Livro ‘Sobre o Autoritarismo Brasileiro’ por Lilia Moritz Schwarcz

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Valendo-se de uma ampla reunião de dados estatísticos, Lilia M. Schwarcz examina algumas das raízes do autoritarismo brasileiro, bastante antigas e arraigadas, embora frequentemente mascaradas pela mitologia nacional. Os brasileiros gostam de se crer diversos do que são. Tolerantes, abertos, pacíficos e acolhedores são alguns dos adjetivos que habitam frequentemente a mitologia nacional. Neste livro urgente e necessário, Lilia M. Schwarcz reconstitui a construção dessa narrativa oficial que acabou por obscurecer uma realidade bem menos suave, marcada pela herança perversa da escravidão e pelas lógicas de dominação do sistema colonial. Ao investigar esses subterrâneos da história do país ― e suas permanências no presente ― a autora deixa expostas as raízes do autoritarismo no Brasil, e ajuda a entender por que fomos e continuamos a ser uma nação muito mais excludente que inclusiva, com um longo caminho pela frente na elaboração de uma agenda justa e igualitária.

Páginas: 288 páginas; Editora: Companhia das Letras; Edição: 1ª (24 de maio de 2019); ISBN-10: 8535932194; ISBN-13: 978-8535932195; ASIN: B0CT8QN7NW

Leia trecho do livro

Sobre a imagem da capa

A obra que aparece na capa deste livro, chamada Memória, é de autoria da mineira Sonia Gomes. Retalhos de tecidos encontrados ao acaso, ou ofertados à artista, são reconfi gurados, relidos, traduzidos e transformados em escultura. Essas são “esculturas da memória”, porque feitas do arranjo de vários objetos retirados do cotidiano, tensionados, e que remetem, em seu conjunto, à prática tradicional da costura feminina. O trabalho também evoca a ideia de puxar fi os e tecidos da memória, os quais, assim reunidos, resultam numa forma nova, pois se apresentam no nosso tempo atual e interpelam a nossa própria contemporaneidade.

Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou.
Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta

Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la.
George Santayana, The Life of Reason (1905)

Introdução

História não é bula de remédio*

Brasil tem uma história muito particular, ao menos quando comparada à de seus vizinhos latino-americanos. Para cá veio quase a metade dos africanos e africanas escravizados e obrigados a deixar suas terras de origem na base da força e da violência; depois da independência, e cercados por repúblicas, formamos uma monarquia bastante popular por mais de sessenta anos, e com ela conseguimos manter intatas as fronteiras do país, cujo tamanho agigantado mais se assemelha ao de um continente. Para completar, como fomos uma colônia portuguesa, falamos uma língua diversa da dos nossos vizinhos.

* Sobre o autoritarismo brasileiro é, em parte, realizado em diálogo com algumas conclusões e dados que aparecem em Brasil: uma biografia (2014), que escrevi em coautoria com Heloisa Starling. Faço também um uso seletivo de colunas que publiquei no jornal Nexo desde 2014. Como pretendo dar uma visão geral, e não exaustiva, sobre uma série de temas que explicam a vigência de práticas autoritárias em nosso país, alguns dos quais não fazem, mais exatamente, parte das minhas especialidades profissionais e acadêmicas, só pude escrever este livro em razão da excelente produção expressa em obras, relatórios e artigos, de acadêmicos, ativistas e jornalistas, acerca dos vários temas que o compõem. Como o formato deste livro não prevê a inserção de notas no decorrer do texto, procurei concentrar na bibliografia apresentada no fim do volume os títulos das obras aqui citadas e utilizadas.

