Em Serotonina, Michel Houellebecq constrói um personagem obsessivo e autodestrutivo, Florent-Claude Labrouste, de 46 anos, que toma antidepressivos que o deixam impotente e nauseado. Sua jornada começa na Espanha, passando por Paris e Normandia, enquanto enfrenta uma vida em colapso: sua relação é desfeita ao descobrir vídeos pornográficos de sua companheira, e ele abandona o trabalho, passando a viver em um hotel. Florent-Claude revisita antigos relacionamentos fracassados, enquanto a França e a União Europeia afundam ao seu redor. Em meio a esse caos, ele se torna um observador ácido e lúcido da sociedade contemporânea, refletindo as angústias e frustrações da vida moderna.
Editora: Alfaguara; 1ª edição (24 julho 2019); Páginas: 240 páginas; ISBN-10: 855652088X; ISBN-13: 978-8556520883; ASIN: B07QL9YG37
Biografia do autor: Michel Houellebecq, nascido Michel Thomas em 1956 na Ilha da Reunião, é um dos autores mais influentes e controversos da literatura francesa contemporânea. Poeta, ensaísta e romancista, suas obras exploram temas como a miséria emocional, dilemas sociais e a desintegração da vida moderna, frequentemente abordando clonagem, religião e questões existenciais. Vencedor do prestigiado Prêmio Goncourt em 2010 com O Mapa e o Território, Houellebecq é conhecido por títulos provocativos como Partículas Elementares, Plataforma* e Submissão. Sua primeira obra publicada foi o ensaio H.P. Lovecraft: Contra o Mundo, Contra a Vida.
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Serotonina
É um comprimido pequeno, branco, oval, divisível.
Eu acordo por volta das cinco, às vezes seis da manhã, minha necessidade está no auge, é o momento mais doloroso do dia. Meu primeiro gesto é ligar a cafeteira elétrica; na véspera, tinha enchido o reservatório de água e o filtro, de café moído (geralmente Malongo, continuo bastante exigente com o café). Só acendo um cigarro depois de tomar o primeiro gole; é uma obrigação que me imponho, uma vitória cotidiana que se transformou na minha principal fonte de orgulho (mas tenho que confessar que as cafeteiras elétricas são muito rápidas). O alívio que a primeira baforada me dá é imediato, de uma violência atordoante. A nicotina é uma droga perfeita, uma droga simples e dura, que não proporciona qualquer alegria e se define totalmente pela falta e pela interrupção dessa falta.
Alguns minutos mais tarde, depois de dois ou três cigarros, tomo um comprimido de Captorix com um quarto de copo de água mineral, geralmente Volvic.
Tenho quarenta e seis anos, me chamo Florent-Claude Labrouste e detesto meu nome, acho que vem de dois membros da minha família que meu pai e minha mãe, cada um favorecendo seu lado, queriam homenagear; e isso é ainda mais lamentável porque, quanto ao resto, não tenho mais nada a criticar nos meus pais, eles foram excelentes em todos os sentidos, fizeram todo o possível para me dar as armas necessárias na luta pela vida, e se afinal fracassei, se agora a minha vida termina com tristeza e sofrimento, não posso culpá-los por isso, mas sim uma fatídica série de circunstâncias das quais voltarei a falar — que, aliás, constituem na verdade o objeto deste livro —, não tenho absolutamente nada a reclamar dos meus pais além desse minúsculo, desse desagradável porém minúsculo episódio do nome, não só acho ridícula a combinação Florent-Claude, como cada um de seus elementos me desagrada muito, em suma considero meu nome um erro garrafal. Florent é suave demais, muito parecido com o feminino Florence, num sentido quase andrógino. Não combina em absoluto com meu rosto de traços enérgicos, agressivos em certos ângulos, que muitas vezes foi considerado viril (pelo menos por certas mulheres) e nunca, mas nunca mesmo, um rosto de pederasta botticelliano. Quanto a Claude nem se fala, esse nome me faz pensar de imediato nas Claudettes, e quando o ouço me vem instantaneamente à memória a imagem horrenda de um vídeo vintage de Claude François passando em looping numa noitada de veados velhos.
