O livro é um ensaio cuja tese fundamental é a de que a história o ocidente é marcada pela ideia de Império. A ampliação dos domínios do Império até os limites do mundo visível é um objetivo permanente, por meio de sucessivas tentativas de reestruturação, ainda que com roupagens diferentes. Um livro original e perturbador que, partindo da análise de um evento aparentemente menor, e tomando-o como ocasião para mostrar os elos entre o pequeno e o grande, o quotidiano e o eterno, o mundano e o erudito, entre outras dicotomias, alargando-se em giros concêntricos até abarcar, numa complexa filosofia da história, o horizonte inteiro da cultura ocidental.
Editora: Vide; 3ª Edição (1 janeiro 2015); Páginas: 464 páginas; ISBN-10: 8567394511; ISBN-13: 978-8567394510
Biografia do autor: Olavo de Carvalho (1947-2022) foi um escritor e jornalista brasileiro. Era considerado um polemista e um dos poucos representantes do pensamento conservador no Brasil. Foi influenciador dos apoiadores de Jair Bolsonaro. Olavo de Carvalho escreveu e editou o jornal online Mídia sem Máscara. Sua crítica focaliza-se no combate ao comunismo, ao meio intelectual brasileiro, aos grupos de esquerda e à chamada Nova Ordem Mundial. Olavo Luiz Pimentel de Carvalho nasceu em Campinas, São Paulo, no dia 29 de abril de 1947. Começou a sua carreira como jornalista na Folha da Manhã e posteriormente trabalhou na revista Planeta. Foi articulista dos jornais Folha de São Paulo, O Globo e da revista Bravo.
Leia trecho do livro
3ª edição – com posfácio inédito.
AGRADECIMENTOS
Muita gente me ajudou a realizar o projeto deste livro: Bruno Tolentino, a quem li os rascunhos da obra, me incentivou sem descanso a que a completasse, numa época em que tudo em minha vida me convidava a dispersar meus neurônios em trabalhos menores. Luciane Amato, Claudette Alves Ducati e Jô Brito ouviram a leitura de muitos capítulos, dando-me apoio moral e muitas sugestões valiosas. Dante Augusto Galeffi e seus alunos da Universidade Católica do Salvador devolveram-me a confiança nos jovens estudantes brasileiros de filosofia — leitores sem os quais este livro não faria sentido. José Enrique Barreiro, Kátia Medeiros, Luiz Afonso Filho, Maria Elisa Ortenbland e Paulo Vieira da Costa Lopes me ajudaram, de vários modos, a superar encrencas da vida prática que sem sua generosa interferência teriam me absorvido por completo e talvez inutilizado o meu pobre cérebro por alguns anos. Roxane Andrade de Souza, Meri Angélica Harakava e Sandra Teixeira resolveram mil e um pequenos e grandes problemas que teriam adiado sine die a publicação deste livro.
Esta obra pertence, por afeição e gratidão, um pouco a cada uma dessas pessoas.
OLAVO DE CARVALHO
“…the War by Sea enormous & the War by Land astounding, erecting pillars in the deepest Hell to reach the heavenly arches”.
WILLIAM BLAKE
“…sangrenta futilidade, de um tipo tão fátuo que era impossível calcular-lhe a origem por qualquer processo racional, ou mesmo irracional, de pensamento. Pois a irracionalidade malévola tem os seus processos lógicos próprios”. [ 1 ]
JOSEPH CONRAD
“Car si désireux qu’on soit de trouver une cause naturelle à ces tragiques abérrations, comment justifier leur raf inement, ce je ne sais quoi d’inutile, de superflu, qui révèle un goût lucide, une lucide déléctation?”.
GEORGES BERNANOS
1 Tradução de Lætitia Cruz de Moraes Vasconcellos (O Agente Secreto, Rio de Janeiro, Imago, 1995).
NOTA DO EDITOR À TERCEIRA EDIÇÃO
A reedição deste livro no vigésimo aniversário de sua primeira publicação é na verdade um presente para o público: essa é talvez a obra mais comentada e menos encontrada do autor. A análise consistente, conduzida com vigor por uma escrita primorosa, eleva O Jardim das Aflições à estatura de obra-prima na opinião de muitos dos que acompanham o lúcido e incansável trabalho de Olavo de Carvalho. É possível que muitos outros só não confirmem o veredicto porque ainda não leram o livro, ou pelo menos não integralmente. Bem: aqui está a oportunidade.
Questões literárias não poderiam ser, no entanto, o intuito principal dessa reedição. De fato, não o são: a atualidade da tese principal do livro – a de que a história do ocidente é marcada pela idéia de Império e de suas sucessivas tentativas de reestruturação, a cada momento com uma roupagem diferente, mas sempre com o mesmo objetivo: ampliar seus domínios até os limites do mundo visível – é o que nos leva a reeditá-lo hoje, quando mais uma vez, e talvez mais complexamente do que nunca, vivemos espremidos em meio ao combate global entre gigantes projetos imperialistas.
Se é necessário rever essa tese, avaliar em que pontos ela se articula com o cenário político e social do mundo atual, se precisa ou não de reparos ou emendas e quais seriam eles, são questões que o próprio autor responde, em entrevista transcrita no posfácio inédito “O que mudou no mundo duas décadas depois?” – outro presente que ele nos dá.
Agradecidos, resta-nos tomá-lo como guia nessa jornada dantesca para dentro do inevitável jardim das nossas aflições.
PREFÁCIO
DE BRUNO TOLENTINO
De quando em quando na vida do espírito desanuvia-se aquele céu plúmbeo e baixo em que Baudelaire via a tampa da marmita na qual, segundo ele, ferve a humanidade. São raros esses momentos, mas de uma clareza própria a desnudar como nunca os pólos extremos de uma velha e enfumaçada questão: ver ou não ver. Quem quer que tenha lido de cabo a rabo este livro há de convir que vive um destes momentos privilegiados. Tanto mais se, como eu, tiver suado frio por semanas sob o peso das centenas de impenetráveis páginas que nosso mais reputado e menos aspeado filósofo atual, o anestesiador de gerações uspianas, Dr. Gianotti, dedicou recentemente às investigações do surrado materialismo lingüístico de Wittgenstein. Não estou desmerecendo do esforço de ninguém, estou celebrando meu alívio de que a tampa da marmita se tenha afastado de mim o bastante para deixar-me perceber, não tanto aonde leva o labirinto lingüístico do vienense em sua versão paulistana (c’est assez que Quintilien l’ait dit…), mas onde começam meus inadiáveis problemas de brasileiro acuado há décadas pela futilidade do ininteligível. Soube-o enfim graças à claridade que, paradoxalmente, fui encontrar na lição de trevas deste livro, O Jardim das Aflições.