Somos um país, também, muito original e jovem em matéria de vida institucional regular. Boa parte dos estabelecimentos nacionais foram criados no contexto da vinda da família real, em 1808, quando se fundaram as primeiras escolas de cirurgia e anatomia, em Salvador e no Rio de Janeiro. Nas colônias espanholas, por sua vez, a criação das universidades é bem mais antiga, datando, algumas delas, dos séculos XVI, XVII e XVIII: Universidade de São Domingos (1538), Lima (1551), Cidade do México (1551), Bogotá (1580), Quito (1586), Santiago (1621) e Guatemala (1676). No XVIII: Havana (1721), Caracas (1721) e Assunção (1733).

Foi só com a chegada da corte portuguesa e com a duplicação da população em algumas cidades brasileiras que se deixou de contar exclusivamente com profi ssionais formados em Coimbra. Essas primeiras escolas foram a Academia Real Militar, em 1810, o curso de Agricultura, em 1814, e a Real Academia de Pintura e Escultura, fundada em 1820, com programas que asseguravam um diploma profi ssional, verdadeiro bilhete de entrada para postos privilegiados e para um mercado de trabalho bastante restrito e de garantido prestígio social. Foram igualmente fundados nesse momento o Real Jardim Botânico, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, o Museu Real, a Real Biblioteca, a Imprensa Régia e o Banco do Brasil, o qual, diziam as testemunhas, “já nasceu falido”.

A Coroa portuguesa tratou de transplantar, ainda, a pesada burocracia da metrópole europeia, num organograma hierárquico antes centralizado no Paço, em Lisboa, e que abrangia o governo-geral do Brasil, o governo das capitanias e o das câmaras municipais. A estrutura judicial já contava, por aqui, com o Tribunal da Relação, vinculado à Casa da Suplicação, sediada na capital lusa, mas essa corte superior também veio na “bagagem” do príncipe regente, assim como outros antigos tribunais portugueses: o Desembargo do Paço, instância superior no organograma, e a Mesa da Consciência e Ordens, que mantinha o vínculo com o arcebispado do Brasil.

A independência política em 1822 não trouxe muitas novidades em termos institucionais, mas consolidou um objetivo claro, qual seja: estruturar e justifi car uma nova nação, aliás, e como vimos, muito peculiar no contexto americano; uma monarquia cercada de repúblicas por todos os lados.

A tarefa não era pequena. Era preciso redigir uma nova Constituição, cuidar da saúde da população doente e que crescera muito, formar engenheiros para assegurar as fronteiras e planejar as novas cidades, judicializar processos até então decididos a partir dos costumes e dos poderes regionais, e, não menos importante, inventar uma nova história para o Brasil, uma vez que a nossa era, ainda, basicamente portuguesa. Não é de estranhar, portanto, que dentre os primeiros estabelecimentos fundados nessa ocasião estivesse o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, aberto em 1838. Sediado no Rio de Janeiro, o centro logo deixaria claras suas principais metas: construir uma história que elevasse o passado e que fosse patriótica nas suas proposições, trabalhos e argumentos.

Para referendar a coerência da filosofi a que inaugurou o IHGB, basta prestar atenção no primeiro concurso público por lá organizado. Em 1844, abriam-se as portas para os candidatos que se dispusessem a discorrer sobre uma questão espinhosa, desta forma elaborada: “Como se deve escrever a história do Brasil”. A ementa era direta, não deixava margem para dúvidas. Tratava-se de inventar uma nova história do e para o Brasil.

Foi dado, então, um pontapé inicial, e fundamental, para a disciplina que chamaríamos, anos mais tarde, e com grande naturalidade, de “História do Brasil”, como se as narrativas nela contidas houvessem nascido prontas ou sido resultado de um ato exclusivo de vontade ou do assim chamado destino. Sabemos, porém, que na imensa maioria das vezes ocorre justamente o oposto: momentos inaugurais procuram destacar uma dada narrativa temporal em detrimento de outras, criar uma verdadeira batalha retórica — inventando rituais de memória e qualificando seus próprios modelos de autênticos (e os demais de falsos) —, elevar alguns eventos e obliterar outros, endossar certas interpretações e desautorizar o resto. Episódios como esse são, portanto, bons para iluminar os artifícios políticos da cena e seus bastidores. Ou seja, ajudam a entender como, quando e por que, em determinados momentos, a história vira objeto de disputa política.

