que é bom cabe dentro de nervos tão frágeis, de mortes tão suaves. Ah, como quero morrer. Nunca ainda experimentei morrer — que abertura de caminho tenho ainda à frente. Morrer terá a mesma pungência indivisível do bom. A quem darei a minha morte? que será como os primeiros calores frescos de uma nova estação. Ah, como a dor é mais suportável e compreensível que essa promessa de frígida e líquida alegria da primavera. É com tal pudor que espero morrer: a pungência do bom. Mas nunca morrer antes de realmente morrer: pois é tão bom prolongar essa promessa. Quero prolongá-la com tal finura. Eu me banho, nutro-me da vida melhor e mais fina, pois nada é bom demais para me preparar para o instante dessa nova estação. Quero os melhores óleos e perfumes, quero a vida da melhor espécie, quero as esperas as mais delicadas, quero as melhores carnes finas e também as pesadas para comer, quero a quebra de minha carne em espírito e do espírito se quebrando em carne, quero essas finas misturas — tudo o que secretamente me adestrará para aqueles primeiros momentos que virão. Iniciada, pressinto a mudança de estação. E desejo a vida mais cheia de um fruto enorme. Dentro desse fruto que em mim se prepara, dentro desse fruto que é suculento, há lugar para a mais leve das insônias que é a minha sabedoria de bicho acordado: um véu de alerteza, esperta apenas o bastante para apenas pressentir. Ah, pressentir é mais ameno do que o intolerável agudo do bom. E que eu não esqueça, nessa minha fina luta travada, que o mais difícil de se entender é a alegria. Que eu não esqueça que a subida mais escarpada, e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria. E que por isso e aquilo é que menos tem cabido em mim: a delicadeza infinita da alegria. Pois quando me demoro demais nela e procuro me apoderar de sua levíssima vastidão, lágrimas de cansaço me vêm aos olhos: sou fraca diante da beleza do que existe e do que vai existir. E não consigo, nesse adestramento contínuo, me apoderar do primeiro regozijo da vida.

Conseguirei captar o regozijo infinitamente doce de morrer? Ah, como me inquieta não conseguir viver o melhor, e assim poder enfim morrer o melhor. Como me inquieta que alguém possa não compreender que morrerei numa ida para uma tonta felicidade de primavera. Mas não apressarei de um instante a vinda dessa felicidade — pois esperá-la vivendo é a minha vigília de vestal. Dia e noite não deixo apagar-se a vela — para prolongá-la na melhor das esperas. Os primeiros calores da primavera… mas isso é amor! A felicidade me deixa com um sorriso de filha. Estou toda bem penteada. Só que a espera quase já não cabe mais em mim. É tão bom que corro o risco de me ultrapassar, de vir a perder a minha primeira morte primaveril, e, no suor de tanta espera tépida, morrer antes. Por curiosidade, morrer antes: pois já quero saber como é a nova estação.

Mas vou esperar. Vou esperar comendo com delicadeza e recato e avidez controlada cada mínima migalha de tudo, quero tudo pois nada é bom demais para a minha morte que é a minha vida tão eterna que hoje mesmo ela já existe e já é.

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PARA OS RICOS QUE TAMBÉM SÃO BONS
Para a minha honra, recebi um recado do Dr. Abraão Aken-nan, um dos maiores neurologistas do mundo: ele queria fazer uso de minha coluna.

Anteriormente já tinha recebido um recado dele: gostaria de me dar uma entrevista cujo assunto seria o homem e a mulher, o que certamente significa amor. Quando recebi o segundo recado pensei que chegara a hora da entrevista. Perguntei, ele mandou dizer que não: que ele só daria se eu quisesse. Claro que quero, mesmo que seja sobre o homem e a mulher sob o ponto de vista neurológico.

Fui, pois, visitá-lo numa tarde de domingo. Dr. Akerman é um homem total: além de ser um mestre no campo da neurologia, está a par do que melhor existe em literatura, mandando inclusive buscar livros na Europa. E tem discoteca selecionadíssima.

