Livro ‘O que é Impossível para Você?’ por Marcos Rossi

Baixar PDF 'O que É Impossível Para Você?' por Marcos Rossi

Um médico obstetra desmaia ao retirar o bebê do ventre da mãe. Um garoto surfa além da arrebentação com as muletas apoiadas sobre a prancha. Mais de uma centena de ritmistas de uma escola de samba observam em silêncio o teste do cadeirante que quer ser integrante da bateria. Um artista de rua emociona as pessoas ao cantar “I believe I can” aos domingos na Avenida Paulista. O mascote do time de basquete Chicago Bulls, Benny, coloca sua máscara em um deficiente físico, para delírio de todo o ginásio. Um homem feito, advogado e pai de dois filhos, tem um frio na barriga ao encarar a plateia em sua primeira fala como palestrante motivacional. O que une estes episódios? Nascido sem pernas e sem braços devido a uma doença extremamente rara, a Síndrome de Hanhart, estas são cenas da incrível trajetória de vida de Marcos Rossi, descritas com bem-humorada vividez neste O que é impossível para você?…

Editora: Buzz Editora; 1ª edição (31 outubro 2016); Páginas 192 páginas; ISBN-10: 8593156010; ISBN-13: 978-8593156014; ASIN: B079G8ZNKB

Leia trecho do livro

O que é impossível para você?

Agradeço a Deus por colocar pessoas tão boas em minha jornada, sem as quais eu talvez não tivesse chegado até aqui:

Minha esposa Lucimeire, que sempre me deu suporte, muito amor e em vários momentos me ensinou a “pisar no freio” e a enxergar as coisas de uma outra forma. Minha perfeita e eterna namorada, companheira de aventuras e carnavais. À minha mãe por ter me guiado e apoiado durante décadas mesmo nos tropeços da vida.

Ao meu pai, meu melhor amigo, que há to anos, no momento mais importante, quando decidi cumprir minha missão de vida e ensinar as pessoas a alcançarem seus sonhos através de minhas palestras, me incentivou, acreditou em mim e fez o seu máximo para que esse sonho desse certo.

Aos meus filhos, por me fazerem querer ser melhor a cada dia.

Aos meus amigos e irmãos de vida: Fábio, Paulinho, Alexandre, José, Weslley, Fernando Herrmann, Alessandro e Priscila, Didi, Maurício, Bruno Guazzelli, Sergio Pato, Rodrigo Pescador, William Spinetti, pelas muitas vezes que me deram aquele empurrãozinho para que meus sonhos se concretizassem. Ao meu ciclo de mentores: Professor Mário e Orlando, do Conservatório Souza Lima; Aldo Novak, que através de seus ensinamentos me proporcionou abrir os olhos da minha mente e me fez conhecer Rosana Braga, que por sua vez, me recebeu em seu programa de entrevistas e me apresentou ao mundo como palestrante, quando ainda nem era esposa do Rodrigo Cardoso, que me ensinou como ser um “ultrapassador de limites” e a vencer minhas barreiras internas, além de ter me apresentado aos mestres dos livros, Anderson Cavalcante e Cintia Dalpino, que acreditaram e materializaram o sonho de construir este livro.

Eu amo todos vocês!

Eu me sentia como se estivesse sendo arremessado.

Meu coração disparou. Eu suava frio.

Como assim, sair daqui?”

Aquele momento tinha sido adiado por muito tempo. Eu já estava com 32 anos. O que era um milagre e tanto, já que, quando criança, os médicos tinham previsto que eu não passaria dos 30. Trinta e dois anos e morando com a mãe. Ou melhor, num apartamento ao lado do dela. Mas sob sua supervisão. O cordão umbilical era mantido, não havia segredos entre nós. Era uma dependência que não me incomodava. Pelo contrário.

Só que minha mãe me deu um ultimato. E era difícil ter de lidar com mais uma mudança. Mais um desafio. Acontece que esse era dos grandes e vinha num momento inesperado. Como eu, sem pernas nem braços, iria sair dali para outro lugar? Como iria me virar sozinho? Como andar com as minhas próprias pernas, sem as ter?

Sem saber, ela estava promovendo o maior case de superação da minha vida.

Eu me sentia como na primeira vez que tinha surfado. O tempo parou por alguns instantes. Uma gota de suor escorreu da minha testa e aquela sensação ficou ainda mais forte. Fechei os olhos. Respirei fundo. Quase pude sentir a brisa do mar. As ondas arrebentando. Eu sendo levado por amigos, com medo e ansiedade, para depois da arrebentação. Na praia, dentro do mar. Era ali que aquela sensação me fazia mais potente. A adrenalina me fazia tremer. Eu estava sobre a prancha, apoiado com as muletas. As pessoas olhavam.

Como um cara sem braços e pernas ia surfar? Como ia se equilibrar?