No caso, a intenção do concurso era criar apenas uma história, e que fosse (por suposto) europeia em seu argumento, imperial na justificativa e centralizada em torno dos eventos que ocorreram no Rio de Janeiro. Desbancando Salvador, o Rio se tornara capital do Brasil desde 1763, e agora precisava exercer sua centralidade política e histórica. Além do mais, o estabelecimento necessitava confirmar sua origem palaciana, bem como justificar a composição do quadro de sócios, basicamente pertencentes às elites agrárias locais.

Dessa maneira, nada mais adequado que a construção de uma história oficial que concretizasse o que, àquela altura, parecia artificial e, além do mais, recente; um Estado independente nas Américas mas cujo projeto conservador levou à formação de um Império (regido por um monarca português) e não de uma República. Ademais, era preciso enaltecer um processo de emancipação que ia gerando muita desconfiança e conferir-lhe legitimidade. Afinal, diferentemente de seus vizinhos latino-americanos, o chefe de Estado no Brasil era um monarca, descendente direto de três casas reais europeias das mais tradicionais: os Bragança, os Bourbon e os Habsburgo.

Mas a singularidade da competição também ficou associada a seu resultado e à divulgação do nome do vencedor. O primeiro lugar, nessa disputa histórica, foi para um estrangeiro — o conhecido naturalista bávaro Karl von Martius (1794-1868), cientista de ilibada importância que, no entanto, era novato no que dizia respeito à história em geral e àquela do Brasil em particular —, o qual advogou a tese de que o país se definia por sua mistura, sem igual, de gentes e povos. Escrevia ele: “Devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento das três raças humanas, que nesse país são colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga, e que devem servir-se mutuamente de meio e fi m”. Utilizando a metáfora de um caudaloso rio, correspondente à herança portuguesa que acabaria por “limpar” e “absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica”, representava o país a partir da singularidade e dimensão da mestiçagem de povos por aqui existentes.

A essa altura, porém, e depois de tantos séculos de vigência de um sistema violento como o escravocrata — que pressupunha a propriedade de uma pessoa por outra e criava uma forte hierarquia entre brancos que detinham o mando e negros que deveriam obedecer mas não raro se revoltavam —, era no mínimo complicado simplesmente exaltar a harmonia. Além do mais, indígenas continuavam sendo dizimados no litoral e no interior do país, suas terras seguiam sendo invadidas e suas culturas, desrespeitadas.

Nem por isso o Império abriu mão de selecionar um projeto que fazia as pazes com o passado e com o presente do Brasil, e que, em lugar de introduzir dados históricos, que mostrariam a crueldade do cotidiano vigente no país, apresentou uma nação cuja “felicidade” era medida pela capacidade de vincular diversas nações e culturas, acomodando-as de forma unívoca. Um texto, enfim, que apelava para a “natureza” edênica e tropical do Brasil, essa sim acima de qualquer suspeita ou contestação.

Martius, que em 1832 havia publicado um ensaio chamado “O estado do direito entre os autóctones no Brasil”, condenando os indígenas ao desaparecimento, agora optava por definir o país por meio da redentora metáfora fluvial. Três longos rios resumiriam a nação: um grande e caudaloso, formado pelas populações brancas; outro um pouco menor, nutrido pelos indígenas; e ainda outro, mais diminuto, alimentado pelos negros. Na ânsia de escrever seu projeto, o naturalista parece não ter tido tempo (ou interesse), porém, de se informar, de maneira equânime, sobre a história dos três povos que originavam a jovem nação autônoma. O item que tratava do “rio branco” era o mais completo, alvissareiro e volumoso. Os demais pareciam quase figurativos, demonstrando visível falta de conhecimento. “Falta” esta que na verdade era “excesso”, pois dava conta do que interessava para valer: contar uma história pátria — a europeia — e mostrar como ela se imporia, “naturalmente” e sem conflitos, às demais.