Depois de conversarmos um pouco — e o que conversamos daria uma entrevista interessantíssima — depois de conversarmos um pouco, passamos ao assunto que ocupa a coluna de hoje. E que envolve quem tem dinheiro, envolve ciência, imposto de renda, pessoas com coração bom e sobretudo ativo. Estou enigmática? Tudo se esclarecerá quando eu transmitir o que o próprio Dr. Akerman me disse:

— Eu e várias pessoas que trabalham isoladamente, pesquisando e ensinando, necessitamos, para prosseguir nas pesquisas e descortinar novos horizontes, de uma ajuda eficiente que não seja ocasional apenas Acreditando nas possibilidades infinitas do Brasil e de sua nova geração, eu gostaria que essa iniciativa partisse de brasileiros; sem que se precisasse de recorrer à ajuda de estrangeiros.

Novas leis dos últimos dois anos facilitam isso aos grandes possuidores de bens, já que, como em inúmeros países estrangeiros, sobretudo nos Estados Unidos, o imposto de renda é descontado dessa generosidade. Essa mesma generosidade poderá beneficiar outras atividades importantes para o nosso povo, custeando orquestras, museus etc.

Prosseguindo, fiquei sabendo que foi há pouco tempo doada ao Serviço de Neurologia da Santa Casa de Misericórdia, dirigido pelo Dr. Akerman2 uma aparelhagem aperfeiçoadíssima de eletroencefalografia, no valor de cinquenta mil cruzeiros novos (cinquenta milhões de cruzeiros antigos). E evidente que essa doação não foi feita sem uma avaliação criteriosa do que o aparelho poderia render.

As doações particulares são atualmente raras porque poucos são os capazes de utilizá-las, as doações, isto é, a pleno rendimento. Os grandes industriais e os professores estrangeiros que nos visitam ficam surpreendidos com o excessivo material moderno existente nas organizações públicas —sem vislumbre de utilização. Simplesmente não sabem empregar o material. São solicitações dispendiosíssimas, feitas em concorrência pública, de aparelhos que não têm técnicos para utilizá-los.

No entanto o frequente bom aproveitamento de instrumentos científicos por organizações particulares é de todos conhecido.

Infelizmente o país é muitas vezes um patrão muito abstrato, e, chegando o aparelho, este é abandonado com desprezo do sacrifício público.

Dr. Akerman acrescentou:

— Façamos votos para que o estímulo à atividade privada, que em nada faz concorrência ao ensino oficial, se repita frequentemente, dignificando os que desejam que o nosso país alcance o nível científico que merece.

Dr. Akerman citou Mellon, grande banqueiro, que doou enormes quantias a museus norte-americanos. E disse:

— Os ricos têm que se acostumar a dar. Está na hora de dar.

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DOS PALAVRÕES NO TEATRO
Eu própria não uso palavrões porque na minha casa, na infância, não usavam e habituei-me a me exprimir através de outro linguajar. Mas o palavrão —aquele que expressa o que uma palavra não faria — esse não me choca. Há peças de teatro, como A volta ao lar (Fernanda Montenegro, excelente) ou Dois perdidos numa noite suja (Fauzi Arap e Nelson Xavier, excelentes), que simplesmente não poderiam passar sem o palavrão por causa do ambiente em que se passam e pelo tipo dos personagens. Essas duas peças, por exemplo, são de alta qualidade, e não podem ser restringidas.

Além do mais, quem vai ao teatro em geral já está pelo menos ligeiramente informado, por rumores até, da espécie de espetáculo a que assistirá. Se o palavrão lhe dá mal-estar ou o escandaliza, por que então comprar a entrada?

E mais ainda: as peças de teatro têm censura de idade, e o mais comum é só permitir a entrada de menores a partir de dezesseis anos, o que é uma garantia. Embora mesmo antes dessa idade os palavrões sejam conhecidos e usados pela maioria da juventude moderna.