Com efeito, achei-me no pólo oposto à perplexidade em que vivia durante a leitura – que digo?! durante a suadíssima mineração que empreendi nas duras e obscuras galerias sublinguais daquele celebrado duo: o ascético autor do Tractatus (ou das Investigations?) e o ex-Papa Doc, atual Papa pálido da enrubescedora tropa-de-choque investigada neste jardim de aflições. Afortunadamente neste último, como a tampa que subitamente abandona a marmita, esperava-me um convite a bem outro tipo de investigações: as que se ocupam de verificar o real a partir da inteligência e dos fatos, nunca a partir dos fatos segundo a intelligentzia. Sedimentado através dos séculos pela perspicácia de uma nobre linhagem, esse método de investigar o como e o porque do ser-no-mundo, viga mestra de todo esforço de verificação filosófica, tem a vantagem de respeitar os dados do real, inclusive os pressupostos do saber acumulados pela tradição, em vez de buscar substitui-los, dados e fatos, pelo mundo-como-idéia, inevitavelmente sempre a idéia do mundo mais em voga a um certo momento. No momento esse lapso de um tempo mental que não acaba de acabar-se é ainda, e outra vez acabo de constatá-lo até à exaustão, de estirpe marxista, de marca universitária e de cunho dogmático-materialista, os três inseparáveis elementos da doutíssima Trindade que se propõe a recriar o mundo.
Contra tudo isso, e em particular contra a espécie de Gabinete do Dr. Caligari em que se vai transformando entre nós a veneranda idéia de Universidade, insurge-se com toda a lucidez o vigor deste livro. Obra eletrizante, rica e complexa, mas de fácil leitura justamente por causa e não a despeito da formidável erudição em que se firma. A esse respeito, uma advertência apenas, única justificativa à intrusão de um prefácio em obra tão límpida, perfeitamente capaz de tudo dizer por si mesma. Que o leitor leve em conta o caráter, não tanto do autor, ou mesmo de suas idéias, mas da tarefa que se propôs. Refratário à leitura transversal ou salteada a que às vezes incita, o argumento central deste aflitivo jardim evolui à maneira de um crescendo para desafiadoramente elucidar-se apenas nas duas partes finais: “Os Braços da Cruz” e “Cæsar Redivivus” são a sístole e a diástole do coração vivo desta obra alarmante. Assim, dos dados de um problema aparentemente sem maior importância no plano das idéias (que importa, a quem de fato pense o mundo, o sufocante mundinho dos cortesãos e doutores de mais uma trópica Bizâncio?), o autor extrai uma estonteante exposição de significações, numa visão inquietante do sentido universal da aventura da inteligência moderna. Inclusive, ou sobretudo, de seu sentido cuidadosamente oculto.
Só que, à diferença de compêndios bem mais ao gosto do dia, este livro não é resíduo de tese de doutoramento nem se propõe a enfeitar a carreira de mais um philosophe local cevado na massuda monotonia dos gabinetes à la page. Ao contrário, tudo o que aqui vai tem a ver – e urgentemente – comigo, com você, leitor, com os que somos e continuamos a ser submetidos a uma contínua barragem de slogans e esoterismos a transpirar intenções nem lá tão ocultas assim. Claro, o olhar que põe tudo isto a nu vem do olho agudo de um filósofo nato, ou seja, de um sujeito que não pode não pensar, por menos que assim fazendo consiga caber nos moldes, invariavelmente alienígenas, de um conhecido e bem mancomunado establishment. Passamos a ver claramente o que por estas bandas nos vem tapando a mente e sufocando o espírito, graças à coragem intelectual de um erudito que não se esconde atrás do que sabe, antes nos convida a examinar com ele o que investiga, expõe, explica. O que certa gente quer e persegue com uma obstinação de cachorro magro, o que andou e anda fazendo em nome da inteligência como desdentados leões de circo, ficará perfeitamente claro ao longo do passeio em que nos guia a agudeza da leitura que Olavo de Carvalho faz da história das idéias no Ocidente. Graças a sua inexaurível erudição e incontornável honestidade intelectual, torna-se enfim possível dar esse passeio para fora das brumas do obscurantismo idealista doublé de pedantismo acadêmico. E dá-lo com toda a clareza através de um assustador pomar de aflições, ou seja, de imposturas orquestradas como filosofia e penduradas ao nada como amoras de mentirinha. O leitor, ao acompanhar um filósofo de verdade em sua minuciosa e exaustiva investigação de um embuste, só tem a perder suas ilusões a respeito da seriedade dos donos da hora, por detrás de suas cátedras como abutres encapuzados em togas e títulos.
Mas que o leitor não se apresse, não há como tomar esta obra apenas como a hábil ampliação de um panfleto. Há que lê-lo até seu eletrizante gran finale para perceber todo o escopo deste livro singular. Seu método de composição, à primeira vista paralelo aos procedimentos sinfônicos de um Sibelius, por exemplo, calca-se no entanto em modelos bem mais antigos e prováveis. É talvez o primeiro esforço de Olavo de Carvalho para pensar em público segundo sua Teoria dos Quatro Discursos, proposição de seu ensaio pioneiro, Uma Filosofia Aristotélica da Cultura (IAL & Stella Caymmi Editora, Rio de Janeiro, 1994). Segundo o Aristóteles de Olavo de Carvalho, da esquematização objetiva que atribui a um conjunto de dados sensíveis uma figura dotada de sentido (Poética), emanariam interpretações discordantes fortalecidas no confronto das vontades que as apoiam (Retórica). Sobre essa massa crítica do acúmulo dos esforços retóricos seria então possível o exame dialético que, confrontando e hierarquizando, indicaria o sentido de uma solução racional (Dialética). Só então tornar-se-ia factível estabelecer métodos e critérios propriamente científicos, capazes de levar a questão a uma resolução maximamente exata (Lógica). A tarefa específica do filósofo seria, portanto, a de colher as questões ao nível retórico e elaborá-las em hipóteses formais para as entregar à busca de uma solução lógico-científica.