Não é tão difícil trocar de nome, bem, não estou falando do ponto de vista administrativo, porque do ponto de vista administrativo quase nada é possível, o objetivo de qualquer administração é reduzir ao máximo, quando não pura e simplesmente destruir, as nossas possibilidades de vida, do ponto de vista administrativo o bom administrado é o administrado morto, estou falando apenas do ponto de vista do uso: basta você se apresentar com um nome novo e depois de alguns meses, ou até semanas, todo mundo se acostuma, não passa pela cabeça de ninguém a possibilidade de você ter se chamado de outra forma no passado. Esse procedimento seria ainda mais simples no meu caso, porque meu segundo nome, Pierre, corresponde perfeitamente à imagem de firmeza e virilidade que eu queria transmitir ao mundo. Mas não fiz nada, continuei atendendo por esse nome repulsivo, Florent-Claude, o máximo que consegui com algumas mulheres (com Camille e Kate, especificamente, mas voltarei ao assunto mais tarde) foi que se contentassem com Florent, já com a sociedade em geral não consegui nada em relação a isso, como aliás em relação a quase tudo, sempre me deixei levar pelas circunstâncias, demonstrei cabalmente minha incapacidade de assumir as rédeas da minha própria vida, a virilidade que parecia emanar do meu rosto de ângulos bem definidos, dos meus traços cinzelados, não passava de um engodo, pura e simplesmente uma fraude, pela qual aliás eu não tinha qualquer responsabilidade, Deus havia decidido por mim, mas eu era, e na verdade sempre tinha sido, um maricas inconsistente, já estava com quarenta e seis anos, nunca fora capaz de controlar minha própria vida, enfim, era provável que a segunda parte da minha existência fosse apenas, tal qual a primeira, um flácido e doloroso desmoronamento.
Os primeiros antidepressivos conhecidos (Seroplex, Prozac) aumentavam os níveis de serotonina no sangue inibindo sua recaptação pelos neurônios 5-ht1 . A descoberta, no começo de 2017, do Capton D-L abriria caminho para uma nova geração de antidepressivos, com um mecanismo de ação bem mais simples, já que se tratava de estimular a liberação por exocitose da serotonina produzida no nível da mucosa gastrointestinal. No fim desse ano, o Capton D-L começou a ser comercializado com o nome Captorix. E de imediato demonstrou uma eficácia surpreendente, que permitia aos pacientes participarem com uma facilidade inédita dos ritos mais importantes de uma vida normal numa sociedade evoluída (higiene, vida social limitada à boa vizinhança, procedimentos burocráticos simples) sem estimular em nada, ao contrário dos antidepressivos da geração anterior, as tendências suicidas ou de automutilação.
Os efeitos secundários indesejáveis do Captorix observados com mais frequência eram náuseas, desaparecimento da libido, impotência.
Eu nunca tinha sentido náuseas.
A história começa na Espanha, na província de Almería, exatamente cinco quilômetros ao norte de El Alquián, na estrada N-340. Estávamos no começo do verão, com certeza em meados de julho, mais para o final da década de 2010; acho que Emmanuel Macron era presidente da República. O dia estava bonito e muito quente, como sempre acontece no sul da Espanha nessa época. Era comecinho da tarde, e minha mercedes G 350 TD 4×4 estava estacionada no posto Repsol. Eu tinha acabado de encher o tanque de diesel e estava bebendo lentamente uma coca-cola zero, encostado na carroceria, sentindo uma melancolia crescente ante a ideia de que Yuzu iria chegar no dia seguinte, quando vi um fusca parar diante do calibrador.
Do carro desceram duas garotas de uns vinte anos, mesmo de longe dava para ver que eram lindas, nos últimos tempos eu havia esquecido até que ponto as garotas podem ser lindas, isso me impressionou, parecia uma espécie de cena teatral exagerada, artificial. O ar estava tão quente que parecia ganhar vida por uma breve vibração, assim como o asfalto do estacionamento; as condições exatas para o surgimento de uma miragem. Mas as garotas eram reais, e fui tomado por um leve pânico quando uma delas veio na minha direção. Tinha cabelo castanho-claro, comprido e levemente ondulado, e na testa usava uma faixa de couro fininha decorada com motivos geométricos coloridos. Um top de algodão branco cobria mais ou menos seus seios, e a saia curta, esvoaçante, também de algodão branco, parecia prestes a se levantar com qualquer baforada de ar — mas não havia, esteja dito, nenhuma baforada de ar, Deus é clemente e misericordioso.