Qual é então o problema que o uso do palavrão adequado a um texto poderia suscitar? E sem falar que, agrade ou não, o palavrão faz parte da língua portuguesa.


CHACRINHA?!
De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa que me pareceu durar mais que uma hora.

E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. E um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante — falta-lhe imaginação ou ele é obcecado.

E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo à custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros, que são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?

Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.

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DIES IRAE
Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o inundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos todos semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior — vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.

E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se. Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo. Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre. E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.

Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer. — Acabo de ser interrompida pelo telefonema de uma moça chamada Teresa que ficou muito contente de eu me lembrar dela. Lembro-me: era uma desconhecida, que um dia apareceu no hospital, durante os quase três meses onde passei para me salvar do incêndio. Ela se sentara, ficara um pouco calada, falara um pouco. Depois fora embora. E agora me telefonou para ser franca: que eu não escreva no jornal nada de crônicas ou coisa parecida. Que ela e muitos querem que eu seja eu própria, mesmo que remunerada para isso. Que muitos têm acesso a meus livros e que me querem como sou no jornal mesmo. Eu disse que sim, em parte porque também gostaria que fosse sim, em parte para mostrar a Teresa, que não me parece semiparalítica, que ainda se pode dizer sim. Sim, meu Deus. Que se possa dizer sim. No entanto neste mesmo momento alguma coisa estranha aconteceu. Estou escrevendo de manhã e o tempo de repente escureceu de tal forma que foi preciso acender as luzes. E outro telefonema veio: de uma amiga perguntando-me espantada se aqui também tinha escurecido.

Sim, aqui é noite escura às dez horas da manhã. É a ira de Deus. E se essa escuridão se transformar em chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos fazer um inundo onde viver e não sabemos na nossa paralisia como viver. Porque se não voltar o dilúvio, voltarão Sodoma e Gomorra, que era a solução. Por que deixar entrar na arca um par de cada espécie? Pelo menos o par humano não tem dado senão filhos, mas não a outra vida, aquela que, não existindo, me fez amanhecer em cólera.

Teresa, quando você me visitou no hospital, viu-me toda enfaixada e imobilizada. Hoje você me veria mais imobilizada ainda. Hoje sou a paralítica e a muda. E se tento falar, sai um rugido de tristeza. Então não é cólera apenas? Não, é tristeza também.

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POTÊNCIA E FRAGILIDADE
E de repente aquela dor intolerável no olho esquerdo, este lacrimejando, e o inundo se tornando turvo. E torto: pois fechando um olho, o outro automaticamente se entrefecha. Quatro vezes no decorrer de menos de um ano um objeto estranho entrou no meu olho esquerdo: duas vezes ciscos, uma vez um grão de areia, outra um cílio. Das quatro vezes tive que procurar um oftalmologista de plantão. Da última vez perguntei ao Dr. Murilo Carvalho, cirurgião dos Oculistas Associados, e também um artista em potencial que realiza sua vocação através de cuidar por assim dizer de nossa visão do mundo:

— Por que sempre o olho esquerdo? É simples coincidência?

Ele respondeu não; que, por mais normal que seja uma vista, um dos olhos vê mais que o outro e por isso é mais sensível. Chamou-o de “olho diretor”. E, por ser mais sensível, disse ele, prende o corpo estranho, não o expulsa.

Quer dizer que o melhor olho é aquele que mais sofre. É a um só tempo mais poderoso e mais frágil, atrai problemas que, longe de serem imaginários, não poderiam ser mais reais que a dor insuportável de um cisco ferindo e arranhando uma das partes mais delicadas do corpo.

Fiquei pensativa.

Será que é só com os olhos que isso acontece? Será que a pessoa que mais vê, portanto a mais potente, é a que mais sente e sofre.E a que mais se estraçalha com dores tão reais quanto um cisco no olho.