Nada de estranhar, assim, que trabalho tão ímpar, e em última análise tão aterrador quanto o estrilo de um despertador à meia-noite, parta de impressões subjetivas para, através do combate retórico, montar as oposições que só na conclusão (naquelas duas últimas partes, ou Livros, no sentido agostiniano) vai-se definitivamente elaborar, um tanto paradoxalmente à maneira de um tutti orchestrale, num conjunto de investigações dialéticas. Longe de constituírem um empecilho ao entendimento, a gênese como a elaboração da obra aqui ajudam muito o leitor: a mim pareceu-me muitíssimo estimulante progredir através da “multiplicidade de temas e planos que faz a trama compósita deste livro”, como nos adverte uma nota do autor. O qual, nisto ao menos, acha-se logo em excelente companhia: no Ocidente a filosofia pós-helênica teve muito cedo entre seus cumes obras como as Confissões de Santo Agostinho, para citar apenas um “compósito” que à primeira vista pouco tem de ostensivamente filosófico, como o entendem os “atuais” pupilos do Dr. Caligari. A pedantaria engordaria bem mais tarde, a presente identificação entre filosofia e adiposidade de jargão é fenômeno tão moderno quanto os enlatados de supermercado.
Misto de memórias e ensaio filosófico, de reportagem e panfleto, de política e de metafísica, a leitura deste livro (às antípodas do tijolaço com que acaba de brindar-nos o acima citado mentor de uma filosofia tão nativa quanto uma agência de importações, ou de substituição de importações) sua leitura, reafirmo, faz-se por isso mesmo apaixonante e como que compulsiva; seu peso erudito, sem nada perder em densidade, acaba por não pesar. Surpreendente é vê-lo sair da mesma pena que ainda recentemente nos dava uma rigidíssima teoria dos gêneros (v. Olavo de Carvalho, Os Gêneros Literários. Seus Fundamentos Metafísicos, IAL & Stella Caymmi Editora, Rio de Janeiro, 1993). Mas talvez o autor, à maneira de todo poeta frente à própria poética, não se tenha dado um código senão para submetê-lo às necessárias infrações do ato criador…
Uma conferência sua semi-inédita (“A dialética simbólica”, existente apenas como apostila didática no Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades do Instituto de Artes Liberais do Rio de Janeiro)[ 2 ] ajudou-me a elucidar algo mais o método deste pensador originalíssimo até mesmo na forma a que molda seu discurso. É que, ao quanto pude perceber, à diferença do modelo hegeliano a dialética de Olavo de Carvalho não buscaria uma síntese temporal futura, mas antes recuaria a condições prévias, principiais, a bem dizer. Não se trataria aqui do conhecido modelo tese-antítese-síntese, mas sim, em caminho inverso, de um movimento tripartite oposição-complementação-subordinação. Ou seja: nosso homem parece partir de uma antítese observada no campo dos fatos para hierarquizar os termos opostos e resolvê-los no princípio comum de que emanam. O qual, por natureza, é sempre anterior àqueles termos, ora lógica, ora cronologicamente, e não raro ambas as coisas. Até então eu não havia encontrado este método aplicado à construção de uma sistemática propriamente filosófica, mas nele pareceu-me reconhecer a rica tradição da hermenêutica simbólica. Mais uma surpresa num pensador inclassificável, e por isso mesmo no meu ver indispensável hoje, espécie entre nós, e por conta dos provados e clássicos valores que o forjaram e o sustêm. Já não hesito mais: tenho o pensamento de Olavo de Carvalho por paradoxalmente intemporal e atualíssimo, áspero e lúcido, insubmisso e fértil para muito além das meras conjunturas de nossa douta e crônica tropicalidade atávica.
Sua forma mentis foi evidentemente forjada a fogo, no corpo a corpo do autodidata sem alternativas num país ocupado pela legião dos ressentidos ou pelos batalhões de imbecis, como ao tempo da formação intelectual do autor era cronicamente o nosso, por décadas entre o fuzil da Redentora e o realejo utopista de nossa incurável e festiva intelligentzia. Sim, Olavo de Carvalho (parece incrível naqueles tempos de tanta seca!), a exemplo de Machado de Assis, Capistrano de Abreu, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Luís da Câmara Cascudo, João Cabral de Melo Neto, Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Caio Prado Jr. e tantos outros espíritos livres da raça, teve que aprender quase sozinho a imensidão do que hoje sabe, e talvez por isso mesmo o tenha sabido inscrever no mármore candente da mais limpa tradição letrada do Ocidente.[ 3 ] Leitor multilingüe, incansável e metódico, partiu very advisely do seu – e nosso Pai de Todos –, Aristóteles, saudou e desnudou os belos fantasmas do platonismo, passou reverente pela nata da sabedoria escolástica de Sto. Tomás de Aquino a Leibniz, aportou a Schelling e a Husserl, estes dois gigantes modernos, para chegar de olho aberto a Kurt Gödel e a Éric Weil, pelo que me pareceu perceber. Per strada circunvolteou sabiamente seja o pot-pourri liliputiano dos hoje inúmeros e celebrados philosophes, seja o etéreo campo minado do guénonismo, sem pisar-lhes a uns e outros seus explosivos ovos de cobra, thank God! Resta que nada disto é aceitável, menos ainda familiar, ao nosso encruado marxismo universitário, como se vê. Como se tem visto, tal receita é própria antes ao recebimento de aspas aposto ao seu justíssimo título de filósofo, muito mais merecido que aos diplomas, PhDs, cátedras, honrarias, subvenções e sabujices de nosso perigosíssimo establishment pensante; ou antes, pendante, neologismo de rigueur ante tantas pedânticas pendências e dependências das infindáveis listas de importações canonizadas.