Eu também não sabia, mas ia. E se essas perguntas não tinham resposta até então, os caras que apostavam que aquilo ia dar certo, me levaram para depois da arrebentação e deu pânico e prazer. Pânico e prazer. Como isso podia se misturar? Era um momento em que eu sabia que tudo poderia acontecer, mas tinha de confiar. Confiar que as coisas sairiam do jeito previsto. Confiar que, caso eu virasse da prancha, conseguiria prender a respiração pelo menos por um minuto até que alguém me virasse. E confiança era mais ou menos a base da minha vida. Confiar no destino, em Deus. Confiar na Vida e em todo mundo que vivia ao meu redor.

Eu acreditava, desde pequeno, que acreditar era o primeiro passo antes que algo pudesse acontecer. Que a fé movia montanhas eu não tinha a menor dúvida. Mas será que sabíamos mover as montanhas certas? Será que todos tinham noção desse potencial infinito e ilimitado?

Eu confiei.

Confiei como jamais tinha confiado na minha vida. Cada minuto era valioso. Era importante. Era necessário. E minha vida era um não aos desperdícios. Principalmente à maneira como os minutos eram desperdiçados. Aquele minuto até ser resgatado. Ali, naquele mar, fechei os olhos e imaginei a coisa acontecendo. Essa era a força que me movia. Era assim que fazia tudo acontecer. Acreditando e me movimentando na direção certa. Seria a primeira vez que eu surfaria. Aquele momento era histórico. Épico. De repente escuto aquela voz.

“Marquinhos, é agora”..

E aquela frase me remeteu a um outro episódio da minha vida. Um dia que eu tinha relembrado tantas vezes que já sabia contar com riqueza de detalhes.

Eu tinha treze para quatorze anos quando fui expulso pela primeira vez do colégio. Coisa de menino que apronta. Da primeira arte a gente nunca esquece. Todo mundo jogando giz na cabeça da professora enquanto ela escrevia na lousa. Quando ela se virou, nervosa, para penalizar o autor daquele massacre, perguntou, aos berros, quem tinha sido.

Eu logo me adiantei: “Foi eu professora”. Só que a brincadeira, ao mesmo tempo que fez meus colegas rirem, custou caro. Ela sabia que eu era o único que não podia ter feito aquilo por não ter a mão. Quando ela falou que ia chamar o segurança, fui na frente até a porta da sala, travando a saída dela, diminuindo a velocidade, até que a cadeira parasse. “Acabou a bateria”, falei. Aquilo foi praticamente cutucar uma onça com vara curta — e gerou a minha primeira suspensão, da qual nunca vou esquecer.

Na segunda traquinagem, recém-motorizado com a minha cadeira de rodas, eu corria pelo corredor, mesmo sob os avisos dos guardinhas, e ia de encontro com o bebedouro, que ficava no final do percurso. Ao invés de diminuir, conforme eu me aproximava, eu acelerava. E mesmo sem saber o porquê, aquilo me fazia feliz. Só que, certa vez, a velocidade acabou sendo alta demais, e dei de frente com o bebedouro, que quebrou e jorrou água pra todo lado. O bedel não mediu esforços para me denunciar para a diretora, que, ao ver meu histórico, me expulsou da escola sem dó nem piedade. Conto isso pra mostrar que nunca me fiz de vítima em nenhum momento. Pelo contrário. Sou bem normal e adoro brincar a respeito da minha situação.

Nas palestras que dou, costumo dizer que hoje os casais têm em média um filho e meio. Quando li o resultado dessa pesquisa achei curioso. E pensei: “eu sou o meio”. Mas nunca fui metade de nada. Pelo contrário. Desde sempre, era um cara bem inteiro em tudo que fazia. Às vezes a intensidade era tanta que parecia uma potência ainda maior do que quem anda por aí de corpo inteiro e mente vazia.

Brincadeiras à parte, aos treze anos eu já tinha uma curiosidade voraz por sexo. E aos quinze, quando descobri que teria de fazer uma cirurgia na qual a probabilidade de que eu saísse vivo era de 10%, minha única preocupação era não morrer virgem. Sim, eu teria que fazer uma cirurgia. Sim, eu podia morrer nela, e as chances eram tão grandes que me faziam pensar naquela coisa de último desejo. Mesmo que eu não acreditasse de fato que passaria dessa pra melhor num instante tão previsível como uma cirurgia.

Afinal, o que um menino de quinze anos pensaria? Sexo era uma fantasia que me deixava praticamente alucinado. Não tinha praticado. E não tinha como desfrutar daquele prazer que os meninos da minha idade já conheciam, por terem outras partes do corpo ajudando no processo.

Claro, eu me preocupava com a tal da escoliose, aquela doença maldita que entortava a coluna e fazia com que ela inclinasse tanto que havia o risco de meus órgãos vitais fossem perfurados pelas costelas. O médico dizia que eu podia morrer se não enfiasse uma haste de aço na coluna vertebral para que ela não entortasse mais. E sair da sala de um médico ouvindo isso é dose. Colocar a haste também seria. Mas isso eu descobriria depois.