Fiquei pensativa.

SIM
Eu disse a uma amiga:

— A vida sempre superexigiu de mim.

Ela disse:

— Mas lembre-se de que você também superexige da vida. Sim.

UM FATO INUSITADO E UM PEDIDO
Recebi uma carta bem datilografada, sem erros de português, sem floreados, embora excessivamente respeitosa: sou o tempo todo chamada de Vossa Senhoria. A carta é de Fernando Berrardes, que me pede desculpas por “ocupar vossa ilustre pessoa”. Diz: “Sou homem modesto ocupando o cargo de vigia de obras, em período noturno, e faço da leitura dos livros os companheiros para atravessar insone as horas do meu trabalho.” Continuando, diz que um amigo emprestou-lhe um livro meu, “excelente”, embora não mencione qual deles. E por isso lembrou-se de me perguntar se eu não poderia enviar-lhe alguns livros usados pois “percebo pequeno salário, e o meu ganho não dá para a compra dos mesmos”.

A carta me surpreende e comove. Por que esse homem é vigia de obras?

Falei pelo telefone com o escritor Umberto Peregrino, diretor do Instituto Nacional do Livro, contei-lhe o caso, e ele prontamente mandou enviar uma seleção de livros ao vigia de obras.

Posso fazer um pedido aos leitores? Que também mandem livros usados para Fernando Bernardes, dando-lhe uma alegria. Seu endereço é: Rua Imarui, 124, Bangu. Obrigada.


O LIVRO DE MEU VIZINHO
Mandaram-me um livro contendo uma carta. O livro é de contos, chama-se Jornada em círculos, e o autor é José Luís Janot. Pela carta vim a saber que ele mora quase defronte de mim: de meu pequeno terraço pude ver, seguindo sua descrição, o fundo de seu apartamento: “paredes brancas, escadinha, porta e janelas azuis.” Diz que, na noite do incêndio na minha casa, viu “a fumaça abundante, adivinhei que era o seu apartamento e desci correndo as escadas”. Mais adiante: “naquela noite horrível, quando menos esperava — instintivamente — rogava a um deus qualquer para que nada de irremediável lhe acontecesse.” Obrigada, meu vizinho, pela prece e pelo livro.

Li os contos. E são bons. A orelha do livro informa que se trata de uma primeira publicação. Não parece. Sente-se uma segurança que não é de principiante. Aliás, a orelha diz que o autor, embora estreante, não é absolutamente um neófito. “Sofreu todo um processo de amadurecimento interior antes que se sentisse apto a enfrentar o público.” Tivesse eu a capacidade de fazer crítica, entraria provavelmente em detalhes. Mas não sou crítica. Só posso dizer que Jornada em círculos é bom e que gostei de lê-lo.

SUÍTE DA PRIMAVERA SUÍÇA
Inverno de Berna em túmulo a se abrir — e eis o campo, eis mil ervas. Folhas novas, folhas, como vos separar do vento. Um espirro e depois outro, espirros da primavera, resfriada e atenta atrás da vidraça. Fios de aranha nos dedos, o poço revelado no jardim — mas que perfume de aço novo vem das miúdas flores amarelas e amarelinhas. Folhas, folhas, como vos separar da brisa. Onde me esconder nesta aberta claridade? Perdi meus cantos de meditação. Mas se ponho vestido branco e saio… na luz ficarei perdida — e de novo perdida — e no salto lento para o outro plano de novo perdida — e como encontrar nesta minha ausência a primavera? Rosa, passa a ferro o meu vestido mais negro. Nestes planos da calma sucessiva — e mais no outro — e mais no outro — serei o único eu possível, apenas móvel num século e no outro século e no outro século desta limpidez silenciosa, oh inóspita primavera. Ou talvez corra por esta nova época — atravessando esse novo mundo sem caminhos — com mil espirros brilhantes e mil ervas. Pararei ofegante só onde me bater o coração, único marco no teu vazio, primavera: eu de preto e tu de ouro, eu com uma flor no cabelo, tu com mil flores nos cabelos e assim nos reconheceremos. Ainda para nos reconhecermos, segurarei um livro na mão e na outra tanta hesitação, sou alta e resfriada: me reconhecerás pelo lenço e pelos espirros. E no meio deste odioso céu vazio, que respiro, que respiro — te reconhecerei pelo teu cego vento e pela minha orgulhosa floração de espirros.