É que, como toda verdadeira vocação filosófica, a de Olavo de Carvalho é incompatível com o alinhamento compulsivo (e repulsivo) a que nos vêm acostumando por aqui os donos de cátedras et caterva. Os tremeliques de Mademoiselle Rigueur, tão ao gosto da fábrica de esterilidades diplomadas com sede à Rua Maria Antônia, São Paulo, SP, se por um lado desencorajaram de munir-se de títulos prestigiosos aquele que dentre nós hoje possui talvez o intelecto mais corajosamente individual entre seus pares, acabou por avisá-lo sobre o que de fato valia o que perdeu. Sem dúvida a circunstância dessa solidão defensiva e profilática o terá, not least, ajudado a balizar justamente o terreno minado da autocastração por timidez, subserviência ou simplesmente descaro, tão patentes em nosso incipientíssimo e prudentíssimo intellectual output. Nesse empolado contexto, sua fulgurante crítica do binômio Epicuro-Marx é pura heresia, anátema, suicídio. Mas a quem lhe importaria alongar a sobrevida na cidade dos mortos, dos zumbis, dos hipnóticos hipnotizados? O suicídio – em termos acadêmicos – de Olavo de Carvalho, patenteado uma vez mais neste livro imperdoável, soa-me como o clarim de uma adiada e temida ressurreição da independência crítico-filosófica da nação.
Com esta sua rigorosa e instigante investigação de aflições – mais um livro do campineiro fora dos eixos segundo os importadores das fórmulas da invenção da roda –, Olavo de Carvalho volta a nos dizer em alto e bom som: basta de sestas à sombra da utopia e do marasmo mental, são mais que horas de acordar para cuspir… e pensar! Quanto a mim, que onde deixei um país encontrei trinta anos depois um acabrunhante acoplamento de pedantaria e show business, a alegre festa no velório acaba – uma vez mais! – com este admirável livro, nosso retrato assustador, O Jardim das Aflições. Que os mortos enterrem seus mortos: sai da frente, leitor…
RIO DE JANEIRO, JULHO DE 1995.
2 Em 2007, a É Realizações (São Paulo) publicou A dialética simbólica: estudos reunidos, que contém também a teoria sobre Os gêneros literários: seus fundamentos metafísicos, o estudo Símbolos e mitos no filme “O silêncio dos inocentes” e outros estudos críticos – NE.
3 E não é só no Brasil que a decadência das universidades acaba por revalorizar o autodidatismo: “A todos os meus melhores alunos de graduação eu digo para não cursarem pós-graduação. Façam qualquer outra coisa, garantam a sobrevivência do jeito que for, mas não como professores universitários. Sintamse livres para estudar literatura por conta própria, para ler e escrever sozinhos, porque a próxima geração de bons leitores e críticos terá de vir de fora da universidade” (Harold Bloom, “Harold Bloom contra-ataca”, Folha de São Paulo, 6 de agosto de 1995).
LIVRO I
PESSANHA
CAPÍTULO 1
A NOVA HISTÓRIA DA ÉTICA
§1 Introdução – O que Epicuro veio fazer aqui, ou: Biografia deste livro.
“It is strange to find that, here and in other parts of South America, men of undoubted talent are often beguiled by phrases, and seem to prefer words to facts” – JAMES BRYCE.[ 4 ]
Um escritor educado, como um bom convidado à mesa, não deve ir logo de entrada falando de si mesmo. Transgrido aqui as boas maneiras por necessidade intrínseca do assunto, que não obstante consiste — posso garantir — em coisas cuja relevância transcende infinitamente a pessoa do autor.
A necessidade a que me refiro provém do seguinte: este é, dentro de certos limites, um livro de filosofia, e uma tese filosófica pouco significa se amputada das razões que a ela conduzem e das motivações geradoras da pergunta a que responde. Daí a conveniência de garantias preliminares contra um duplo equívoco possível: de um lado, o leitor pode acolher ou repelir a tese em abstrato, no ar, sem saber a que coisas e seres se refere na vida deste mundo; de outro, pode rejeitar de cara a formulação mesma da pergunta, sem tomar o cuidado de seguir até o fim o fio dos argumentos onde se manifestará, só então, o seu verdadeiro sentido.
Contra o primeiro desses equívocos, devo advertir que as opiniões expressas no começo são apenas um começo; que aceitá-las ou rejeitá-las in limine é impedirse de entender aonde levam; que o leitor, ao tomar posição pró ou contra logo nas primeiras páginas — ou, pior ainda, ao fundá-la numa impressão do momento —, estará se enganando a si próprio, tomando este livro como expressão de opiniões prontas, quando ele é, como há de ver quem o leia até o fim, substancialmente uma investigação; investigação que, do meio para diante, toma de fato um rumo bem diverso daquele que parecia anunciar no começo.[ 5 ]
Mas contra o segundo dos males mencionados só cabe o recurso de contar os fatos, de expor a situação real e vivida de onde a pergunta emerge. No caso deste livro, isso é absolutamente obrigatório: os acontecimentos que o sugeriram determinaram as condições em que foi escrito — as quais, portanto, fazem parte do assunto.
Digo então que o miolo destas páginas redigi numa só noite de maio de 1990, sob o impacto da aversão que haviam despertado em mim as palavras de José Américo Motta Pessanha, ouvidas algumas horas antes numa conferência sobre Epicuro no ciclo de Ética que a Secretaria Municipal de Cultura promovia no Museu de Arte de São Paulo. Isto projetará talvez a imagem de um fanático, a espumar de cólera ante a opinião adversária. Mas não foi nada disto. O que Pessanha suscitara em mim não fora uma discordância, fanática ou razoável, indignada ou mansa. Fora uma perturbação da alma, uma decepção, uma tristeza desesperançada, uma agitação soturna carregada de maus presságios. Meras opiniões não produzem este efeito. O título prometia “delícias”,[ 6 ] mas ali eu só encontrara pesares e aflições. O Jardim de Epicuro parecia-se estranhamente com o Jardim das Oliveiras.
