Uma parábola sobre os tempos atuais, por um de nossos maiores pensadores indígenas. Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”. Essa premissa estaria na origem do desastre socioambiental de nossa era, o chamado Antropoceno. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais...
Capa comum: 64 páginas Editora: Companhia das Letras; Edição: 1ª (5 de julho de 2019) Idioma: Português ISBN-10: 8535932410 ISBN-13: 978-8535932416 Dimensões do produto: 15,8 x 11 x 0,6 cm Peso de envio: 77,1 g
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Leia trecho do livro
A primeira vez que desembarquei no aeroporto de Lisboa, tive uma sensação estranha. Por mais de cinquenta anos, evitei atravessar o oceano por razões afetivas e históricas. Eu achava que não tinha muita coisa para conversar com os portugueses — não que isso fosse uma grande questão, mas era algo que eu evitava. Quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e companhia, recusei um convite para vir a Portugal. Eu disse: “Essa é uma típica festa portuguesa, vocês vão celebrar a invasão do meu canto do mundo. Não vou, não”. Porém, não transformei isso numa rixa e pensei: “Vamos ver o que acontece no futuro”.
Em 2017, ano em que Lisboa foi capital ibero-americana de cultura, ocorreu um ciclo de eventos muito interessante, com performances de teatro, mostra de cinema e palestras. De novo, fui convidado a participar, e, dessa vez, nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro faria uma conferência no teatro Maria Matos, chamada “Os involuntários da pátria”. Então, pensei: “Esse assunto me interessa, vou também”. No dia seguinte ao da fala do Eduardo, tive a oportunidade de encontrar muita gente que se interessou pela estreia do documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra, dirigido por Marco Altberg. O filme é uma boa introdução ao tema que quero tratar: como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência?
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.
Agora, no começo do século XXI, algumas colaborações entre pensadores com visões distintas originadas em diferentes culturas possibilitam uma crítica dessa ideia. Somos mesmo uma humanidade?
Pensemos nas nossas instituições mais bem consolidadas, como universidades ou organismos multilaterais, que surgiram no século XX: Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela mineração. Para essa instituição, é como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra. Se sobrevivermos, vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente não comeu, e os nossos netos ou tataranetos — ou os netos de nossos tataranetos — vão poder passear para ver como era a Terra no passado. Essas agências e instituições foram configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser.
As andanças que fi z por diferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esse clube da humanidade. E fiquei pensando: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade?”. Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária? Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam, que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem? Em vez disso, seguimos arrumando um jeito de projetar outras iguais a elas, que também poderiam manter a nossa coesão como humanidade.
Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.
“Ideias para adiar o fi m do mundo” — esse título é uma provocação. Eu estava no quintal de casa quando me trouxeram o telefone, dizendo: “Estão te chamando lá da Universidade de Brasília, para você participar de um encontro sobre desenvolvimento sustentável”. (A UnB tem um centro de desenvolvimento sustentável, com programa de mestrado.) Eu fi quei muito feliz com o convite e o aceitei, então me disseram: “Você precisa dar um título para a sua palestra”. Eu estava tão envolvido com as minhas atividades no quintal que respondi: “Ideias para adiar o fi m do mundo”. A pessoa levou a sério e colocou isso no programa. Depois de uns três meses, me ligaram: “É amanhã, você está com a sua passagem de avião para Brasília?”. “Amanhã?” “É, amanhã você vai fazer aquela palestra sobre as ideias para adiar o fi m do mundo.”
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