Nesta dormente primavera, no campo o sonho das cabras. No terraço do hotel o peixe no aquário. E nas colinas o fauno solitário. Dias, dias, dias e depois — no campo o vento, o sonho impudente das cabras, o peixe oco no aquário — tua súbita tendência primaveril ao roubo, e o fauno já corado em saltos solitários. Sim, mas até que venha o verão e amadureçam para o outono cem mil maçãs.

Como a fruta e jogo fora a metade, nunca tive piedade na primavera. Bebo água direto na fonte da rua, não enxugo a boca com o lenço, perdi o lenço e perdi o inverno, nada lamento, nunca tive piedade na primavera. De algum modo olho pelo buraco da fechadura e vou visitar-te na hora sagrada de teu sono, nunca tive piedade na primavera. Quanto à piscina, fico horas na piscina, estremecendo aos últimos frios do inverno estremecendo aos primeiros frios das folhas. Olha só a piscina! Olho, áspera. Nunca tive piedade na primavera.

A insônia levita a cidade mal-iluminada, não há porta fechada nem janela sem luz. Que esperam? Esperam. Os cinemas já quentes estão vazios. Em torno das lâmpadas das ruas a germinação. A última neve há tanto tempo se derreteu. A margem do rio, a invasão dos casais sentados junto a mesas, algumas crianças sonolentas no colo, outras adormecidas na dureza da calçada. As conversas são cansadas. O pior é essa leveza desperta, as lanternas das ruas de Berna zumbindo de pernilongos. Ah, como, mas como andamos. Poeira nas sandálias, nenhum destino. Não, não está ficando bom. Ah, eis enfim a Catedral, o abrigo, a escuridão.

Mas a Catedral está quente e aberta.

Cheia de mosquitos.

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AS GRANDES PUNIÇÕES
Foi no primeiro dia de aula do Jardim de Infância do Grupo Escolar João Barbalho, na Rua Formosa, em Recife, que encontrei Leopoldo. E no dia seguinte já éramos os dois impossíveis da turma. Passamos o ano ouvindo nossos dois nomes gritados pela professora — mas, não sei por quê, ela gostava de nós, apesar do trabalho que lhe dávamos. Separou nossos bancos inutilmente, pois Leopoldo e eu falávamos lá o que falávamos em voz alta, o que piorava a disciplina da classe. Depois passamos para o primeiro ano primário. E para a nova professora também éramos os dois alunos impossíveis. Tirávamos boas notas, menos em comportamento.

Até que um dia apareceu na classe a imponente diretora que falou baixo com a professora. Vou contar logo o que realmente era, antes de narrar o que realmente senti. Tratava-se apenas de fazer o levantamento do nível mental das crianças do estado, por meio de testes. Mas quando as crianças eram, na opinião da professora, mais vivas, faziam o teste em ano superior, porque no próprio ano seria fácil demais. Tratava-se apenas disso.

Mas depois que a diretora saiu, a professora disse: Leopoldo e Clarice vão fazer uma espécie de exame no quarto ano. E levei uma das dores de minha vida. Ela não explicou mais nada. Mas os nossos dois nomes de novo citados juntos revelaram-me que chegara a hora da punição divina. Eu, apesar de alegre, era muito chorona, e comecei a soluçar baixinho. Leopoldo imediatamente passou a me consolar, a explicar que não era nada. Inútil: eu era a culpada nata, aquela que nascera com o pecado mortal.