Cheguei em casa pela meia-noite e, não conseguindo pegar no sono, varei a madrugada anotando objeções e protestos que, contra minha vontade consciente de adormecer e esquecer, não cessavam de brotar da minha mente como reações de um organismo febril à invasão de uma toxina. Era isto, precisamente: as frases de Pessanha eram um entorpecente, que entrava pelos ouvidos da platéia, envenenava os cérebros, movia o eixo dos globos oculares, fazendo ver tudo diferente do que era, num giro louco da tela do mundo. Um público de quinhentas pessoas submetera-se à intoxicação com sonsa alegria, numa deliqüescência mórbida, como crianças a seguirem um novo flautista de Hamelin, sugestionadas pela voz melíflua, pelo jogo de imagens que dava às lorotas mais óbvias um intenso colorido de realidade. Puro feitiço, no melhor estilo Lair Ribeiro.
Eu saíra dali em estado de estupor, sem crer no que acabara de presenciar. Em casa, tentando adormecer, via em alucinações as poltronas do MASP lotadas de zumbis sem olhos. Saltava da cama com a cabeça fervilhando. Tudo o que a platéia não quisera ver parecia ter se condensado no meu subconsciente, exigindo vir à tona. Querendo ou não, eu me tornara o sintoma denunciador de uma neurose coletiva.
O que mais me impressionava, na trama de erros tecida por Pessanha, era a sua densidade. Não havia ali uma única brecha por onde pudesse se introduzir uma discussão inteligente. Cada palavra parecia calculada para desviar a atenção do ouvinte, impedi-lo de olhar o assunto de frente, fixá-lo num estado de apatetada passividade ante o fluxo de sugestões, hipnotizá-lo e arrastá-lo delicadamente pela argola do nariz até uma conclusão que ele já não estaria mais em condições de julgar e à qual se curvaria com um sorriso de felicidade bovina e um mugido voluptuoso. O grumo compacto de absurdidades exalava uma radiação debilitante sobre as inteligências, produzia a acomodação progressiva a um estado de penumbra, de lucidez diminuída, até que, perdida toda vontade de enxergar, a alma da vítima se amoldasse às trevas como num leito fofo, aspirando o adocicado perfume do esquecimento.
Não sei se me faço compreender. Há uma grande diferença entre o doutrinador que mete simplesmente na cabeça das pessoas uma idéia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando suas inteligências para que nunca mais atinem com a idéia certa. O primeiro comanda um exército de palavras, que podem ser enfrentadas com palavras. O segundo exerce uma ação quase física, produzindo feridas num estrato profundo que os meros argumentos não atingem. Feridas insensíveis, que só começarão a doer quando for tarde para curá-las — e quando a lembrança de sua origem estiver demasiado apagada para que se possa identificar o rosto do agressor.
“Discordar”, mesmo com veemência fanática, seria aí tão descabido quanto tentar deter um assaltante à força de citações do Código Penal. A ação do feiticeiro passa ao largo da consciência, como uma neurose, um vício, uma droga; ela salta por sobre a mente, remexe os órgãos dos sentidos, move tendões e músculos, instaura novos reflexos involuntários; ela se esquiva ao olhar humano e vai exercer seu domínio diretamente sobre o macaco residual que habita em nós; ela não pode ser desfeita pela persuasão racional.
Saí dali enjoado como um autêntico careta sai de uma festinha de embalo. Não que nunca tivesse visto coisa igual. Vira muitas, mas somente produzidas por feiticeiros confessos, por profissionais da dominação psíquica, no recesso de seitas obscuras que não se adornavam do prestígio da autoridade acadêmica nem se abrigavam sob a proteção do Estado. Vira-as também em demonstrações de hipnose, de Programação Neurolingüística, de técnicas psicológicas que, reduzindo o cérebro humano a uma passividade vegetal, ao menos não proclamavam, com isto, estar lhe transmitindo cultura, autoconsciência, juízo crítico. O que me espantava era que esse gênero de manipulação, próprio somente para o tratamento de doentes mentais inacessíveis à comunicação consciente, ou então para usos perniciosos e ilícitos, tivesse deixado o recinto das clínicas psiquiátricas e das seitas ocultistas, para ser empregado por acadêmicos como um sucedâneo da transmissão de idéias. Eu estava consciente, doloridamente consciente do declínio intelectual brasileiro, da debacle do ensino universitário, mas nunca imaginara que a coisa pudesse baixar a esse ponto. Supunha que a redução do pensamento à tagarelice ideológica fosse o limite inferior da decadência, consolava-me com aquelas palavras que as avós sempre dizem quando a gente despenca da bicicleta: “Do chão não passa”. De súbito, o chão se abrira: pelas mãos de Pessanha, o público era convidado a mergulhar num abismo de inconsciência, na treva sem fim de um definitivo adeus à inteligência.
Eu nunca tinha visto José Américo Motta Pessanha. Mas conhecia sua fama e havia notado nela um traço peculiar: seus ouvintes saíam fascinados, tecendo ao conferencista os maiores elogios, mas se mostravam incapazes de dar qualquer noção clara do que ele dissera. Guardavam uma impressão difusa, intraduzível em palavras, envolta num halo de prestígio místico. A alguns objetei que o mesmo acontecia aos ouvintes de Hitler, mas em resposta recebi aquele sorriso de condescendência desdenhosa com que o detentor de um segredo beatífico marca a distância que o separa do profano. Apaziguei minhas inquietações explicando essa reação como esnobismo do público, sem suspeitar que ela pudesse fornecer algum indício quanto ao caráter do orador. Imaginei apenas que fosse um sujeito abstruso, a quem a platéia indenizava com tanto mais fartura de aplausos levianos quanto maior a quota de compreensão que lhe sonegava. Nada, mas absolutamente nada, me fazia antever o que encontrei no MASP.
Não consegui conciliar o sono. Após cinco tentativas falhadas, assumi que era um sintoma vivo e me encaminhei ao divã mais próximo — a máquina de escrever — para verbalizar os conteúdos neuróticos que a magia de Pessanha injetara em meu cérebro. Como sempre acontece em tais situações, verbalizálos foi o bastante para exorcizá-los, desfazer o macabro encantamento, recuperar o senso do real momentaneamente entorpecido pelas artes de um feiticeiro. Esse exorcismo constitui duas quintas partes do presente livro, onde, ao fio dos argumentos de Pessanha, examino a filosofia — ou seja lá o que for — de Epicuro, de modo a curar-me dela para sempre.