O agravante é que eu não podia perder sangue, já que um sangramento poderia ser fatal por causa da minha anatomia. Mas eu sabia que ia ficar vivo. Essas coisas de vida e morte não eram muito misteriosas pra mim. Mas desde sempre tinha certeza de que viveria intensamente cada momento que estivesse dentro do meu corpo. E por mais que ele não pudesse me proporcionar 100% de tudo, pelo menos eu usaria todos os recursos à minha volta para que minha passagem pela Terra fosse espetacular e sem limites. Era assim que eu pensava, desde jovem.

Era assim que eu vivia a minha vida. Era assim que eu tinha me acostumado a ser. Esquecendo que existiam limitações físicas. Aliás, elas de fato não existem. Mas, aos quinze anos, eu não conhecia nenhuma teoria que comprovasse isso. E nem tinha tanta audácia assim. Só queria fazer sexo antes de morrer. E isso era uma regra tão clara para mim que não tinha como escapar.

Eu tinha nascido com uma deficiência rara, que era conhecida com o nome complicado de Síndrome de Hanhart. Eu basicamente não tinha – e nem tenho até hoje, porque não nasceram até agora – braços e pernas. E prestes a marcar a cirurgia fatídica para aplicar a tal haste na coluna, em que eu pensei? Em sexo.

Meus amigos da minha idade também pensavam. Talvez não com tanta curiosidade. Mas eles não iriam morrer tão cedo, e tinham braços e mãos caso quisessem experimentar sensações sem uma presença feminina. Eu não.

Das limitações mais difíceis, essa entra para a lista dos top five. Querer fazer uma coisa e realmente não poder porque precisava da presença de uma segunda pessoa me fazia querer bater a cabeça na parede. Era diferente de comer, fazer xixi, tomar banho. Cuidados básicos dos quais eu dependia de algumas pessoas.

Eu já tinha visto algumas fitas de vídeo com conteúdo pornográfico. Sabia o que se fazia nessas horas. Ao contrário dos cadeirantes com membros inferiores paralisados, eu sentia meu órgão sexual pulsando. E não poder tocá-lo me deixava tenso demais. Jovens tensos fazem bobagens, eu sei. Mas a tensão sexual de um garoto na puberdade é quase explosiva. Pra não dizer outra coisa.

Falei para minha mãe que eu não queria morrer virgem. Simples assim. E ela ficou calada. No fundo, ela tinha medo que eu morresse na sala de cirurgia. A verdade é que ela temia que aqueles 90% de chance de óbito fossem reais e que ela realmente pudesse perder seu filho.

Minha mãe tinha preocupações naturais comigo. E aquela talvez nunca tivesse passado por sua cabeça. Enquanto imaginava o desfecho daquela cirurgia, eu aparecia com aquela indagação curiosa. E complicava tudo para ela. Pensei que não fosse ser ouvido, que não fosse sequer receber qualquer resposta, mas ela chegou dias depois.

Depois dessa conversa, que mais pareceu um monólogo, ela não disse mais nada. Porém, menos de uma semana mais tarde, colocaram uma roupa bonita e perfume em mim para que eu fosse levado ao médico. Médico? Eu sabia que tinha alguma coisa bem estranha naquela visita ao médico. Quem me levaria seria um grande amigo da família que também andava de cadeira de rodas; aliás, ele era a referência masculina de cadeirante que eu tinha na infância. Um motorista estava a postos para me levar à visita. O tal médico era indicação deste amigo da família e a desculpa que deram para nossa saída foi que eu ouviria uma segunda opinião.

Fui pensando durante o percurso no que eles estariam tramando, mas todo mundo estava quieto e ninguém dava nenhuma pista. De repente, senti algo estranho no ar: esse meu amigo disse que precisaríamos fazer um desvio de percurso para pegar algo na casa de uma amiga.

Sem entender o que ia acontecer, fui levado pelo motorista até a porta de um flat. O motorista me sentou em minha cadeira de rodas, e meu amigo deu a desculpa de que ele me levasse primeiro, pois afinal não caberiam duas cadeiras de rodas no mesmo elevador. Claro que não desconfiei de nada naquele momento. Tudo parecia estar em ordem. Esperamos alguns segundos no corredor até que a porta se abrisse. Naquele instante, eu soube o que esperar da vida.

Sim, eu merecia ter aquilo que sonhava. E ela era loira, voluptuosa e tinha um vestido preto e justo que marcava sua cintura e deixava suas coxas saltarem diante dos meus olhos. A medicina que me desculpe, mas aquilo era muito melhor que qualquer remédio. Seu perfume era adocicado e ela jogava os cabelos e as palavras de um jeito que qualquer menino de quinze anos ficaria hipnotizado. Antes de ir embora, o motorista foi enfático ao dizer: “Cuida bem dele”.

Eu me despedi do motorista. Já tinha entendido o recado. E se nosso amigo achava que meu último desejo podia ser satisfeito por uma garota de programa, quem era eu para duvidar? Eu definitivamente não iria morrer virgem, e minha primeira vez seria inacreditável.

A primeira coisa que ela fez, depois de se despedir do motorista e fechar bem a porta, foi me tirar da cadeira de rodas. Mas ela parecia não ter muita prática naquilo. Só fui perceber que ela também era atriz quando encenou uma falta de jeito para me jogar na cama e cair em cima de mim.