E de repente eis-nos os dois na sala do quarto ano primário, com crianças grandalhonas, professora desconhecida e sala desconhecida. Meu pavor cresceu, as lágrimas me escorriam pelo rosto, pelo peito. Sentaram-nos, Leopoldo e eu, um ao lado do outro. Foram distribuídas folhas de papel impresso, ao mesmo tempo que a severa professora dizia essa coisa incompreensível:

— Até eu dizer agora!, não olhem para o papel. Só comecem a ler quando eu disser. E no instante em que eu disser chega!, vocês param no ponto em que estiverem.

Recebemos as folhas. Leopoldo tranquilo, eu em pânico maior ainda. Além do mais eu nem sabia o que era exame, ainda não tinha feito nenhum. E quando ela disse de repente “agora”, meus soluços abafados aumentaram. Leopoldo — além de meu pai — foi o meu primeiro protetor masculino, e tão bem o fez que me deixou para o resto da vida aceitando e querendo a proteção masculina — Leopoldo mandou eu me acalmar, ler as perguntas e responder o que soubesse. Inútil: a essa hora meu papel já estava todo ensopado de lágrimas e, quando eu tentava ler, as lágrimas me impediam de enxergar. Não escrevi uma só palavra, chorava e sofria como só vim a sofrer mais tarde e por outros motivos. Leopoldo, além de escrever, ocupava-se de mim.

Quando a professora gritou “Chega!”, minhas lágrimas ainda não chegavam. Ela me chamou, eu não expliquei nada, ela me explicou sem severidade que as crianças mais vivas de uma turma etc. Só fui entender dias depois, quando sarei. Nunca soube do resultado do teste, acho que nem era para sabermos.

No terceiro ano primário, mudei de escola. E no exame de admissão para o Ginásio Pernambucano, logo de entrada, reencontrei Leopoldo, e foi como se não nos tivéssemos separado. Ele continuou a me proteger. Lembro-me de que uma vez usei uma palavra qualquer de gíria, cuja origem maliciosa eu ignorava. E Leopoldo: “Não diga mais essa palavra.” “Por quê’?” “Mais tarde você vai entende?, disse-me ele.

No terceiro ano de ginásio, minha família mudou-se para o Rio. Só vi Leopoldo mais uma vez na vida, por acaso, na rua, e como adultos. Passáramos agora a ser dois tímidos que viajaram na mesma condução sem quase pronunciar uma palavra. Éramos impossíveis de outro modo.

Leopoldo é Leopoldo Nachbin. Eu soube que no primeiro ano de engenharia resolveu um dos teoremas considerados insolúveis desde a mais alta Antiguidade. E que imediatamente foi chamado à Sorbonne para explicar o processo. É um dos maiores matemáticos que hoje existem no mundo.

Quanto a mim, choro menos.

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A FAVOR DO MEDO
Estou certa de que através da idade da pedra fui exatamente maltratada pelo amor de algum homem. Data desse tempo um certo pavor que é secreto.

Ora, em noite cálida, estava eu sentada a conversar polidamente com um homem cavalheiro que era civilizado, de terno escuro e unhas corretas. Estava eu, como diria Sérgio Porto, posta em sossego e comendo umas goiabinhas. Eis senão quando diz o Homem: “Vamos dar um passeio?”

Não. Vou dizer a verdade crua. O que ele disse foi: “Vamos dar um passeíto?”

Por que passeíto jamais tive tempo de saber. Pois que imediatamente, da altura de milhares de séculos, rolou em fragor a primeira pedra de uma avalancha: meu coração. Quem? Quem já me levou na idade da pedra para um passeíto do qual nunca mais voltei porque lá morando fiquei?

Não sei que elemento de terror existirá na delicadeza monstruosa da palavra passeíto.

Rolado o meu primeiro coração, engolida atrozmente a goiabinha — estava eu ridiculamente assustada diante de um improvável perigo.