A garota estava tranquila, sorridente, e não parecia ter medo — o medo, digamos claramente, vinha de mim. Havia bondade e felicidade em seu olhar — logo entendi que ela só tivera experiências felizes na vida, com os animais, com os homens, até com os chefes. Por que veio falar comigo, tão jovem e desejável, naquela tarde de verão? Ela e a amiga queriam conferir a pressão de seus pneus (ou melhor, dos pneus do carro). Trata-se de uma iniciativa prudente, recomendada pelos órgãos de segurança rodoviária em quase todos os países civilizados e até mesmo em alguns outros. Portanto, aquela garota não era apenas desejável e gostosa, também era prudente e sensata, e minha admiração por ela aumentava a cada segundo. Podia negar ajuda? Claro que não.
Sua amiga se adequava mais aos padrões que se esperava de uma espanhola — cabelo de um preto intenso, olhos castanhos bem escuros, pele trigueira. Tinha uma aparência menos alternativa, quer dizer, também parecia uma garota bem legal, mas menos alternativa, com um arzinho meio sacana, uma argola de prata na narina esquerda, o top que cobria seus peitos era multicolorido, de um grafismo agressivo, cheio de frases que podiam ser consideradas punk ou rock, esqueci a diferença entre os dois, para simplificar digamos que eram frases punk rock. Ao contrário da amiga, ela estava de short, e isso era pior ainda, não sei como fabricam shorts tão apertadinhos, era impossível não ficar hipnotizado por aquela bunda. Era impossível, eu não consegui evitar, mas quase em seguida voltei a me concentrar na situação. A primeira coisa a verificar, expliquei, era a pressão adequada para o modelo de carro: geralmente estava indicada numa plaquinha metálica soldada na parte de baixo da porta dianteira esquerda.
A placa estava de fato no lugar mencionado, e percebi que aumentava a consideração das garotas por minhas habilidades viris. Como o carro delas não estava muito cheio — surpreendentemente tinham pouca bagagem, duas bolsas leves que deviam conter calcinhas fio dental e os produtos de beleza usuais —, 2,2 quilobars de pressão eram suficientes.
Faltava realizar a operação de calibragem propriamente dita. A pressão do pneu dianteiro esquerdo, como logo constatei, era de 1,0 quilobar. Por isso me dirigi às garotas em tom de gravidade, até um pouco severamente, porque minha idade me autorizava: vocês fizeram bem em me perguntar, foi bem a tempo, porque, sem saber, estavam em um verdadeiro perigo; os pneus semivazios podiam causar perda de aderência, um desvio na trajetória, mais cedo ou mais tarde um acidente era quase certo. Elas reagiram com comoção e inocência, a de cabelo castanho pôs a mão em meu antebraço.
É preciso reconhecer que esses equipamentos são chatos de usar, você tem que vigiar os assobios do mecanismo e muitas vezes tatear antes de enfiar o bico da mangueira na válvula, na verdade transar é bem mais fácil, mais intuitivo, tenho certeza de que elas concordariam comigo, mas eu não sabia como abordar o assunto, por fim enchi o pneu dianteiro esquerdo e depois o de trás, as duas estavam de cócoras ao meu lado e seguiam meus gestos com grande atenção, balbuciando em sua língua Chulo e Claro que sí, e em seguida passei para elas a responsabilidade, intimando-as a encher os outros dois pneus sob minha paternal supervisão.
A morena, mais impulsiva como logo constatei, lançou-se de imediato no pneu dianteiro direito, e aí é que a coisa ficou difícil, quando se ajoelhou, com as nádegas de curvatura perfeita moldadas pelo shortinho se mexendo enquanto ela tentava controlar o bico da mangueira, creio que a outra se apiedou do meu constrangimento, ela até passou rapidamente um braço pela minha cintura, um braço fraterno.
Chegou a hora, afinal, do pneu traseiro direito, do qual se encarregou a garota de cabelo castanho. A tensão erótica era menos intensa, uma suave tensão amorosa se sobrepunha a ela, porque nós três sabíamos que aquele era o último pneu e depois as duas não teriam outra saída a não ser seguir viagem.