Ali estavam, pois, os três povos formadores do Brasil; todos juntos, mas (também) diferentes e separados. Mistura não era (e nunca foi) sinônimo de igualdade. Aliás, por meio dela confirmava-se uma hierarquia “inquestionável” e que, nesse exemplo, e conforme revelava o artigo, apoiava-se num passado imemorial e perdido no tempo. Essa era, ainda, uma ótima maneira de “inventar” uma história não só particular (uma monarquia tropical e mestiçada) como também muito otimista: a água que corria representava o futuro desse país constituído por um grande rio caudaloso no qual desaguavam os demais pequenos afluentes.

É possível dizer que começava a ganhar força então a ladainha das três raças formadoras da nação, que continuaria encontrando ampla ressonância no Brasil, pelo tempo afora. Vários autores repetiriam, com pequenas variações, o mesmo argumento. Sílvio Romero em Introdução à história da literatura brasileira (1882), Oliveira Viana em Raça e assimilação (1932), Artur Ramos em Os horizontes místicos do negro da Bahia (1932). De forma, dessa vez, irônica e crítica, mas mostrando a regularidade da narrativa, o modernista Mário de Andrade em Macunaíma (1928) retoma a fórmula na conhecida passagem alegórica em que o herói e seus dois irmãos resolvem se banhar na água encantada que se acumulara na pegada do “pezão do Sumé”, e saem dela cada qual com uma cor: um branco, um negro e outro da “cor do bronze novo”.

Foi sobretudo Gilberto Freyre quem tratou, ele sim, de consolidar e difundir esse tipo de interpretação, não só em seu clássico Casa-grande & senzala (1933) como, anos depois, em livros sobre o lusotropicalismo, caso de O mundo que o português criou (1940). Assim, se foi o antropólogo Artur Ramos (1903-49) quem cunhou o termo “democracia racial” e o endereçou ao Brasil, coube a Freyre o papel de grande divulgador da expressão, até mesmo para além de nossas fronteiras.

A tese de Freyre teve tal ressonância internacional que acabou batendo nas portas da Unesco. No final dos anos 1940, a instituição ainda andava sob o impacto da abertura dos campos de concentração nazistas, que levaram à descoberta das práticas de genocídio e da violência estatal, bem como alertaram sobre as consequências do racismo durante a Segunda Guerra Mundial. Também tinha ciência da situação do apartheid na África do Sul e da política de ódios que se formava no contexto da Guerra Fria. Animada, então, pelas teses do antropólogo de Recife, e tendo a certeza de que o Brasil representava um exemplo de harmonia racial para o mundo, a organização financiou, na década de 1950, uma grande pesquisa com a intenção de comprovar a inexistência de discriminação racial e étnica no país. Porém, o resultado foi, no mínimo, paradoxal. Enquanto as investigações realizadas pelos norte-americanos Donald Pierson (1900-95) e Charles Wagley (1913-91), na Região Nordeste, buscavam corroborar os pressupostos de Freyre, já o grupo de São Paulo, liderado por Florestan Fernandes (1920-95), concluía exatamente o oposto. Para o sociólogo paulista, o maior legado do sistema escravocrata, aqui vigente por mais de três séculos, não seria uma mestiçagem a unificar a nação, mas antes a consolidação de uma profunda e entranhada desigualdade social.

Nas palavras de Florestan Fernandes, o brasileiro teria “uma espécie de preconceito reativo: o preconceito contra o preconceito”, uma vez que preferia negar a reconhecer e atuar. Foi também Fernandes quem chamou a já velhusca história das três raças de “mito da democracia racial”, revalidando, ao mesmo tempo, a força de tal narrativa e as falácias de sua formulação. O golpe de misericórdia foi dado pelo ativismo negro, que, a partir do fim da década de 1970, mostrou a perversão desse tipo de discurso oficial, o qual tinha a potencialidade de driblar a força dos movimentos sociais que lutavam por real igualdade e inclusão. Mas, apesar dos esforços, mais de um século depois a imagem da mistura das águas continuava a ter impacto no Brasil e soava como realidade!