Aí ela ganhou o Oscar. Não me esqueço de uma fração de segundo desse dia. Foram cinco horas intensas aprendendo absolutamente tudo sobre a anatomia feminina, sobre os prazeres que meu corpo proporcionava, e sobre os que eu poderia sentir. Naquele dia entendi que meu corpo era uma máquina das boas, que eu também poderia proporcionar prazer, e que eu poderia passar o resto da vida fazendo aquilo. Isso é, se eu sobrevivesse à tal da cirurgia.

Saí dali pisando em nuvens. Ou melhor, flutuando sobre elas, já que era a cadeira de rodas que me levava.

Quem diria que uma visita ao médico seria tão prazerosa.

Os dias que se seguiram, e os que antecederam a cirurgia, foram mais tranquilos do que eu poderia imaginar. Embora eu estivesse preocupado, algo me dizia que eu não morreria ali.

As chances de que tudo desse errado eram de 90%.

Na minha vida, as chances de que as coisas dessem errado eram muito grandes, mas eu sempre desafiava todas elas. As pessoas constantemente me diziam para eu tomar cuidado. Ousadia era uma característica forte da minha personalidade da qual eu não abria mão. Eu era faminto para degustar a vida. Para devorá-la. Tinha certeza que não era por acaso que nascera desse jeito. Precisava fazer acontecer. Precisava provar para todo mundo que os limites eram amarras mentais, que as circunstâncias sempre nos apontariam para negativas óbvias, mas que a nossa mente… ah, ela podia ir além daquilo. Além das crenças, dos medos, dos porquês. E, assim, mesmo me vendo numa situação de tudo ou nada, admiti que queria viver. Minha força era maior que meus medos. E eu tinha que admitir. Não acreditava que morreria ali, tão jovem.

Tinha jogado com o lado psicológico da minha mãe, porque eu acreditava, de fato, que minha vida seria longa. Que eu teria data e hora certa para morrer. E que teria ainda muita coisa para viver, aprender e experimentar.

Entrei na sala de cirurgia, fechei os olhos e um filme da minha vida passou em instantes. Eu tinha quinze anos.

Quem morre com quinze anos?

“MARQUINHOS, É AGORA” – disse uma voz que parecia vir de longe.

“MARQUINHOS, É AGORA”.

Comecei a tocar. Eram 170 ritmistas num silêncio angustiante, enquanto eu era observado e avaliado.

Minha intenção era ser integrante da bateria. E a escola de samba X-9 Paulistana tinha topado o desafio. Eu nunca tinha imaginado estar naquele lugar, nem com aquela turma toda me avaliando. E muito menos tinha a pretensão de fazer aquilo. Mas um grande amigo havia me provocado, enquanto estávamos num bloco de Carnaval. Quando ele perguntou “Por que você não toca numa escola de samba profissional, daquelas que desfilam num sambódromo? “, eu perguntei a mim mesmo “Por que não?”. Essa era uma pergunta que eu costumava me fazer quando surgia qualquer desafio. E se tinha uma coisa na qual eu era viciado era em desafios.

Toquei sozinho durante trinta segundos. Foram trinta segundos de pânico e prazer. Eu não sabia que poderia sentir tanta coisa em tão pouco tempo. Que a música iria entrar pela minha corrente sanguínea e que eu precisaria rever meus conceitos de emoção depois daquela experiência. Depois de tanto esforço para aprender a manusear os instrumentos, eu era colocado à prova.

A adrenalina fazia meu corpo vibrar. Todas as células pareciam acompanhar aquele ritmo. Se eu pudesse descrever a sensação, diria que meu sangue corria sorrindo pelas veias e dava pulos de alegria quando o coração batia. O coração estava disparado. E o ritmo dele parecia sincronizado com o toque do instrumento. Tinha tanta vibração ali que eu pensei em dar nome a elas. Elas corriam pelo ar, reverberavam pelo tempo e espaço. Davam sentido para toda minha vida. Eu não precisava fingir que não estava emocionado. Tinha tanta vida naquela quadra que dava para perceber como as pessoas estavam apostando que eu desse certo.

Poucas coisas faziam meu coração disparar daquele jeito. Mas quando não faziam, eu procurava esse ritmo, essa batida perfeita que antecede uma grande superação. Era um vício? Talvez. Mas se assemelhava a uma grande etapa da minha vida — dessas que eu me orgulharia de contar algum dia para os filhos.

Enquanto encarava cada integrante da bateria, surpreso e boquiaberto, eu me lembrava da cara de espanto das pessoas que me viam segurar meu filho pela primeira vez no colo, ou ainda da feição daqueles que me viam pela primeira vez digitando, tocando um instrumento ou mesmo cantando na avenida Paulista. Vocês sabem, é aquela expressão “Como ele consegue?”.