No entanto, ficaram alguns minutos comigo, entrelaçando agradecimentos e gestos graciosos, e aquela atitude não era totalmente teórica, pelo menos é o que penso agora, vários anos depois, quando resolvo lembrar que no passado tive uma vida erótica. Perguntaram minha nacionalidade — francesa, acho que ainda não mencionei —, se eu achava aquela região interessante, se, particularmente, conhecia lugares legais. Em certo sentido, sim, conhecia um bar de tapas, onde também serviam um farto café da manhã, bem em frente a minha casa. Também havia uma boate, um pouco mais distante, que podia ser considerada, sendo generoso, legal. E havia a minha casa, eu poderia hospedá-las, pelo menos por uma noite, e tive a sensação (mas sem dúvida estou criando fabulações em retrospecto) de que teria sido algo realmente legal. Mas não disse nada em relação a tudo isso, optei pela síntese, explicando em poucas palavras que a região era agradável (o que de fato era verdade) e que eu estava muito contente lá (o que era mentira, e a iminente chegada de Yuzu não ia melhorar as coisas).
Por fim elas foram embora acenando pela janela, o fusca manobrou no estacionamento e depois se dirigiu para o acesso à rodovia.
Nesse momento poderiam ter acontecido várias coisas. Se estivéssemos numa comédia romântica, após alguns segundos de hesitação dramática (é importante a atuação neste momento, acho que Kev Adams poderia fazer bem o papel), eu pularia para o volante da minha mercedes 4×4, alcançaria rapidamente o fusca na estrada e o ultrapassaria agitando os braços de uma forma meio boba (como fazem os atores nas comédias românticas), então o fusca pararia no acostamento (na verdade, numa comédia romântica clássica só haveria uma garota, certamente a de cabelo castanho) e se desenrolariam diversos e emocionantes atos humanos, entre as lufadas de vento dos caminhões peso-pesados que passavam a poucos metros, quase tocando em nós. Para esta cena o roteirista teria que trabalhar bem o texto.
Se estivéssemos num filme pornô, a continuação seria ainda mais previsível, porém com menor importância do diálogo. Todos os homens desejam garotas novinhas, pró-ecologia e adeptas de sexo a três; enfim, nem todos os homens, mas, de toda forma, eu sim.
Mas estávamos no mundo real, e por isso voltei para casa. Tive uma ereção, algo nada surpreendente considerando como havia sido a minha tarde. Tratei-a com os meios habituais.
Aquelas garotas, especialmente a de cabelo castanho, poderiam ter dado um sentido à minha estadia na Espanha, e a conclusão decepcionante e banal daquela tarde nada mais fez do que destacar cruelmente uma evidência: eu não tinha motivo algum para estar lá. Havia comprado aquele apartamento com Camille, e para ela. Foi na época em que tínhamos projetos a dois, uma ancoragem familiar, um romântico moinho romântico perdido em Creuse ou sei lá o quê, acho que a única coisa que não planejamos foi a produção de filhos, e mesmo assim, num dado momento, faltou pouco. Aquela foi a minha primeira aquisição imobiliária, e até hoje a única.
Ela tinha gostado do lugar desde o início. Era uma pequena colônia de nudismo, tranquila, distante dos enormes complexos turísticos espalhados da Andaluzia até o Levante espanhol, e cuja população se compunha principalmente de aposentados do norte da Europa: alemães, holandeses, em menor número escandinavos, e, naturalmente, os inevitáveis ingleses, embora curiosamente não houvesse belgas, apesar de tudo naquela colônia (a arquitetura dos pavilhões, a distribuição do comércio, o mobiliário dos bares) exigir a presença deles, enfim, era de fato um lugar para belgas. A maioria dos moradores passara a vida profissional atuando na área de educação, ou no funcionalismo em sentido amplo, entre os quadros médios. Agora estavam terminando a vida de maneira aprazível, nunca eram os últimos na hora do aperitivo e desfilavam cheios de bonomia do bar até a praia e da praia até o bar, com suas bundas caídas, seus seios redundantes e seus paus inativos. Não se metiam em confusão, não provocavam o menor atrito com os vizinhos, estendiam com civismo uma toalha nas cadeiras de plástico antes de sentar no No problemo e se entregar, com uma atenção exagerada, à análise de um menu que no entanto era bastante breve (no interior da colônia de nudismo, uma cortesia esperada era evitar o contato, com o uso de uma toalha, entre o mobiliário de uso coletivo e as partes íntimas, possivelmente molhadas, dos consumidores).