Improvável digo eu hoje, muito da assegurada que estou pelos brandos costumes, pela polícia áspera, e por mim mesma fugidia que nem a mais mimética das enguias. Mas bem queria saber o que eu outrora diria, na idade da pedra, quando me sacudiam, quase macaca, da minha frondosa árvore. Que nostalgia, preciso passar uns tempos no campo.

Engolida, pois, a minha goiabinha, empalideci sem que a cor civilizadamente me abandonasse o rosto: o medo era vertical demais no tempo para deixar vestígios na superficie. Aliás não era o medo. Aliás era o terror. Aliás era a queda de todo o meu futuro. O homem, este meu igual que me tem assassinado por amor, e a isto se chama de amar, e é.

Passeíto? Assim também diziam para Chapeuzinho Vermelho, que esta só mais tarde cuidou de se cuidar. “Vou é me acautelar, por via das dúvidas debaixo das folhas hei de morar” — de onde me vinha essa toada? Não sei, mas boca de povo em Pernambuco não erra.

Que me desculpe o Homem que talvez se reconheça neste relato de um medo. Mas nem tenha ele dúvida de que “o problema era meu”, como se diz. Não tenha dúvida de que eu deveria tomar o convite pelo que ele na verdade devia ser, igual a ter me mandado antes rosas: uma gentileza, a noite estava tépida, ele tinha carro à porta. E nem tenha dúvida de que — na simplória divisão a que os séculos me obrigaram entre o bem e o mal — sei que ele era Homem Bom Caverna Direita Só Cinco Mulheres Não Bate Nenhuma Todas Contentes. E por favor me entenda — apelo para o seu bom humor — sei que homem de fronteira, como ele, usa com simplicidade a palavra passeíto, o que para mim, no entanto, teve a terrível ameaça de uma doçura. Agradeço-lhe exatamente essa palavra que, por ser nova para mim, veio me dar o bom escândalo.

Expliquei ao Homem que não podia dar o passeíto, fina que sou. Séculos adestraram-me, e hoje sou uma fina entre as finas, mesmo como no caso, sem necessitar, por via das dúvidas debaixo das folhas hei de morar.

O Homem, esse não insistiu, se bem que não me pareça poder dizer com verdade que ele se agradou. Defrontamo-nos por menos de um átimo de segundo — com o decorrer dos milênios, eu e o Homem fomo-nos compreendendo cada vez melhor, e hoje menos de um átimo de segundo nos chega —, defrontamo-nos, e o não, apesar de balbuciado, ecoou escandalosamente contra as paredes da caverna que sempre favoreceram mais as vontades do Homem.

Depois que o Homem imediatamente se retirou, eis-me salvaguardada e ainda assustada. Por um triz um passeíto onde eu talvez perdesse a vida? Hoje em dia sempre se perde a vida à toa.

Retirando-se o Homem, percebi então que estava toda alegre, toda vivificada. Oh, não por causa do convite ao passeio, nós todas temos sido durante milênios continuamente convidadas a passeios, estamos habituadas e contentes, raramente açoitadas. Estava alegre e revolucionada — mas era pelo medo. Pois sou a favor do medo.

Então certos medos — aqueles não mesquinhos e que têm raiz de raça inextirpável — têm-me dado a minha mais incompreensível realidade. A ilogicidade de meus medos me tem encantado, dá-me uma aura que até me encabula. Mal consigo esconder, sob a sorridente modéstia, meu grande poder de cair em medos. Mas no caso deste medo particular, pergunto-me de novo o que me terá acontecido na idade da pedra? Algo natural não foi, ou eu não teria conservado até hoje esse olhar de lado, e não me teria tornado delicadamente invisível, assumindo sonsa a cor das sombras e dos verdes, andando sempre do lado de dentro das calçadas, e com falso andar seco. Algo natural não terá sido, posto que, sendo eu por força e sem escolha uma natural, o natural não me teria assustado. Ou já então — na própria idade das cavernas que ainda hoje é o meu mais secreto lar — ou já então eu fiz uma neurose sobre o natural de um passeíto?