A expressão que atormentou toda a praia no primeiro dia que eu peguei a tão sonhada onda. Obedeci ao chamado “Marquinhos, é agora” e agi, apesar do medo. Eu e as muletas sobre a prancha. Como um tripé. Duas muletas na frente e o quadril para trás. Lembro da cara de quem assistiu aquele episódio, e via meus movimentos de ombro, jogando a prancha, colocando o peso para trás para tentar equilibrar o corpo. E quando me dei conta, lá estava eu, surfando. O vento batendo na cara, a onda arrebentando. Era uma sensação de liberdade. De superar mais um desafio. De vencer um medo, e me entregar à vida, mesmo com os perigos. Mesmo com os limites. Foram segundos que me trouxeram vida. Uma energia que eu precisava para ir adiante. A galera me pegou no raso. Comemoramos. E aquela sensação de vitória me fez entender que eu tinha que passar por tudo aquilo. Aquela comemoração dava sentido a todos os desafios.

“Marquinhos, você está me escutando?”

Eu estava. Estava ali, de corpo presente naquela discussão sobre sair de casa, diante da minha mãe, mas minha mente vagava. Viajava através do tempo e do espaço. Era como se algo dissesse que aquilo era a arrebentação, e quando eu passasse por ali, ia conseguir surfar a onda. Mas eu precisava passar por aquilo.

Esbocei um sorriso, como quem confia na vida. Lembrei-me do dia em que estava no set, debutando como DJ de uma casa noturna, e também da primeira palestra que dei para centenas de pessoas. Estava na hora de enfrentar mais um desafio.

“MARQUINHOS, É AGORA”.

Dessa vez a voz vinha do meu inconsciente. E ela sempre aparecia para me dizer o que fazer.

Eu revirava as minhas fotos de criança, numa tentativa de fugir daquela situação, e não podia acreditar no que estava acontecendo.

Era uma sensação absolutamente nova.

Marquinhos, você está me escutando?”, ela bradava, ansiosa pela resposta.

Sua expressão estava quase transfigurada. Ela tinha certeza do que dizia e eu não sabia o que imaginar.

Ser pai não estava nos meus planos naquele momento. Mas ela estava grávida. Ainda não éramos casados, tínhamos tido poucas relações, estávamos engrenando algo que parecia ser um relacionamento, mas… um filho?

Imaginei um menino.

Tudo mudava muito de repente na minha vida. Teria de lidar com novas coisas, com uma perspectiva diferente da vida. Com a possibilidade de cuidar de alguém. Eu seria pai. E ser pai não era tão fácil. Ser pai envolvia ter que pensar mais em outra pessoa do que em mim mesmo. Ser pai envolvia crescer. Ser responsável, ser provedor. Ser um modelo de pessoa.

Eu seria tudo aquilo? Eu teria capacidade de enfrentar mais aquele desafio?

Marquinhos, você está me escutando?”

Eu estava, mas meu corpo parecia estar longe dali. Como se tivesse me teletransportado para outro tempo, outro lugar. Escutava e capturava as memórias que me traziam a mesma sensação. O mesmo sentimento. Mas em outra época da minha vida. Com tanta coisa que já tinha acontecido, eu refazia as sinapses do cérebro o tempo todo em busca de soluções para aquilo que às vezes me deixava apreensivo. Eu estava perdido. Era como se eu buscasse referências. Coisas que me dissessem que tudo daria certo.

Todo homem que já recebeu essa notícia deve ter sentido, no íntimo, um medo inconsciente. Junto com a felicidade, vinha o tal do senso de responsabilidade. Para mim era como um jogo que eu desconhecia completamente. Tinha minhas dependências e limitações físicas. Daria conta de ajudar a criar outro ser humano? Era informação demais para minha cabeça. E era a segunda vez que tinha aquele tipo de notícia.

Na primeira vez, com outra namorada, as coisas não tinham saído conforme o planejado. Ela perdera o bebê no início da gestação, e o sonho e o medo de ser pai tinham sido ceifados desde então. Quando eu me acostumava com a notícia, recebia a parte ruim dela, que levava junto todas as expectativas. Mas o destino queria me dar outra oportunidade de transmitir meus valores. E, apesar do instinto de reprodução ser um dos mais fortes de todos, eu ainda tinha receio de como encarar a paternidade.

Olhei as fotos. Elas me remetiam a um passado distante. Um passado onde eu ainda era filho. Onde as preocupações não chegavam a me incomodar. Na foto, eu estava com pouco mais de cinco anos, vestido de palhaço. Era uma simples criança querendo participar, ter acesso a toda diversão que as outras poderiam ter. Eu só queria ser alguém que desfrutasse as mesmas sensações. E isso era perfeitamente possível.

Aquilo parecia tão distante, e ao mesmo tempo, tão presente. Uma memória faz isso com a gente — dá uma revirada em tudo que a gente acredita. Traz novos elementos, faz a gente puxar informações escondidas na caixa de Pandora, a fim de ter munição para aceitar certas realidades que ainda não sabemos como vão se apresentar.

Eu estava ali, diante da notícia de que teria um filho. Em condições normais, um filho já é uma transformação e tanto. Para mim era mais um grande desafio. Aquela onda que vem e a gente não sabe se vai se afogar ou se vai surfar a melhor onda da vida. Um divisor de águas para muita gente.

