“O Sol é para Todos” é uma comovente história ambientada no Sul dos Estados Unidos nos anos 1930, permeada pela crueldade do preconceito racial. A narrativa, vista pelos olhos de Scout, uma menina perspicaz e questionadora, segue seu pai, Atticus Finch, um advogado local que arrisca tudo para defender um homem negro injustamente acusado de um terrível crime. O livro explora temas complexos como raça, classe, justiça e transformação, mantendo-se relevante até os dias de hoje. Apesar das desigualdades e injustiças retratadas, há um fio de esperança presente na inocência de Scout e na coragem de Atticus. “O Sol é para Todos” é amplamente reconhecido como um dos romances mais importantes do século XX, destacando-se pela sua atualidade e impacto social. Sua inclusão em diversas listas de melhores livros e sua contínua capacidade de emocionar tanto jovens quanto adultos solidificam seu status como um verdadeiro clássico moderno da literatura.
Editora: José Olympio; 35ª edição (10 outubro 2006); Páginas: 350 páginas; ISBN-10: 8503009498; ISBN-13: 978-8503009492; ASIN: B00ZPQ073O
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Leia trecho do livro
Para o sr. Lee e Alice,
em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
PRIMEIRA PARTE
1
Quando uma fratura grave no cotovelo. Depois que o cotovelo ficou bom, e Jem perdeu o medo de não poder mais jogar futebol, ele passou a dar menos importância ao que aconteceu. O braço esquerdo ficou um pouco mais curto que o direito; quando ele ficava de pé ou andava, o dorso da mão ficava perpendicular ao corpo e o polegar paralelo à coxa. Ele não ligava, desde que pudesse continuar dando chutes e passes.
Quando tantos anos se passaram que podíamos olhar para trás e lembrar deles, às vezes comentávamos os fatos que levaram ao acidente. Continuo achando que tudo começou com os Ewell, mas Jem, que era quatro anos mais velho que eu, dizia que as coisas começaram bem antes. Ele dizia que começaram no verão em que conhecemos Dill e ele nos deu a ideia de fazer Boo Radley sair de casa.
Eu disse a Jem que, se ele queria ter uma visão ampla da coisa, tudo tinha começado mesmo com Andrew Jackson. Se o general Jackson não tivesse empurrado os índios creek rio acima, Simon Finch jamais teria subido a remo o Alabama, e onde estaríamos se não fosse isso? Estávamos velhos demais para resolver uma discussão no braço, por isso consultamos Atticus. Nosso pai disse que nós dois tínhamos razão. Como éramos sulistas, o fato de não termos antepassados cuja carolice só não era maior que seu pão-durismo. Na Inglaterra, Simon ficou irritado com a perseguição que os crentes mais liberais faziam aos autointitulados metodistas e, como se considerava metodista, resolveu atravessar o Atlântico e ir para a Filadélfia, depois para a Jamaica, daí para Mobile, até Saint Stephens. Consciente das duras críticas que John Wesley fazia ao uso da esperteza no exercício do comércio, Simon ganhou muito dinheiro com a prática da medicina, mas foi infeliz, por ter cedido à tentação de fazer coisas que sabia que não eram pela glória de Deus, como acumular ouro e trajes luxuosos. Assim, esquecendo os ditames de seu mestre sobre a posse de bens humanos, Simon comprou três escravos e com a ajuda deles construiu uma casa à margem do rio Alabama, uns sessenta quilômetros acima de Saint Stephens. Voltou a Saint Stephens apenas uma vez, para arrumar uma esposa, e com ela iniciou uma descendência farta em filhas. Simon viveu até idade avançada e morreu rico.
Os homens da família costumavam se estabelecer na propriedade de Simon, que se chamava Finch’s Landing, e viver do plantio de algodão. O lugar era autossustentável: modesto se comparado com os impérios ao redor, mas produzia todo o necessário para o sustento, menos gelo, farinha de trigo e peças de vestuário, que eram comprados nas embarcações fluviais que vinham de Mobile.