Outra clientela, menos numerosa porém mais ativa, era formada pelos hippies espanhóis (adequadamente representados, como entendi com pesar, por aquelas duas garotas que tinham me pedido ajuda para calibrar os pneus). Um breve percurso pela história recente da Espanha pode ser útil aqui. Depois da morte do general Franco, em 1975, o país (mais exatamente, a juventude espanhola) se viu diante de duas tendências contraditórias. A primeira, que vinha direto dos anos 1960, dava grande valor ao amor livre, ao nudismo, à emancipação dos trabalhadores e esse tipo de coisas. A segunda, que acabaria se impondo nos anos 1980, valorizava, pelo contrário, a competição, o pornô hard, o cinismo e as stock options, enfim, estou simplificando mas é preciso simplificar porque senão não chegamos a lugar nenhum. Os representantes da primeira tendência, cuja derrota já estava prevista a priori, foram recuando pouco a pouco para reservas naturais como aquela modesta colônia nudista onde eu tinha comprado um apartamento. Por outro lado, será que afinal essa derrota prevista ocorreu mesmo? Alguns fenômenos muito posteriores à morte de Franco, como o movimento dos indignados, por exemplo, podiam nos levar a pensar o contrário. Assim como, mais recentemente, a presença das duas jovens no posto Repsol de El Alquián naquela tarde perturbadora e funesta — será que o feminino de indignado é indignada? Eu tinha conhecido, então, duas adoráveis indignadas? Nunca vou saber, não pude ligar minha vida à delas, e no entanto podia ter proposto que as duas viessem conhecer a minha colônia nudista, lá estariam em seu ambiente natural, talvez a morena fosse embora, mas eu ficaria satisfeito com a de cabelo castanho, enfim, as promessas de felicidade eram um pouco vagas na minha idade, mas durante várias noites depois daquele encontro sonhei que a garota de cabelo castanho batia na minha porta. Tinha voltado para me buscar, minha perambulação por este mundo havia chegado ao fim, ela veio salvar ao mesmo tempo meu pau, meu ser e minha alma.
“E em minha casa, livre e audazmente, adentra como senhora.” Em alguns dos meus sonhos ela me explicava que a amiga morena estava no carro e queria saber se podia subir e ficar conosco; mas essa versão onírica foi se tornando cada vez menos frequente, o roteiro se simplificava e afinal não havia sequer um roteiro, imediatamente depois de abrir a porta entrávamos num espaço luminoso, inenarrável. Essas divagações se prolongaram durante pouco mais de dois anos — mas não vamos nos adiantar.
Por ora, na tarde seguinte eu teria que ir esperar Yuzu no aeroporto de Almería. Ela nunca estivera aqui, mas eu tinha certeza de que ia detestar. Sentiria nojo dos aposentados nórdicos e desprezo pelos hippies espanhóis, nenhuma das duas categorias (que conviviam sem grande dificuldade) se encaixava na sua visão elitista da vida social e do mundo em geral, toda aquela gente não tinha definitivamente um pingo de classe, e, de todo jeito, eu também não tinha a menor classe, só dinheiro, aliás bastante dinheiro, devido a certas circunstâncias que talvez descreva quando tiver tempo, e ao dizer isso estou dizendo tudo o que é preciso ser dito sobre minha relação com Yuzu, naturalmente eu tinha que me separar dela, isso era óbvio, e também era óbvio que nós nunca deveríamos ter nos juntado, só que eu precisava de tempo, muito tempo, para voltar a assumir as rédeas da minha vida, como já disse, e na maior parte do tempo era incapaz de fazer isso.
Consegui uma vaga no aeroporto com facilidade, o estacionamento era grande demais, aliás como tudo na região, concebido para um movimento turístico descomunal que nunca se concretizou.
Fazia meses que eu não transava com Yuzu e decididamente não queria ter uma recaída, por diversos motivos que explicarei mais à frente, no fundo eu não conseguia entender por que tinha organizado aquelas férias, e já estava pensando, enquanto a esperava na saída, sentado num banco de plástico, em encerrá-la mais cedo — tinha previsto quinze dias, mas uma semana seria mais que suficiente, ia mentir sobre minhas obrigações profissionais, aquela vadia não poderia rebater nada, dependia totalmente da minha grana, e isso, afinal de contas, me dava certos direitos.