Tinha amigos com filhos. Sabia que não era assim tão simples. Ao mesmo tempo, tinha plena certeza de que a maneira como eu encararia aquilo faria toda a diferença.

Quais recursos eu teria para lidar com aquela nova realidade?

As imagens se embaralhavam na minha mente, flashes das brincadeiras de criança. Momentos curiosos que me mostravam que eu era capaz. Momentos que diziam mais que qualquer palavra. Traziam cheiro, cor, esperança. Mostravam que as dificuldades estavam na mente. Que o jeito como eu sempre tinha lidado com as transformações fora determinante para mudar a minha maneira de viver, de celebrar a vida.

Celebrar a vida. Era isso. Um filho me traria a oportunidade de celebrar a vida como eu jamais tinha feito antes.

Meu coração foi se acalmando, mas ainda pulsava descompassado. Era como se alguém injetasse adrenalina nas minhas veias e eu tivesse que suportar uma alteração maluca antes de dar pane total. Era diferente de tudo que eu tinha vivido até então. As fases da vida foram indo e vindo e eu buscava cada uma delas na memória. Meu olfato não me traía. Ele acompanhava cada imagem mental e aos poucos eu redescobria minha infância através do cheiro de cada pedacinho dela. Cheiro das minhas comidas favoritas. Cheiro dos lugares que tinha estado. Cheiro do perfume da professora do primário que sempre se aproximava de mim com o intuito genuíno de me ajudar, olhando como quem sabe que eu podia mais, trazendo confiança. Esse era o olhar que eu precisava. O olhar de um anjo, como a me dizer “vai Marquinhos”. Vai que as coisas estão sob controle. Por mais que na vida nada esteja.

Eu me peguei lembrando da primeira vez que joguei futebol. Era criança, e seria o atacante do time. Sem nunca ter jogado. Tinha medo, mas ela me olhou. A professora do cheiro bom. Me olhou e fez sinal para que eu fosse adiante. Era uma espécie de carta branca para que eu pudesse confiar em mim do jeito que precisava fazer. Entrei em campo, com minhas duas muletas encaixadas nos braços e respirei fundo. Tinha adversários maiores do que as pessoas poderiam supor. Meus amigos queriam que eu jogasse, mas meus medos jogavam contra mim naquele momento.

Quando o jogo foi iniciado, comecei a correr. Olhando hoje em perspectiva, eu era algo como um Forrest Gump descontrolado. Mas sem pernas. E com aquelas muletas pequenas em substituição. Corri sem medo de que ninguém me olhasse. Corri além das minhas humildes capacidades. E, ao correr, percebi que as capacidades e limitações que eu achava que existiam, na verdade estavam na minha cabeça.

A professora lançou um olhar e eu aceitei, finalmente, que estava pronto para o jogo. A bola começou a rolar e eu ia atrás dela como um profissional no meio de um campeonato mundial decisivo. Era como se o mundo parasse para me olhar. E a magia que me acompanhou naquele momento seria difícil de ser explicada pra qualquer um, pois ela trouxe um bocado de sorte. Uma prece atenta, talvez. A torcida daquela professora. Um desejo oculto meu de conseguir impressionar a todos. E principalmente de sair dali dizendo pra mim mesmo que eu podia.

Eu podia.

Quando a bola finalmente veio parar diante de mim, todos se entreolharam. Com rapidez, sem pensar nos movimentos, sem calcular o que faria em seguida, driblei um, driblei dois e fui parar diante do gol. O gol parecia gigantesco, aliás, o que não parecia gigantesco para aquele menino com duas muletas? E era improvável que eu acertasse a bola ali dentro. O goleiro parecia muito maior visto de perto. Era um gigante diante de um portal. E eu me acovardei naquele segundo. E então eu senti. Senti mais uma vez o cheiro da tinta molhada da parede da quadra que a gente estreava. E eu ali correndo em direção ao gol. Eu e a bola. Tentei raciocinar, mas uma criança sente mais que raciocina. Criança é puro instinto. Criança era aquilo que eu era e que seria mesmo quando ganhasse anos de experiência. Uma pessoa que não vê limites nos sonhos, que é maior do que qualquer um pode imaginar.

E eu intuía que era capaz de fazer aquele gol. Como se o mundo estivesse televisionando aquele evento, como se a arquibancada estivesse cheia, com todos os holofotes voltados para mim. Eu brilhei. E, brilhando, entendi que podia ser bem maior do que eu era. Entendi que não precisava acreditar na limitação. E precisava fazer aquilo acontecer.

E quando a gente quer provar algo a nós mesmos, a briga interna é muito grande. Desde cedo eu já encarava meus demônios. Desde criança sabia que teria que enfrentar a voz que ficava na minha mente tentando me provar o contrário daquilo que eu acreditava. Só que, naquela cena, não havia nenhum limite. Nada que eu não pudesse realizar. Eu via o gol. Já conseguia sentir a rede balançando, antes mesmo de jogar a bola. No entanto, na vida real, quando a gente pensa demais, dá espaço para os monstros virem destruir nossos sonhos. E foi o que aconteceu comigo. Naquele momento, um menino do outro time surgiu, assim, do nada, diante de mim. Era como se ele soubesse que podia acabar comigo.