Simon deve ter sentido uma ira impotente em relação aos conflitos entre o norte e o sul do país, já que, por causa deles, seus descendentes não herdaram nada além de suas terras. A tradição de viver nelas, porém, se manteve inalterada até depois da metade do século XX, quando meu pai, Atticus Finch, foi para Montgomery estudar Direito e seu irmão caçula foi para Boston estudar Medicina. A irmã deles, Alexandra, foi quem ficou na propriedade: casou-se com um sujeito calado, que passava quase o dia inteiro deitado em uma rede na beira do rio, se perguntando se seu espinhel já estaria cheio de peixes.
Depois de obter o diploma, meu pai voltou para Maycomb e começou a exercer a profissão. Maycomb ficava pouco mais de trinta quilômetros a leste de Finch’s Landing e era a sede do condado Maycomb. No escritório de Atticus no tribunal havia apenas um cabide para chapéus, uma escarradeira, um tabuleiro de damas e um imaculado exemplar do Código Penal do Alabama. Seus dois primeiros clientes foram as duas últimas pessoas condenadas à forca no condado Maycomb. Atticus tinha insistido para que eles aceitassem a generosidade do Estado, que permitiria que continuassem vivos caso se declarassem culpados de homicídio. Mas os dois condenados tinham o sobrenome Haverford, que no condado de Maycomb era sinônimo de burrice. Os Haverford tinham matado o melhor ferreiro de Maycomb por causa de um mal-entendido pela posse de uma égua e foram incautos a ponto de fazer isso na frente de três testemunhas. Os dois alegaram que “o filho da puta mereceu” como se isso fosse justificativa suficiente para o crime. Continuaram se declarando inocentes da acusação de homicídio; então só o que restou a Atticus foi assistir à execução de seus clientes, o que provavelmente foi o início do profundo desencanto de meu pai pelo direito penal.
Nos cinco primeiros anos que passou em Maycomb, Atticus praticou a economia mais do que qualquer outra encaminhado, Atticus obteve uma renda razoável com a advocacia. Ele gostava de Maycomb, era nascido e criado lá, conhecia as pessoas e as pessoas o conheciam e, graças à enorme descendência de Simon Finch, Atticus era parente, por laços de sangue ou de casamento, de quase todo mundo na cidade.
Maycomb era uma cidade antiga, mas quando a conheci, era antiga e decadente. Quando chovia, as ruas viravam um lamaçal vermelho; o mato crescia nas calçadas e o tribunal parecia afundar no meio da praça. De alguma maneira, fazia mais calor; num dia de verão, os cachorros pretos penavam, mulas ossudas atreladas a carroças abanavam o rabo para espantar as moscas na sombra escaldante dos carvalhos da praça. Às nove da manhã, o colarinho duro dos homens já estava mole. As mulheres tomavam um banho antes do meio dia e outro depois da sesta das três da tarde; mesmo assim, ao anoitecer pareciam aqueles bolinhos que costumavam ser servidos nos chás, com cobertura de suor e talco perfumado.
No calor, as pessoas se movimentavam devagar. Andavam pela praça com esforço, entravam e saíam das lojas se arrastando, demoravam para fazer qualquer coisa. Os dias tinham vinte e quatro horas, mas davam a impressão de durar mais. Ninguém tinha pressa, pois não havia aonde ir, nada que comprar nem dinheiro para tal, nem nada para ver nos arredores do condado de Maycomb. Mas foi uma época de vago otimismo para algumas pessoas, pois pouco antes o condado tinha tomado conhecimento de que não precisava ter medo de nada, só dele mesmo.
Nós morávamos na principal rua residencial na cidade: Atticus, Jem e eu, mais Calpúrnia, nossa cozinheira. Jem e eu gostávamos de nosso pai; ele brincava conosco, lia para nós e nos tratava com afetuoso distanciamento. Já Calpúrnia era totalmente diferente. Era toda ângulos e ossos; míope e estrábica, tinha as mãos largas como ripas de estrado e duas vezes mais duras. Vivia me expulsando da cozinha, me perguntando por que eu não me comportava tão bem como Jem, embora soubesse que meu irmão era mais velho, e me chamando para casa quando eu ainda não estava com vontade de ir. Nossas brigas eram épicas e injustas; Calpúrnia ganhava toda vez, principalmente porque Atticus sempre ficava do lado dela. Ela trabalhava na nossa casa desde o nascimento de Jem, e eu sentia sua presença tirânica desde que tenho memória.