O avião que vinha de Paris-Orly estava no horário e o saguão de chegadas, agradavelmente refrigerado e quase totalmente vazio — o turismo diminuía cada vez mais na província de Almería. Quando o painel eletrônico anunciou que o avião havia aterrissado, quase me levantei e me dirigi para o estacionamento; ela não sabia meu endereço, seria impossível me encontrar. Raciocinei rapidamente: mais cedo ou mais tarde eu teria que voltar a Paris, nem que fosse apenas por motivos profissionais, aliás já estava praticamente tão farto do meu trabalho no Ministério da Agricultura quanto da minha companheira japonesa, sem dúvida eu estava passando por um mau momento, tem gente que se suicida por menos que isso.
Yuzu estava impiedosamente maquiada, como de costume, parecia um quadro, o batom escarlate e a sombra violeta realçavam sua face pálida, sua pele de “porcelana”, como se dizia nos romances de Yves Simon, nesse momento lembrei que nunca se expunha ao sol porque os japoneses consideram que uma pele muito branca (enfim, de porcelana, para dizer como Yves Simon) era o máximo de distinção, ora, o que se pode fazer num balneário espanhol com alguém que se recusa a tomar sol, aquele projeto de férias era decididamente absurdo, eu ia me encarregar de alterar as reservas de hotel nesta mesma noite, uma semana já era muito, por que não deixar alguns dias na primavera para as cerejeiras em flor de Quioto?
Com a garota de cabelo castanho tudo teria sido diferente, ela tiraria a roupa na praia sem ressentimento nem desprezo, como uma filha obediente de Israel, não se incomodaria com os pneuzinhos das gordas aposentadas alemãs (era esse o destino das mulheres, ela sabia, até o advento de Cristo em sua glória), ofereceria ao sol (e aos aposentados alemães, que não perderiam um detalhe) o glorioso espetáculo de sua bunda perfeitamente redonda, de sua boceta cândida porém depilada (porque Deus permitiu o ornato), e eu ficaria de pau duro outra vez, duro como um mamífero, mas ela não iria me chupar abertamente na praia, era uma colônia de nudismo familiar, evitaria escandalizar as aposentadas alemãs que faziam exercícios de ioga na praia ao alvorecer, mas eu intuiria que desejava isso e minha virilidade se sentiria regenerada, ela esperaria até estarmos dentro d’água, a uns cinquenta metros da margem (o declive da praia era muito suave), para oferecer suas partes úmidas ao meu falo triunfal, e mais tarde iríamos jantar um arroz con bogavantes num restaurante em Garrucha, o romantismo e a pornografia não estariam mais separados, a bondade de Deus teria se manifestado intensamente, enfim, meus pensamentos vagavam daqui para lá, mas consegui ao menos imitar uma vaga expressão de satisfação quando vi Yuzu entrando na área de chegada em meio a uma horda compacta de mochileiros australianos.
Esboçamos um beijo, bem, roçamos as bochechas, mas isso com certeza já era demais, ela logo se sentou, abriu o nécessaire (cujo conteúdo obedecia estritamente às normas impostas por todas as companhias aéreas) e foi retocar a maquiagem sem prestar a menor atenção na esteira de bagagem; estava claro que eu é que teria que cuidar disso.
Eu conhecia bem as malas de Yuzu, impositivamente. Eram de uma marca famosa cujo nome esqueci, Zadig & Voltaire ou Pascal & Blaise, cuja ideia, fosse qual fosse, era reproduzir no tecido um desses mapas geográficos do Renascimento onde o mundo era representado de uma forma muito aproximada, mas com legendas vintage tipo: “Aqui debe hauer tigres”, enfim eram malas chiques, com sua exclusividade reforçada pelo fato de, ao contrário da vulgar Samsonite para executivos médios, não terem rodinhas, ou seja, eu teria que carregá-las, exatamente como os baús dos elegantes na era vitoriana.
Como todos os países da Europa ocidental, a Espanha, envolvida num processo violento de aumento da produtividade, havia acabado pouco a pouco com os empregos não qualificados que anteriormente contribuíam para tornar a vida um pouco menos desagradável, condenando assim a maioria da população ao desemprego em massa. Malas assim, seja com a marca Zadig & Voltaire, seja Pascal & Blaise, só tinham sentido numa sociedade onde ainda existisse a função de carregador.
Não parecia ser o caso, mas na verdade era, pensei enquanto retirava a bagagem de Yuzu da esteira rolante (uma mala e uma bolsa de viagem com um peso quase idêntico, deviam pesar juntas uns quarenta quilos): o carregador era eu.