Como se vê, a história que Von Martius contou, em inícios do século XIX, tinha jeito e forma de mito; um mito nacional. Tomava problemas fundamentais do país, como a vigência do sistema escravocrata por todo o território, e os rearranjava de maneira harmoniosa e positiva. Por isso mesmo, o texto não continha datas, locais precisos ou contextos estabelecidos; ele precisava fazer sentido para além do momento de sua elaboração, sendo que a ausência de uma geografia explícita e, sobretudo, de uma temporalidade definida lhe conferia a imortalidade e a confiança de que o passado fora grandioso, e ensejava um futuro ainda mais promissor. Era o mito dos “tempos de outrora”, que sustentava as certezas do presente e garantia a vigência de uma mesma ordem e hierarquia, como se fossem eternas porque dadas pela natureza.

Ademais, uma certa indeterminação retórica permitiu que o texto do concurso ganhasse uma recepção prolongada, levando a história a virar mito e o oposto também, ou seja, o mito social a se transformar em história. Com uma especificidade: mitos não se comportam necessariamente como “mentiras”. Como mostra o etnólogo Claude Lévi-Strauss, por tratarem de contradições profundas das sociedades a que dizem respeito, eles permanecem vigentes para além dos argumentos racionais ou dos dados e documentos que buscam negá-lo. Afinal, muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade.

Durante o século XIX, o IHGB cumpriria seu papel, dando prosseguimento ao projeto de Martius. Altamente financiado pelo Império, o centro tratou de divulgar uma história grandiloquente e patriótica, mesmo que, por vezes, tivesse que sacrificar a pesquisa mais descomprometida para eleger textos que funcionavam como propaganda de Estado. A metáfora das três raças definiria, por um largo tempo, a essência e a plataforma do que significava fazer uma história do e sobre o Brasil. Ou melhor, um certo Brasil, uma determinada utopia, com a qual convivemos até os dias de hoje como se fosse realidade.

Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças, estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano condicionado por grandes poderes centralizados nas fi guras dos senhores de terra em provas derradeiras de um passado aristocrático.

História e memória são formas de entendimento do passado que nem sempre se confundem ou mesmo se complementam. A história não só carrega consigo algumas lacunas e incompreensões frente ao passado, como se comporta, muitas vezes, qual campo de embates, de desavenças e disputas. Por isso ela é, por definição, inconclusa. Já a memória traz invariavelmente para o centro da análise uma dimensão subjetiva ao traduzir o passado na primeira pessoa e a ele devotar uma determinada lembrança: daquele que a produz. Assim, ela recupera o “presente do passado” e faz com que o passado vire também presente.

Veremos que não há como dominar totalmente o passado, mas o que pretendemos fazer aqui neste livro é “lembrar”. Essa é a melhor maneira de repensar o presente e não “esquecer” de projetar o futuro.

Toda nação constrói para si alguns mitos básicos, que têm, em seu conjunto, a capacidade de produzir nos cidadãos o sentimento de pertencer a uma comunidade única, a qual permaneceria para sempre inalterada — “deitad[a] eternamente em berço esplêndido”, conforme verseja o nosso Hino Nacional. Histórias de claro impacto e importância em seu contexto ganham outra dimensão quando escapam do momento que as viu nascer e passam a fazer parte da lógica do senso comum ou se transformam em retórica nacional.