Com meus sonhos. Como se soubesse que o fato da sua presença ameaçadora me dar náuseas já conseguiria me desestabilizar. Era como se seu sorriso pudesse me deter. E ele conseguiu pegar a bola. Sem rodeios. Sem vergonha. Sem piedade.

Eu não queria piedade. Não queria pena. Lembrei de todas as vezes que lutei contra isso. De quantas vezes minha mãe tinha enfrentado preconceitos para que eu fosse tratado como igual na escola, de como tinha persistido até achar alguma que me acolhesse e não fizesse diferença.

Do que eu estava reclamando? Agindo assim, ele só mostrava que me via como um adversário à sua altura. Não era o que eu queria? Ser tratado como uma pessoa sem deficiência? Fiquei pensando que ele poderia ter facilitado. Mas talvez, se naquele grande jogo decisivo para mim, ele tivesse facilitado, as coisas hoje não fossem como são. Eu não queria facilidades geradas por olhares de piedade. Queria enfrentamento, coragem. Queria gente que me olhasse e topasse um desafio.

Por bem ou por mal eu conseguiria isso. E inconscientemente ele fez com que eu me tornasse mais forte. Dizem que os sofrimentos vão talhando a gente, que tudo aquilo que passamos na vida são coisas que nos dão potência, se conseguimos sair do papel de vítimas e nos transformamos.

Aquilo ia me transformar.

Mas calma. Eu ainda era um menino. Um menino não vislumbra tão longe assim, nem tampouco tem pensamentos tão elaborados. O que eu queria era ganhar o jogo e dar um drible bem dado pra ele ver onde tinha se metido. Eu queria ganhar. E minha gana ia além de qualquer coisa. E se suas pernas eram maiores que a minha, sua determinação não era tão grande.

Munido de uma força de vontade absurda, usei um recurso disponível naquele momento. Sem pensar, usei a muleta a meu favor. Consegui a bola de volta, num drible histórico. Alguns viram, outros não, mas a verdade é que enfiei a muletinha na canela do menino. Eu não entendia muito de ética naquela época, mas uma coisa eu já sabia: iria fazer as minhas próprias regras. E se ele ia usar a grande perna, eu iria usar a minha muleta. Oh se eu não ia!

Ouvi o som das palmas. Ouvi as crianças gritando ao fundo. Já não havia nada que pudesse me deter. Eu era uma espécie de ícone corredor que tinha um ego inflado. Se existisse um Pele por perto, ele se curvaria naquele momento. Ninguém entendia tanto de força de vontade como eu. Era uma coisa inexplicável. Ainda mais pra alguém com aquela idade.

Naquele dia nasceu algo em mim. Uma vontade de mostrar que tudo era possível, que uma boa dose de ousadia pode atacar qualquer limitação.

Eu não teria limites. Não teria limites que me distanciassem dos meus sonhos. Não escutaria aquelas vozes que tentariam me impedir de fazer algo. E nenhum perna de pau poderia me fazer encurvar ou desistir de sonhar.

Os limites sempre existiriam. E nem sempre as pessoas seriam legais comigo. Mas eu faria o possível pra driblar quem estivesse na minha frente.

Olhei para a nossa professora, que sorria, de longe, como se dissesse “você pode”, orgulhosa do meu feito, e percebi que era aquele olhar que eu queria receber dali em diante. Não merecia olhares de pena, de quem achava que eu não poderia ser feliz.

Eu podia o que eu quisesse. O campo, naquele instante, ficou pequeno demais para minha determinação. A bola foi rolando, direto para o gol. O tempo parou por alguns segundos até que ela sacudisse a rede.

Então, tudo passou em câmera lenta. As pessoas correndo em minha direção, o time todo me levantando e percebendo que só dois ou três eram necessários para me colocar no ar, já que eu era levinho. Acima de tudo, eu era um herói. Ali, de cima, celebrando aquela pequena vitória, eu sabia que estava comemorando muito mais que um simples gol no time do recreio. Estava comemorando uma superação. Estava provando para mim mesmo, e para os outros, que as capacidades não dependiam dos fatores físicos.

Pois eu era capaz.

Aquele gol foi o primeiro. Mas foi o mais marcante. Tempos depois, eu já marcava gols de bicicleta, segurava a bola com as muletinhas, jogava-a para cima, o corpo pra trás e fazia um gol. Depois dele, vieram outros, e foram tantos, que me tornei o atacante oficial do time e goleador.

O que poderia parecer um fenômeno, tinha se tornado simples. O que parecia impossível, tinha se apresentado como apenas um dos desafios que eu iria transpor. Era como se a vida me mostrasse, através dos obstáculos, que eu tinha realmente uma maneira de superar tudo aquilo que as pessoas viam como impossível.

O impossível não existiria mais. Era uma barreira que alguém tinha inventado pra fazer com que os homens não sonhassem.