Na noite seguinte, li o manuscrito para uma roda de amigos e o guardei, tencionando dar-lhe mais tarde uma forma final e remetê-lo a Pessanha, com o convite para uma réplica, se lhe interessasse, antes da publicação em livro.
Imprevistos e correrias de uma vida anormalmente repleta deles impediramme o retorno a este trabalho, que ficou jazendo, interminado e tosco, no fundo de uma gaveta, e me acompanhou em uma mudança de cidade e cinco mudanças de casa. Ocupações variadas desviaram-me para outros assuntos. Larguei Epicuro, esqueci Pessanha. No fundo, era o que eu queria.
Foi só em fins de 1992 que, cogitando as razões da súbita e inusitada popularidade adquirida pela palavra “ética”, me dei conta do papel que tivera aquele ciclo de conferências na preparação discreta de acontecimentos que depois iriam avolumar-se e desabar sobre o país como uma tempestade. Ele fora um sinal de largada, quase inaudível, da campanha pela “Ética na Política”.
Tive então um impulso de retomar este trabalho. Mas, na maçaroca de papéis que trouxera de São Paulo comprimida em cinqüenta e tantas caixas, não pude encontrar o manuscrito.
Nos meses seguintes, o curso dos eventos políticos tomou um rumo imprevisto e, para mim, esclarecedor. A campanha da “Ética”, que começara como um amplo movimento de conscientização moral, empenhado em desarraigar da nossa mentalidade política alguns vícios seculares, foi estreitando cada vez mais seus objetivos, até concentrá-los num alvo único e imediato: a retirada do Sr. Fernando Collor de Mello da Presidência da República. Alcançada esta meta, a campanha festejou o evento como se ele tivesse dado plena satisfação aos seus anseios, como se as mais profundas exigências morais da nação tivessem sido cabalmente saciadas mediante a simples remoção daquele infausto mandatário.
Meditando os eventos à luz do preceito de Hegel, segundo o qual a essência de uma coisa é aquilo em que ela enfim se torna, achei então que a destruição política do Sr. Collor de Mello, e a conseqüente ascensão das esquerdas à posição dominante, tinham sido realmente os únicos objetivos da campanha, que não começara propondo metas tão gerais, amplas e profundas, senão para melhor atingir o alvo particular, estreito e raso que lhe interessava. É verdade que tout commence en mystique et finit en politique, mas o espantoso, no episódio, era a desproporção entre a quantidade de mystique que se mobilizara e a mesquinhez do seu resultado político. Uma campanha de escala nacional que se apoia numa retaguarda filosófica, apela a todas as forças intelectuais da civilização, convoca as luzes dos sábios do passado e se dá todos os ares de uma revolução cultural só para eliminar um adversário político ou meia dúzia deles, é realmente um daqueles casos em que o excesso de chumbo só faz ressaltar pateticamente a míngua de passarinhos. Governantes muito mais poderosos que o Sr. Collor, Estados, regimes, reinos e impérios tinham sido derrubados com muito menos investimento intelectual. Mais tarde, quando a campanha voltou à carga, desta vez contra deputados e empreiteiras, a “ética” que se reivindicava assumiu de vez sua verdadeira natureza de mero impulso de vingança política voltado contra alvos descaradamente seletivos.[ 7 ] Tudo isso é muito normal em política, onde cada facção procura sempre se arrogar o monopólio do bem. O estranho era que a inaudita mobilização da classe intelectual não desse à campanha nem mesmo um arremedo de rigor, de seriedade, de autoconsciência moral; que a farsa de uma ética reduzida a grosseiras expressões de ressentimento parecesse contentar a todos os cérebros incumbidos, em princípio, de ser exigentes consigo mesmos. Aparentemente, os âncoras de TV tinham se tornado guias e orientadores da intelectualidade mais pomposa e autoritária, que se deixava guiar ao som de slogans, com festiva credulidade, como se a destruição de seus desafetos políticos valesse a abdicação de toda inteligência crítica. Amigos com quem comentei o caso explicavam-no pelo revanchismo: como macacos a espancarem a onça morta, os esquerdistas buscavam uma compensação por duas décadas de humilhações, perseguindo os remanescentes de uma ditadura que não tinham conseguido vencer e que só se desfizera, enfim, por vontade própria. Mas a explicação, embora parcialmente verdadeira, não me satisfazia. O revide era tardio demais, os inimigos já estavam quase todos mortos ou esquecidos, e os militantes da moral não relutavam em recrutar para suas tropas notórios servidores dos governos militares, como o senador Jarbas Passarinho. Não era possível que, decorrido tanto tempo, o desejo de vingança ainda tivesse força bastante para obnubilar todas as inteligências, para atirar ao limbo as exigências mais comezinhas do amor à verdade, em troca de resultados políticos de valor duvidoso. Estávamos, enfim, diante de um fenômeno estranho, cuja singularidade, no entanto, parecia escapar inteiramente àqueles mesmos que o protagonizavam.[ 8 ] E — conjeturei então — talvez fosse possível encontrar, na esquisitice geral do ambiente pátrio, um princípio de explicação para aquilo que eu vira no MASP.
Diante dessa expectativa, não pude mais adiar a retomada deste trabalho. Revirando de novo meus papéis, agora com o empenho investigativo de um “araponga” do PT, localizei o manuscrito e fiz-lhe os acréscimos que àquela altura me pareciam necessários.
Nada alterei nele em substância. Apenas mudei um pouco a ordem, acrescentei os livros finais e este começo. Toda a parte inicial — do §2 ao §17 — é o texto de 1990, cortado de excrescências, aumentado de esclarecimentos indispensáveis e melhorado — espero — nos detalhes da expressão. Algumas correções foram bem minuciosas, mas deixaram inalterado o sentido do conjunto. Acrescentei também muitas, muitas notas de rodapé. Muitas e longas. Notas de rodapé são uma das mais amáveis invenções humanas. Além da sua função moral de testemunharem o justo reconhecimento de um escritor para com seus fornecedores de material; além da economia que nos facultam ao abreviar um argumento mediante saltos que a indicação de um mero título preenche; além da aparência verdadeira ou falsa de probidade científica de que revestem o conteúdo de um livro; além do benefício pedagógico de abrirem para o leitor um leque de estudos complementares; além mesmo do inegável deleite psicológico que um autor pode tirar da ostentação erudita, além de todas essas coisas apreciáveis e reconfortantes, elas nos dão algo ainda melhor. Elas representam, dentro do corpo de um livro, as sementes de outros tantos livros possíveis, as linhas de investigação que tiveram de ser abandonadas para que o livro pudesse chegar a um ponto final. Abandonadas mas não desprezadas. Sua presença nas notas manifesta a confissão de que este não é o único nem o melhor dos livros possíveis sobre o seu assunto. O mesmo autor deste, daqui de onde fala ao distinto público, pode agora mesmo vislumbrar em pensamento outros tantos melhores. Mas escrever, por ora, só pôde escrever este.