Nossa mãe morreu quando eu tinha dois anos, por isso nunca senti falta dela. Ela era uma Graham de Montgomery; Atticus a conheceu quando cumpria seu primeiro mandato de deputado estadual. Já era um homem de meia-idade na época, quinze anos mais velho que ela. Jem foi fruto do primeiro ano de casamento; nasci quatro anos depois e dois anos mais tarde nossa mãe teve um ataque cardíaco fulminante. Disseram que era mal de família. Eu não senti falta dela, mas acho que Jem sentiu. Ele lembrava bem de nossa mãe e, às vezes, no meio de uma brincadeira, suspirava fundo, então se afastava e ia brincar sozinho atrás da garagem. Quando ele fazia isso, eu tinha o bom senso de não azucrinar.
Quando eu estava com quase seis anos e Jem com quase dez, nossas fronteiras no verão (ou seja, à distância de um berro de Calpúrnia) eram a casa da sra. Henry Lafayette Dubose, que ficava duas propriedades ao norte da nossa, e a Residência Radley, três casas ao sul. Jamais ficamos tentados a ultrapassar esses limites. A Residência Radley era habitada por uma figura desconhecida cuja mera descrição bastava para ficarmos comportados por dias a fio; já a sra. Dubose era simplesmente infernal.
Foi nesse verão que conhecemos Dill.
Um dia de manhã cedo, quando estávamos começando a brincar no quintal, Jem e eu ouvimos um barulho no canteiro de couve da srta. Rachel Haverford, nossa vizinha. Fomos até a cerca de arame para ver se era um filhote (a terrier da srta. Rachel estava prenhe) e em vez disso encontramos um garoto sentado, olhando para nós. Sentado, ele era quase da mesma altura das couves. Ficamos olhando fixamente até que ele disse:
— Oi.
—Oi — respondeu Jem, simpático.
— Meu nome é Charles Baker Harris — ele disse. — Eu sei ler.
— E daí? — reagi. — Pensei que vocês iam gostar de saber. Se tiverem alguma coisa para ler, posso fazer isso…
— Quantos anos você tem? — perguntou Jem. — Quatro e meio?
— Vou fazer sete.
— Então não tem nada demais ler — disse Jem, me indicando com o polegar. — A Scout lê desde que nasceu e ela ainda nem começou a escola. Você é bem pequeno para sete anos.
— Sou pequeno, mas sou mais velho — ele explicou. Jem afastou o cabelo para ver melhor.
— Por que não vem até aqui, Charles Baker Harris? Céus, que nome você tem! — estranhou Jem.
— É tão esquisito quanto o seu. Tia Rachel disse que você se chama Jeremy Atticus Finch. Jem ficou sério.
— Sou do tamanho do meu nome — ele retrucou. — Já o seu é maior do que você. Aposto que tem uns dois centímetros a mais.
— Todo mundo me chama de Dill — disse ele, passando por baixo da cerca.
— É melhor passar por cima — sugeri. — De onde você é?
Dill era de Meridian, no Mississippi, estava passando o verão com a tia, a srta. Rachel, e dali em diante passaria todos os verões em Maycomb. A família dele era do condado; a mãe trabalhava para um fotógrafo em Meridian, enviou uma foto de Dill para um concurso de beleza infantil e ganhou cinco dólares. Deu o dinheiro a Dill, que o gastou indo ao cinema vinte vezes.
— Aqui não tem cinema, às vezes passam no tribunal uns filmes sobre a vida de Jesus — disse Jem. — Você já viu algum filme bom?