Eu não seria uma vítima do destino, nem me comportaria como tal. Não me lamentaria das minhas condições. Nem diria que não podia fazer qualquer coisa. Eu mostraria para mim, e para todos que cruzassem meu caminho, que não existem limitações para quem tem vontade. Eu era pequeno demais, mas sabia o que queria.

Sendo carregado pelos colegas do time, a minha sensação era de que tínhamos a taça da Copa do Mundo. Eu tinha algo que muita gente com pernas e braços não tinha. E aquilo ninguém poderia tirar de mim.

Eu tinha vontade de viver. Vontade de viver a vida e de me fartar dela. Vontade de dar o melhor de mim e acreditar que as coisas eram possíveis. Determinação não se compra. E antes que houvesse a força do pensamento positivo, eu já acreditava — e muito.

Era como se todas as células do meu corpo dissessem isso. Como se minha alma tivesse acordado com força pra me deixar ainda mais vivo. E quando eu me sentia mais vivo, sorria internamente e ganhava um impulso extra. Eu ficava autoconfiante. Eu não via limites.

Com aquela lembrança, a química do meu corpo se alterou de repente. Sabia que lembranças faziam isso com o corpo. Eram capazes de fazer com que nos sentíssemos capazes ou derrotados.

E eu me sentia capaz. Eu seria um bom pai. Depois de algum tempo eu já sabia disso. Existia uma força cósmica universal que me impulsionava.

Não era mais aquele menino falando. Era um homem que teria um filho. Era um homem que tinha superado poucas e boas, lutado contra a morte em diversas ocasiões, que vira de frente alguns empecilhos pequenos e outros quase intransponíveis. Eu era esse cara. E estava disposto a encarar mais um desafio.

E ser um bom pai estava além de ser o provedor. Um bom pai dá ao filho aquilo que ele precisa: força pra continuar. Ele não alimenta apenas a barriga. Nutre os sonhos. Faz com que a criança caminhe sem olhar pra trás até conseguir impulso para voar sozinha. O vôo poderia ser maior, mais leve. O voo poderia ser do jeito que eu quisesse.

Não impediria meu filho de sonhar. Nem de voar com suas asas. Não diria a ele que não tivesse fantasias, que certas coisas pareciam impossíveis, que fizesse silêncio. Não tiraria o espaço sagrado da imaginação, da criatividade. Não mataria os sonhos.

Percebi quantas vezes eu ouvira, ainda criança, que devia ficar quieto, ficar em silêncio, que tinha que ficar calado. E sorri, porque na mesma medida, muitas vezes transpus os limites que me foram dados, justamente por não acreditar que eles existiam.

Meu corpo, de repente, ficou leve. E transbordou de uma felicidade que me fez chorar. Eu ia dar uma continuidade a tudo aquilo. Eu podia transmitir os valores que eu conhecia. Eu ia encorajar meu filho. Dizer a ele que nada, nada era impossível. Bastava tentar. Bastava acreditar.

Via amigos que tinham crescido engessados, prisioneiros de crenças que não eram deles, que viviam acreditando naquilo que os outros diziam que era possível. Com desejos que não eram seus.

E pensava que a maioria dos seres humanos limitados que eu conhecia não tinham nascido com limitações. Tinham sido tolhidos. Massacrados pelas verdades dos outros que teimavam em os limitar. Elas tinham sido impostas. Pela escola, pelos pais, pela sociedade. Por olhares que julgavam os outros serem ou não capazes.

Aceitar que eu podia criar um filho era mais um desafio.

Mais uma maneira de dizer para mim mesmo que aquela criança poderia ter tudo que quisesse.

Sorrimos um para o outro. Era um riso meio nervoso, mas cheio de esperança.

Por um momento me lembrei do olhar daquela professora enquanto eu corria no campo para marcar meu primeiro gol. Senti seu cheiro. Ouvi o com da sua voz. Era uma melodia.

Aquele seria um grande desafio, mas não seria o primeiro.

E certamente não seria o último. A vida ainda traria muitas surpresas. Me deixaria em queda livre. Me faria chorar e sorrir. E me arrepender depois. Mas nada me faria parar, nem qualquer força que porventura quisesse me destruir.

Eu seria forte. E ser forte significava ir além de simplesmente me superar. Ser forte era saber lidar com as limitações e entendê-las. Sem me vitimizar.

Tentei brincar com aquele momento, dizendo que eu não podia passar a mão em sua barriga, mas que poderia ouvir a batida do coração do meu filho. Não era a primeira vez que brincava com isso. Às vezes eu dizia que
se tivesse braços daria um abraço. Em outras, que se tivesse mão, colocaria a mão no fogo por certa pessoa.

Então rimos, juntos. Primeiro foi um riso de alívio. Por acreditar que tudo poderia correr bem. Depois houve um riso descontrolado, que deixava o desespero ir embora, que trazia a alegria de volta.

Era um riso provocado pela loucura que nos condicionamos a sentir pela vida. A loucura de não viver cada segundo que se apresenta. Era assim que eu embarcava na viagem mais louca da minha vida. Eu ia ser pai. Quem diria…


Tags: ,