O certo é que, quando viram mitologia, esses discursos perdem sua capacidade crítica para serem lidos apenas de uma maneira e a partir de um só pressuposto; aquele que exalta a criação de um passado glorioso e de uma história única, somente enaltecedora. Além da burla da mestiçagem racial, cujo exemplo exploramos até aqui, tal espécie de utopia de Estado costuma imaginar uma idílica sociedade patriarcal, com sua hierarquia tão enraizada quanto virtuosa. É uma forma de narrativa que não se baseia obrigatoriamente em fatos, uma vez que seleciona, em primeiro lugar, uma mensagem final e só depois arruma um bom argumento para justificá-la.

A bem da verdade, não era apenas Von Martius que realizava esse tipo de narrativa. Tratava-se de um modelo consagrado de fazer história em inícios do XIX, quando a preocupação maior se dirigia ao engrandecimento positivo do passado, e não tanto ao cotejo e verificação de documentos. Aliás, essa era a função do historiador: coligir bons exemplos no passado e assim dignificar o presente. Esse é também o conceito de “romance real”, proposto por Paul Veyne para explicar o trabalho do historiador como uma espécie de orquestrador de eventos, no sentido de que é ele quem os organiza, seleciona e lhes confere sentido.

De uma forma ou de outra, a narrativa histórica produz sempre batalhas pelo monopólio da verdade. No entanto, ela se torna particularmente fértil em períodos de mudança de governo ou regime, como é o caso do texto do naturalista alemão, mas também de momentos de crise econômica. Nessas últimas circunstâncias, quando em geral ocorre o empobrecimento de uma parcela significativa da nação, a desigualdade aumenta e a polarização política divide a população — premida por sentimentos de medo, insegurança e ressentimento —, não são poucas as vezes em que se vai em busca de explicações longínquas para problemas que se encontram bem perto. É nesses períodos, ainda, que as pessoas se tornam mais vulneráveis e propensas a acreditar que seus direitos foram vilipendiados, seus empregos, roubados e, por fi m, sua própria história lhes foi subtraída.

Tais momentos costumam desaguar em disputas pela melhor versão do passado, que vira um tipo de jogo de cartas marcadas, condicionado pelas questões do presente. Nessa hora, a história se transforma numa sorte de justificativa, enredo e canto de torcida organizada.

A construção de uma história oficial não é, portanto, um recurso inócuo ou sem importância; tem um papel estratégico nas políticas de Estado, engrandecendo certos eventos e suavizando problemas que a nação vivenciou no passado mas prefere esquecer, e cujas raízes ainda encontram repercussão no tempo presente. O procedimento acaba, igualmente, por autorizar apenas uma interpretação, quando se destacam determinadas atuações e formas de sociabilidade, obliterando-se outras. O objetivo é, como bem mostrou o exemplo de Von Martius, fazer o armistício com o passado: criar um passado mítico, perdido no tempo, repleto de harmonia, mas também construído na base da naturalização de estruturas de mando e obediência.

Esse tipo de modelo, que tem muito de imaginário e projetivo, não raro funciona como argamassa para as várias “teorias do senso comum”. E, por aqui, a história do dia a dia costuma sustentar-se a partir de quatro pressupostos tão básicos como falaciosos. O primeiro deles leva a supor que este seja, unicamente, um país harmônico e sem conflitos. O segundo, que o brasileiro seria avesso a qualquer forma de hierarquia, respondendo às adversidades sempre com uma grande informalidade e igualdade. O terceiro, que somos uma democracia plena, na qual inexistiriam ódios raciais, de religião e de gênero. O quarto, que nossa natureza seria tão especial, que nos asseguraria viver num paraíso. Por sinal, até segunda ordem, Deus (também) é brasileiro.

Longe de constituir narrativas aferíveis, esses são modelos que dizem respeito a agendas tão profundas como ambíguas, e que, por isso mesmo, funcionam na base da falta de contestação e do silêncio. E, quando persiste o silêncio, é porque existe, com certeza, excesso de barulho. Barulho e incômodo social.