Dill tinha visto Drácula, o que fez Jem olhá-lo com mais respeito. — Conta o filme para nós — pediu ele. Dill era uma figura curiosa. Usava calça curta de linho azul presa à camisa por botões, tinha os cabelos brancos como a neve e colados à cabeça como penas de pato; era um ano mais velho que eu, mas bem mais baixo. Enquanto nos contava a velha história do vampiro, seus olhos azuis se iluminavam e escureciam; tinha uma risada repentina e alegre e ficava afastando uma mecha de cabelo que caía no meio da testa.
Quando Dill deixou Drácula reduzido a pó e Jem disse que o filme parecia melhor do que o livro, perguntei a Dill onde estava o pai dele.
— Você não disse nada sobre ele.
— É porque não tenho pai.
— Ele morreu?
— Não…
— Então se ele não morreu, você tem um pai, não tem?
Dill enrubesceu e Jem me mandou calar a boca, sinal que Dill tinha sido avaliado e aprovado. A partir daí, o verão seguiu numa alegre rotina. Isso significava: fazer melhorias na nossa casa na árvore que ficava entre dois imensos cinamomos no quintal; fazer bagunça; encenar nossa lista de peças baseadas em obras de Oliver Optic, Victor Appleton e Edgar Rice Burroughs. Sob esse aspecto, tivemos sorte em conhecer Dill, que passou a desempenhar os papéis que antes cabiam a mim, ou seja, o macaco de Tarzã, o sr. Crabtree em The Rover Boys, o sr. Damon em Tom Swift. Assim, passamos a considerar Dill um míni Merlin, com uma cabeça cheia de planos excêntricos, desejos esquisitos e fantasias incríveis.
Mas, lá pelo final de agosto, nosso repertório ficou chato devido às inúmeras repetições, e foi então que Dill deu a ideia de fazermos Boo Radley sair de casa.
Dill era fascinado pela Residência Radley. Apesar dos nossos avisos e explicações, o lugar o atraía como a lua atrai a água, mas ele não ia além do poste da esquina, que ficava a uma boa distância do portão dos Radley. Ele ficava lá, abraçando o grosso poste, olhando e pensando.
A casa dos Radley ficava pouco depois da nossa, numa curva fechada. Ao andar para o sul, passava-se diante da varanda; a calçada fazia a curva e acompanhava o terreno. A casa era baixa e um dia tinha sido branca, com uma grande varanda na frente e janelas verdes, mas havia muito tinha escurecido e ficado da cor do quintal cinzento que a rodeava. O telhado da varanda tinha os beirais apodrecidos pela chuva; os carvalhos não deixavam o sol entrar. Os resquícios de uma cerca de estacas que pareciam bêbadas de tão tortas protegiam o pátio da frente (que ninguém jamais varria), onde cresciam grama e ervas-daninhas.
As janelas e as portas da Residência Radley ficavam fechadas aos domingos, o que era outra esquisitice para os hábitos locais: só se fechavam janelas por motivo de doença ou nos dias frios. O domingo à tarde era justamente o dia para fazer visitas: as mulheres punham espartilho; os homens usavam paletó; as crianças calçavam sapatos. Mas subir a escada da frente dos Radley e chamar “olá” num domingo à tarde era algo que os vizinhos jamais fizeram. A casa não tinha portas de tela. Um dia, perguntei a Atticus se alguma vez teve e ele disse que sim, mas antes de eu nascer.
Rezava a lenda que, quando o caçula dos Radley era adolescente, fez amizade com os Cunningham de Old Sarum, uma família enorme e desordeira que morava no norte do condado. Com eles, o jovem Radley formou a coisa mais próxima de uma gangue que já se tinha visto em Maycomb. Os rapazes não faziam muita coisa, mesmo assim eram assunto na cidade e foram advertidos publicamente nos três púlpitos. Eles ficavam rondando a barbearia; aos domingos, iam de ônibus até Abbotsville para ir ao cinema; frequentavam os bailes no antro de jogatina à margem do rio, a Pousada e Campo de Pesca Dew Drop e bicavam uísque ilegal. Ninguém em Maycomb tinha coragem de dizer ao sr. Radley que o filho dele estava se metendo com más companhias.