É, mas ter um coração de esguelha é que está certo: é faro, direção de ventos, sabedoria, esperteza de instinto, experiência de mortes, adivinhação em lagos, desadaptação inquietantemente feliz, pois descubro que ser desadaptada é a minha fonte. Pois bem se sabe que vai chover muito quando os mosquitos anunciam, e cortar minha cabeleira em lua nova dá-lhe de novo as forças, dizer um nome que não ouso traz atraso e muita desgraça, amarrar o diabo com linha vermelha no pé do móvel tem pelo menos amarrado os meus demônios. E sei — com meu coração que por nunca ter ousado expor-se no centro, e há séculos, mantém-se em sombra à esquerda —, bem sei que o Homem é um ser tão estranho a si mesmo que, só por ser inocente, é natural.

Não, quem tem razão é este meu coração indireto, mesmo que os fatos me desmintam diretamente. Passeíto dá morte ceda, e a cara espantada fica de olho vidrado olhando para a lua cheia de si.

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UM ENCONTRO PERFEITO
Quando Maria Bonomi esteve no Rio, almoçamos juntas num restaurante, e com um vinho tinto bem encorpado que me fez dormir horas de sono pesado, sem pesadelo. Enquanto eu dormia, ela tomava o avião para São Paulo, onde mora com Antunes, seu marido, um dos melhores diretores teatrais que temos, e Cássio, meu afilhado. Cássio andou um tempo reclamando de mim: todos tinham madrinha à mão e ele era obrigado a se relacionar comigo através de retratos em jornais de São Paulo. Soube que já teve duas namoradas e que rompeu com a segunda porque esta bateu nele. Isso não: homem é quem bate em mulher. Resolvi, a conselho de uma amiga, dar-lhe de presente uma metralhadora, das que chispam fogo e fazem muito barulho: para que ele liberte sua agressividade masculina, tão ofendida pela namorada. E um dia desses irei a São Paulo, especialmente para me dar a meu afilhado. Não quero conversar com ninguém, só com ele. Bem, também porque receio que Antunes procure convencer-me a escrever para teatro, para ele dirigir, assim como no Rio, Martim Gonçalves faz. O mais impossível ainda é escrever roteiro para filme, como Khouri queria, como Maurício Ritner queria. Um dos argumentos é que o que escrevo é muito visual. Mas se é, é de um modo inconsciente. Do momento em que eu conscientemente tivesse que ter como meta a visão, atrapalhar-me-ia toda.

Mas voltemos a Maria Bonomi Antunes, minha comadre e amiga. Conheci-a em Washington ou Nova York? Era a mesma de hoje: mais do que bonita, com um ar livre, olhos risonhos que se tornam logo mais graves quando se fala em sua arte. Maria é um misto de lucidez e instinto, o que a torna um ser completo. Meu encontro com ela foi tão encontro mesmo que, na hora da despedida, Maria disse “até amanhã”. Eu me renovei em Maria, espero que ela se tenha renovado um pouco em mim, embora não precise.

De início pusemo-nos a par de nossas vidas cotidianas. Depois perguntei pelo seu trabalho. Mal dá conta de tanto trabalhar e vender, e o sucesso a está atrapalhando. Até secretário foi obrigada a ter. Entendi. O meu pequeno sucesso exterior às vezes me faz perder a intimidade com a máquina. Não tenho secretário porque meus negócios são pequenos: resumem-se em telefonar para editores, quando é o caso, e em adiar indefinidamente respostas a cartas de editores estrangeiros. Discutimos o sucesso. Maria acha que, em se chegando a esse impasse, a única solução é profissionalizar-se. Sempre fui uma amadora, amadora compulsiva, é verdade, mas amadora. E tenho receio de uma profissionalização. A Maria esta não perturbou: está em plena fase de pesquisa.


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