O problema é que essa espécie de história, muito pautada em mitos nacionais, de tão enraizada costuma resistir à danada da realidade. Como é possível definir o Brasil como um território pacífico se tivemos por séculos em nosso solo escravizados e escravizadas, admitindo-se, durante mais de trezentos anos, um sistema que supõe a posse de uma pessoa por outra? Lembremos que o Brasil foi o último país a abolir tal forma de trabalho forçado nas Américas — depois de Estados Unidos, Porto Rico e Cuba —, tendo recebido 5,85 milhões de africanos num total de 12,52 milhões de pessoas embarcadas e que foram retiradas compulsoriamente de seu continente para essa imensa diáspora atlântica; a maior da modernidade. Se considerarmos apenas os desembarca dos e sobreviventes, o total, segundo o site Slave Voyages, foi de 10,7 milhões, dos quais 4,8 milhões chegaram ao Brasil. Por isso mesmo, em lugar do idílio, escravizados conheceram por aqui toda forma de violência, e de parte a parte: enquanto os senhores mantinham o controle na base da força e da sevícia, os cativos e cativas respondiam à violência com todo tipo de rebelião.

Outra pergunta: como é possível representar o país a partir da ideia de uma suposta coesão, partilhada por todos os cidadãos, quando ainda somos campeões no quesito desigualdade social, racial e de gênero, o que é comprovado por pesquisas que mostram a existência de práticas cotidianas de discriminação contra mulheres, indígenas, negros e negras, bem como contra pessoas LGBTTQ: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Queers?

Também vale a pena indagar por que, vira e mexe, sobretudo nos momentos de crise política, caímos no sonho da “concórdia” do Regime Militar, como se esse período tivesse sido encantado e carregasse consigo a solução mágica para nossos problemas mais estruturais.

E por que será que destacamos sempre a falta de hierarquia de nossas relações sociais quando nosso passado e nosso presente a desmentem? Não é possível passar impunemente pelo fato de termos sido uma colônia de exploração e de nosso território ter sido majoritariamente dividido em grandes propriedades monocultoras, que concentravam no senhor de terra o poder de mando e de violência, bem como o monopólio econômico e político. Por sinal, a despeito de o Brasil ser, cada vez mais, um país urbano, aqui persiste teimosamente uma mentalidade e lógica dos latifúndios, cujos senhores viraram os coronéis da Primeira República, parte dos quais ainda se encastelam em seus estados, como caciques políticos e eleitorais.

Diante desses grandes poderes personalizados e localizados, acabamos por criar práticas patrimonialistas, que implicam o uso do Estado para a resolução de questões privadas. Por outro lado, se durante os últimos trinta anos forjamos instituições mais consolidadas, ainda hoje elas dão sinais de fraqueza quando balançam em função dos contextos políticos.

Isso sem contar a prática da corrupção, que, como veremos, e a despeito das várias formas e nomes que recebeu, já era recorrente na época colonial e imperial e virou erva daninha na República, consumindo divisas e direitos dos brasileiros.

Dizem que perguntar é uma forma de resistir. Pois penso que uma história crítica é aquela que sabe “desnaturalizar” o que parece dado pela biologia e que se apresenta, por consequência, como imutável. Não existe nada em nosso sangue ou no DNA dos brasileiros que indique serem todos esses elementos imunes à nossa ação humana e cidadã.

Também não é boa ideia fazer o oposto: relegar ao passado e ao “outro”, que viveu antes de nós, tudo que nos incomoda no presente. Racista é “alguém outro” (não eu mesmo), o patrimonialismo é uma herança da nossa história pregressa, a desigualdade foi consequência da escravidão, e ponto-fi nal. O certo é que é impossível jogar num tempo distante e inatingível todas as nossas mazelas atuais. Desde o período colonial, passando pelo Império e chegando à República, temos praticado uma cidadania incompleta e falha, marcada por políticas de mandonismo, muito patrimonialismo, várias formas de racismo, sexismo, discriminação e violência.