Certa noite, após beber bastante, os garotos pegaram um calhambeque emprestado e ficaram dando voltas na praça. Receberam voz de prisão do sr. Conner, o velho oficial de justiça de Maycomb, mas resistiram e ainda o trancaram no banheiro do tribunal. A cidade então decidiu que alguma providência precisava ser tomada; o sr. Conner disse que reconhecera cada um deles e estava determinado a não deixar aquilo passar em branco. Então, os rapazes foram levados diante do juiz, acusados de perturbação da ordem e da paz, agressão e uso abusivo de linguagem profana na presença de senhoras. O juiz perguntou por que o sr. Conner fez essa última acusação, e ele respondeu que os rapazes praguejaram tão alto que com certeza todas as senhoras de Maycomb tinham escutado. O juiz decidiu mandar os rapazes para a escola industrial do estado, para onde outros jovens às vezes eram enviados com a única finalidade de dar-lhes comida e um teto decente: não se tratava de uma prisão, nem de uma desonra. Mas o sr. Radley achava que era. Se o juiz soltasse seu filho Arthur, garantia que ele não causaria mais problemas. Como sabia que o sr. Radley era um homem de palavra, o juiz aceitou a proposta de bom grado.
Os outros rapazes frequentaram a escola industrial e tiveram a melhor educação secundária do estado; um deles acabou cursando engenharia em Auburn. As portas da casa dos Radley passaram a ficar fechadas a semana inteira, de domingo a domingo, e o filho do sr. Radley não foi mais visto durante quinze anos.
Mas um dia, meio apagado na memória de Jem, muitas pessoas ouviram a voz de Boo Radley e o viram, mas não Jem. Ele dizia que Atticus não falava muito nos Radley; quando Jem perguntava, Atticus dizia apenas para ele cuidar da própria vida e deixar os Radley cuidarem da deles, pois tinham esse direito. Nesse tal dia, porém, Jem disse que Atticus balançou a cabeça e fez hum, hum, hum.
Jem sabia de quase tudo pela srta. Stephanie Crawford, uma vizinha megera que dizia conhecer toda a história. Segundo ela, Boo estava sentado na sala cortando artigos do Maycomb Tribune para colar em seu caderno de recortes quando o pai entrou. Quando passou por Boo, ele enfiou a tesoura na perna do pai, tirou-a, limpou-a nas próprias calças e voltou a recortar o jornal.
A sra. Radley saiu correndo para a rua, berrando que Arthur estava matando todos eles, mas, quando o xerife chegou, Boo continuava sentado na sala, recortando o Tribune. Tinha então trinta e três anos.
A srta. Stephanie contou também que, quando sugeriu-se que seria bom para Boo passar uma temporada em Tuscaloosa, o velho sr. Radley dissera que nenhum Radley iria parar em um manicômio. O rapaz não era maluco, ele às vezes ficava irritado, só isso. O sr. Radley aceitou que prendessem Boo, mas insistiu para que não o acusassem de nada, pois ele não era um criminoso. O xerife não teve coragem de colocá-lo numa cela junto com os negros, então Boo ficou preso no porão do tribunal.
Jem não lembrava direito como Boo tinha sido levado do porão para casa. A srta. Stephanie Crawford disse que alguém do conselho municipal avisou ao sr. Radley que, se não tirasse o filho de lá, ele iria morrer por causa do mofo causado pela umidade. Além do mais, Boo não podia viver o resto da vida à custa do condado.
Ninguém sabia de que tipo de intimidação o sr. Radley lançava mão para manter Boo fora de vista, mas Jem achava que ele ficava acorrentado à cama quase todo o tempo. Atticus dizia que não, que não era nada disso, que havia outras maneiras de fazer alguém virar um fantasma.