Hoje surpreendo-me de ter podido escrever tanto numa só noite. Mas, pensando bem, não poderia ter sido de outra forma. A fala de Pessanha era tão cheia de subentendidos, de intenções veladas, de mensagens camufladas para uso dos happy few, que, mais que contestá-la, era preciso desvendá-la, mostrar toda a cosmovisão que ela trazia de contrabando por baixo do sentido explícito das palavras. Como esta cosmovisão, por sua vez, convocava reforços de eras pretéritas para dar apoio a uma política do presente, não se poderia elucidá-la sem ampliar formidavelmente o círculo das investigações, com muitas idas e vindas entre a superfície da política atual e as camadas mais profundas de uma antigüidade quase esquecida. Tão vasta era a área das implicações, que arriscaria perder de vista a forma do seu conjunto quem se aventurasse a percorrê-la aos poucos, alguns metros por dia. Para fazer face à influência difusa e embriagante que as palavras de Pessanha espalhavam no ar como um spray, era preciso um sobre-esforço de compactação, que espremesse numa área limitada e visível a multidão variada de fantasmas evanescentes. Não creio que isto se pudesse fazer senão tudo de uma vez, num lance súbito de espadachim ou de pintor zen, para conservar, na multiplicidade dos temas e dos planos de abordagem, a unidade de uma intuição simultânea.[ 9 ]
***
A notícia da morte de José Américo Motta Pessanha, ocorrida no início de 1993, mas da qual só tomei conhecimento muito depois, não alterou em nada minha disposição de publicar este livro, já pronto, na parte que a ele mais de perto se refere, desde 1990. Sustentam essa minha decisão três razões. A primeira é que, apesar da veemência com que contesto aqui as idéias de Pessanha, nada digo contra sua pessoa, nem poderia fazê-lo se quisesse, por ignorar tudo a respeito. A segunda é que a morte de um filósofo não torna verdadeiras as idéias falsas que tenha defendido, nem exime do dever de contestá-las, para defesa e esclarecimento dos vivos, quem não tenha podido fazê-lo em vida dele. A terceira é que aquilo que possa ter havido de maligno na influência de Pessanha sobre o público não veio dele enquanto indivíduo, mas enquanto membro atuante de um grupo; grupo este que continua vivo e passa bem.[ 10 ]
Quanto ao tom, o deste livro é às vezes de uma franqueza que destoa, reconheço, em debates letrados, pelo menos na media luz da hipocrisia que se tornou o padrão oficial da linguagem educada nacional. Mas não se trata aqui de discutir idéias, de confrontar na serenidade de uma comum devoção à ciência várias imagens da realidade, para encontrar a melhor. As idéias, para certas pessoas, não são imagens da realidade: são poções mágicas, de que se servem para enfeitiçar o público e colocá-lo a serviço de fins com que, lúcido e informado, ele não se prestaria a colaborar de maneira alguma. E um feitiço não se discute no plano teórico: um feitiço desfaz-se, mediante a exibição dos chumaços de cabelos e dos retalhos de roupas da vítima, que o feiticeiro, em furtiva incursão, escondeu entre restos de cadáveres. Não se trata, portanto, de refutar argumentos errôneos, emitidos com a inocência de uma equivocada busca da verdade. Trata-se, como em psicanálise, de desenterrar velhas mentiras esquecidas, de desocultar intenções que chegam a ter algo de sinistro, de revelar o mal para que pereça exposto à luz, amputado da escuridão que o alimentava e protegia. Não faço este trabalho com prazer. Faço-o por uma obrigação interior, da qual fugi o quanto pude, como o testemunha o atraso deste livro em relação aos fatos que o motivaram. Faço-o com resignada boa vontade, mas não consigo esconder a repugnância que sinto ao lidar com esse gênero de materiais. Algumas expressões mais fortes, que emprego no texto, espero que me sejam perdoadas como naturais desabafos de um homem que tem de falar sobre o que preferiria esquecer.
Alguns leitores talvez digam que dei uma importância desmesurada a um acontecimento superficial e passageiro: a refutação de uma simples conferência não requer todo um livro. A objeção não seria de todo despropositada, se este livro tomasse a conferência de Pessanha por seu objeto, e não por simples ocasião e sinal para mostrar, num giro por dois milênios de história das idéias, o círculo inteiro das condições remotas que a possibilitaram, e das quais ela extrai toda a significação que possa ter para além das miudezas políticas que constituem sua motivação imediata. Essas condições é que são o tema do livro. Um evento de porte bem modesto pode tornar-se assim elucidativo do movimento maior da História, quando nele se cruzam de maneira identificável as forças que se agitam à superfície do dia e aquelas que vêm, num esgueirar soturno, desde o fundo dos séculos. Um escritor cujo nome não me ocorre sugeriu, para simbolizar o cúmulo da insignificância, a altercação de dois velhinhos num asilo. Esqueceu-se de dizer que o núcleo do enredo d’A Montanha Mágica de Thomas Mann, livro que condensa todo o drama das idéias do século XX, não passa da altercação entre dois velhinhos — Naphta e Settembrini — no asilo de tuberculosos em Davos. E Perez de Ayala fez dos bate-bocas entre dois velhinhos de miolo mole — Belarmino y Apolonio — o resumo da universal altercação; no fim os velhinhos fazem as pazes… ao reencontrar-se num asilo. Como se vê pelo exemplo dessas belicosidades geriátricas, aquilo que pouco significa por si mesmo pode significar muito pelas causas que revela. No fim deste livro o leitor verá como o personagem dos primeiros parágrafos terá se tornado pequeno — o eco débil e longínquo que repete às tontas, na periferia da História, a cantiga milenar do engano.