A despeito de vivenciarmos, desde 1988, e com a promulgação da Constituição Cidadã, o mais extenso período de vigência de um estado de direito e de uma democracia no Brasil republicano, não logramos diminuir nossa desigualdade, combater o racismo institucional e estrutural contra negros e indígenas, erradicar as práticas de violência de gênero. Nosso presente anda, mesmo, cheio de passado, e a história não serve como prêmio de consolação. No entanto, é importante enfrentar o tempo presente, até porque não é de hoje que voltamos ao passado acompanhados das perguntas que forjamos na nossa atualidade.

Portanto, a quem não entende por que vivemos, nos dias de hoje, um período tão intolerante e violento; a quem recebe com surpresa tantas manifestações autoritárias ou a divulgação, sem peias, de discursos que desfazem abertamente de um catálogo de direitos civis que parecia consolidado; a quem assiste da arquibancada ao crescimento de uma política de ódios e que transforma adversários em inimigos, convido para uma viagem rumo à nossa própria história, nosso passado e nosso presente.

Atualmente, uma onda conservadora atinge países como Hungria, Polônia, Estados Unidos, Rússia, Itália, Israel, mudando o cenário internacional e trazendo consigo novas batalhas pela “verdadeira” história. A estratégia não é inédita. Na antiga URSS, o jornal do Partido Comunista, o Pravda, termo cuja tradução é “verdade”, não titubeou: defendeu o autoritarismo como a única narrativa possível. Até mesmo países de reconhecida tradição liberal costumam patinar quando precisam “lembrar” de um passado que preferem “esquecer”. Esse é o caso do regime de Vichy, na França (1940-44), onde as elites locais colaboraram com o nazismo, ou da Espanha, que não consegue acertar suas contas com o período violento da Guerra Civil (1936-39), o qual dividiu e ainda divide sua população.

Eliminar “lugares de memória”, na bela definição de Pierre Nora, é, assim, prática comum e generalizada. Todavia, esse tipo de atitude é ainda mais recorrente no interior de sociedades em que a história participa diretamente da luta política, vira uma forma de nacionalismo, e passa a buscar amenizar ou simplesmente anular acontecimentos traumáticos do passado, os quais é preferível tentar esquecer.

No Brasil também andamos “surfando” numa maré conservadora. Afinal, uma certa demonização das questões de gênero, o ataque às minorias sociais, a descrença nas instituições e partidos, a conformação de dualidades como “nós” (os justos) e “eles” (os corruptos), a investida contra intelectuais e imprensa, a justificativa da ordem e da violência, seja ela produto do regime que for, o ataque à Constituição e, finalmente, o apego a uma história mítica, fazem parte de uma narrativa de mais longo curso, a qual, no entanto, tem grande impacto no nosso contexto nacional e contemporâneo.

O objetivo deste pequeno livro é reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil, que têm afl orado no tempo presente mas que, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos. Os mitos que mencionei até aqui funcionam como exemplo; porta de entrada para entender a formação de ideias e práticas autoritárias no Brasil. Auxiliam também a pensar como a história e certas mitologias nacionais são acionadas, muitas vezes, qual armas para uma batalha. Nesses casos, infelizmente, elas acabam por se transformar em mera propaganda ou muleta para receitas prontas e fáceis de realizar.

O mito da democracia racial, de forte impacto no país, é bom pretexto, portanto, para entender como se formam e consolidam práticas e ideias autoritárias no Brasil. Mas existem outras janelas importantes. O patriarcalismo, o mandonismo, a violência, a desigualdade, o patrimonialismo, a intolerância social, são elementos teimosamente presentes em nossa história pregressa e que encontram grande ressonância na atualidade. E esse é o propósito deste texto: criar pontes, não totalmente articuladas e muito menos evolutivas, entre o passado e o presente.

História não é bula de remédio nem produz efeitos rápidos de curta ou longa duração. Ajuda, porém, a tirar o véu do espanto e a produzir uma discussão mais crítica sobre nosso passado, nosso presente e sonho de futuro.


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