Lembro de ver, às vezes, a sra. Radley abrir a porta da frente, ir até a beira da varanda e molhar as plantas. Mas todo dia Jem e eu víamos o sr. Radley indo e vindo da cidade. Era um homem magro, de pele dura e olhos sem cor, tão baços que não refletiam a luz. Tinha os ossos da face pontudos e a boca larga, com o lábio superior fino e o inferior carnudo. A srta. Stephanie Crawford dizia que ele era tão rigoroso que tinha a palavra de Deus como única lei, e nós acreditamos, pois o sr. Radley andava reto como uma vareta de espingarda.
Ele nunca falava conosco. Quando passava por nós, olhávamos para o chão e dizíamos:
— Bom dia, senhor.
E ele, em resposta, tossia. O filho mais velho do sr. Radley morava em Pensacola; ele passava o Natal na casa dos pais e era uma das poucas pessoas que víamos entrar e sair de lá. Dizia-se que a casa morreu quando o sr. Radley levou Arthur para lá.
Um dia Atticus nos disse que, se fizéssemos barulho no quintal, ele acabava com a gente. Quando saiu de casa, encarregou Calpúrnia de nos vigiar para que não desobedecêssemos. O sr. Radley estava morrendo.
Ele custou a morrer. Fecharam a rua com cavaletes nas duas extremidades do terreno dos Radley, jogaram palha nas calçadas e desviaram o trânsito para a rua de trás. Sempre que era chamado, o dr. Reynolds estacionava o carro na frente da nossa casa e andava até a casa dos Radley. Jem e eu nos arrastamos pelo quintal por dias a fio até que finalmente os cavaletes foram retirados e assistimos da varanda o sr. Radley passar pela última vez diante da nossa casa.
— Lá vai o pior homem que Deus já botou no mundo — resmungou Calpúrnia, dando uma boa cuspida no quintal. Olhamos para ela surpresos, pois raramente fazia algum comentário a respeito dos brancos.
Quando o sr. Radley morreu, os vizinhos pensaram que Boo ia sair de casa, mas não foi o que aconteceu: o filho mais velho do sr. Radley voltou de Pensacola e assumiu o lugar do pai. A única diferença entre os dois era a idade. Jem dizia que o sr. Nathan Radley também “vivia de algodão”. Mas ele respondia aos nossos cumprimentos e às vezes voltava da cidade com uma revista na mão.
Quanto mais coisas contávamos a Dill sobre os Radley, mais ele queria saber, quanto mais tempo ficava abraçado ao poste na esquina, mais imaginava.
— Fico me perguntando o que ele faz lá dentro — ele murmurava. — Ele deve pelo menos colocar a cabeça para fora de casa.
Jem disse:
— Tem razão, ele deve sair quando está bem escuro. A srta. Stephanie Crawford disse que uma vez acordou no meio da noite e ele estava na janela, olhando fixamente para ela… e que a cabeça dele parecia uma caveira. Você nunca acordou à noite e ouviu, Dill? Ele anda assim… — Jem arrastou os pés no cascalho. — Por que acha que a srta. Rachel tranca a casa inteira à noite? Várias vezes vi as pegadas dele no nosso quintal de manhã; uma noite, eu o ouvi arranhando a porta telada dos fundos, mas, quando Atticus foi lá, ele tinha ido embora.
— Como ele é? — perguntou Dill.
Jem fez uma boa descrição de Boo. A julgar pelas pegadas, ele tinha uns dois metros de altura; comia carne crua de esquilo e de qualquer gato que conseguisse pegar, por isso tinha as mãos manchadas de sangue (quem come animais crus nunca consegue limpar o sangue). No rosto tinha uma grande cicatriz irregular e seus poucos dentes eram amarelos e podres; os olhos eram saltados e ele estava sempre babando.
— Vamos tentar fazê-lo sair — disse Dill. — Quero ver como ele é.
Jem disse que, se Dill queria morrer, bastava subir a escada da casa e bater na porta.
Nossa primeira incursão só aconteceu porque Dill apostou um exemplar de O fantasma cinzento contra dois da série Tom Swift que Jem não passaria do portão da casa. Jem nunca recusou uma aposta na vida.
Passou três dias pensando no caso. Acho que ele prezava mais a honra do que a própria vida, porque Dill convenceu-o facilmente:
— Você está apavorado — disse Dill no primeiro dia.
— Não tenho medo, tenho respeito — reagiu Jem. No dia seguinte, Dill insistiu:
— Você está tão apavorado que não bota nem o dedão do pé no pátio da frente.
E Jem repetiu que não estava, pois passava diante da casa desde que tinha começado a ir à escola.
— Sempre correndo — acrescentei.
Dill pegou-o de jeito no terceiro dia, quando disse que as pessoas em Meridian não eram tão medrosas quanto em Maycomb, que ele nunca tinha visto gente tão amedrontada como ali.
Foi o bastante para Jem ir até a esquina, encostar-se no poste e olhar o portão da casa, que estava meio bambo nas frágeis dobradiças.
— Espero que esteja claro na sua cabeça que ele vai matar todos nós, Dill Harris — disse Jem quando nos juntamos a ele. — Não ponha a culpa em mim quando ele arrancar os seus olhos. Lembre-se que foi você que começou.
— Você continua apavorado — murmurou Dill, paciente. Jem queria que Dill entendesse de uma vez por todas que ele não tinha medo de nada.
— Só não consigo pensar em uma maneira de fazer ele sair da casa sem pegar a gente.
Além do mais, Jem precisava pensar na irmãzinha.
Quando disse isso, eu soube que estava com medo, porque também tinha de pensar na irmãzinha quando apostei que ele não tinha coragem de pular do telhado de casa. “O que vai ser de você se eu morrer?”, perguntou para mim. Em seguida pulou, não sofreu um arranhão e esqueceu a responsabilidade até se ver diante do desafio da Residência Radley.
— Vai fugir do desafio? — perguntou Dill. — Se vai, então…
— Dill, essas coisas têm que ser bem pensadas — disse Jem. — Me deixe pensar um minuto… É como fazer uma tartaruga sair do casco…
— Como assim? — perguntou Dill.
— É só acender um fósforo embaixo dela.
Eu disse a Jem que, se ele pusesse fogo na casa dos Radley, eu ia contar para Atticus.
Dill disse que acender um fósforo embaixo de uma tartaruga era uma coisa horrível.
— Não é horrível, é só para convencer o bicho, ninguém vai assá-lo vivo — resmungou Jem.
— Como você sabe que a tartaruga não sente o fósforo?
— Tartarugas não sentem nada, burro — disse Jem.
— Você já foi tartaruga?
— Que droga, Dill! Me deixe ver… Podemos jogar uma pedra… Jem pensou durante tanto tempo que Dill fez uma pequena concessão:
— Não vou contar para ninguém que você fugiu da raia e ainda dou O fantasma cinzento se você subir a escada e tocar na casa. Jem se animou.
— Só tocar na casa?
Dill concordou com a cabeça.
—Tem certeza que é só isso? Não vale dizer outra coisa quando eu voltar.
— É só isso — concordou Dill. — Ele provavelmente vai sair quando avistar você no quintal, então Scout e eu pulamos em cima dele e o seguramos até ele entender que não queremos machucá-lo.
Saímos da esquina, atravessamos a rua lateral que dava em frente à casa dos Radley e paramos no portão.
— Anda, vai — insistiu Dill. — Scout e eu estamos bem atrás de você.
— Já vou. Não me apressa — pediu Jem.
Ele seguiu até a extremidade do terreno e voltou, como se estivesse avaliando a melhor maneira de entrar, franzindo o cenho e coçando a testa.
Zombei dele.
Jem então escancarou o portão e correu até a lateral da casa, bateu com a palma da mão na parede e passou correndo por nós, sem ver se sua investida tinha dado certo. Dill e eu corremos atrás dele. Quando estávamos a salvo em nossa varanda, ofegantes e sem fôlego, olhamos para trás.
A velha casa estava igual, sombria e feia, mas enquanto olhávamos para ela, tivemos a impressão de ver um movimento em uma das cortinas. Um movimento leve, quase imperceptível, e a casa continuou quieta.