De outro lado, o hábito brasileiro de olhar as manifestações culturais como um adorno supérfluo impede de enxergar as tremendas conseqüências práticas que as idéias filosóficas, mesmo difundindo-se apenas num estreito círculo de intelectuais, podem desencadear sobre a vida de milhões de pessoas que nunca ouviram falar delas e que, se ouvissem, não as compreenderiam. Ora, nada se parece mais a um adorno exterior, a um inócuo passatempo botânico de nefelibatas, do que uma conferência sobre o Jardim de Epicuro no estilo floreado de Motta Pessanha. No entender do superficialismo brasileiro, só mesmo a um doido varrido como eu ocorreria ver ali algo de mortalmente sério e perigoso. Mas, por olhos doidos ou sãos, o que vi estava lá, escondidinho e letal sob as flores. Posso provar isto, mas não vou fazê-lo na Introdução porque o faço no restante do livro.
Para liquidar de vez com a objeção, permito-me citar o único autor do qual posso me gabar de ter lido tudo quanto escreveu, e pelo qual nutro uma certa estima mista de melancolia e decepção: eu mesmo. “Uma lei constitutiva da mente humana — disse esse autor em A Nova Era e a Revolução Cultural — concede ao erro o privilégio de poder ser mais breve do que a sua retificação”.
Ademais, como o leitor verá sobretudo nas últimas páginas, este livro não se limita a desfazer um ou vários erros, mas aponta, positivamente, a direção onde devem ser buscadas as verdades que eles renegam e renegando encobrem. Há aqui os esboços de uma interpretação global da história cultural do Ocidente moderno, que seria talvez melhor apresentada se em forma sistemática e fora de qualquer contexto polêmico. Essas idéias são a origem primeira e a meta do trabalho, que somente pelo valor ou desvalor delas admite ser julgado, e não pela importância muita ou pouca dos fatos, locais e momentâneos, que deram ocasião e pretexto ao seu aparecimento.
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Ainda um pedido. Que o tom deste livro, e sobretudo o fato de ser esta já a minha terceira obra de combate,[ 11 ] não levem ninguém a conclusões precipitadas sobre o temperamento do autor, sujeito pacífico e tolerante até o limite da paspalhice. É que a crítica, segundo dizia John Stuart Mill, é a mais baixa faculdade da inteligência, e na ordem de publicação dos meus escritos preferi começar de baixo, da ruidosa atualidade, reservando as partes mais altas e serenas para melhor ocasião, e deixando-as mostrar-se apenas, por agora, sob a forma de apostilas de meus cursos privados, enquanto as idéias amadurecem e se revestem de uma forma verbal melhor.[ 12 ] Meus alunos podem atestar que a polêmica está longe de constituir o centro dos meus interesses. Também declaro peremptoriamente que não tenho a menor ilusão de influenciar no que quer que seja o curso das coisas, que vai para onde bem entende e jamais me consulta (no que aliás faz muito bem). Meu propósito não é mudar o rumo da História, mas atestar que nem todos estavam dormindo enquanto a História mudava de rumo. Não escrevi este livro pensando em seus efeitos políticos possíveis, mas simplesmente em esclarecer um pequeno círculo de amigos e leitores que desejam ser esclarecidos e me julgam capaz de ajudá-los nisso.
Nem mesmo pretendo mudar a opinião de quem goste da sua. Hoje em dia as pessoas criam opiniões como animais de estimação, sucedâneos do afeto humano. Quanto às minhas, trato-as a pão e água, ginástica sueca e chibatadas, levando muitas delas à morte por definhamento, a outras estrangulando no berço ou esmagando-as a golpes de fatos que as desmentem: fico com as que sobrevivem. Não posso recomendar esse regime às almas sensíveis, mas desconheço outro que possa nos colocar na pista da verdade, supondo-se que a desejemos. E se aqui submeto idéias alheias a esse tratamento impiedoso, é porque algumas delas já foram minhas — e, como disse Goethe, contra nada somos mais severos do que contra os erros que abandonamos.
§2 As conferências no MASP
Na gritaria geral contra a falta de ética, ergueu-se finalmente a voz da filosofia para clarear as idéias do povo e indicar à nação o caminho do bem.
É da tradição os filósofos abandonarem o silêncio da meditação para ir discursar às gentes, nas horas de escândalo e ruína. Sócrates ia pelas praças cobrando os direitos da consciência, aviltada pelos abusos da retórica. Leibniz, chocado com a guerra entre cristãos, clamava pela união das igrejas. Fichte, do alto de um caixote de beterrabas, convocava os alemães à defesa da honra nacional pisoteada pelo invasor. Não é de hoje que a filosofia assume o encargo de guiar o mundo, quando ele, desorientado e perplexo, já não consegue se guiar por si mesmo.
Tão necessários são os filósofos nessas horas, que, não havendo nenhum à mão, as nações nomeiam filósofos honorários, ou, em terminologia mais moderna, biônicos. Foi assim que surgiu o termo philosophes, que, grifado ou entre aspas, designa os ideólogos da Revolução Francesa. A diferença é simples: um filósofo busca a explicação do real segundo a sua própria exigência de veracidade e segundo o nível alcançado por seus antecessores; um philosophe busca explicações na estrita medida do mínimo que o mundo exige daqueles a quem segue. Discursando do alto de um caixote de beterrabas, ambos podem fazer igual efeito, pois a diferença está num plano acima do que o público enxerga. Para este, Voltaire é filósofo tanto quanto Leibniz ou Aristóteles.
No caso brasileiro, a incumbência de figurar no papel de consciência filosófica nacional foi atribuída ao grupo de professores universitários que orbita em torno de Marilena Chauí, titular da Secretaria Municipal de Cultura, organizadora do ciclo de Ética do MASP e, last not least, autora de um premiado Convite à Filosofia, onde são servidas aos convidados algumas lições preciosas, como por exemplo a de que na lógica de Aristóteles “o acidente é um tipo de propriedade” – mais ou menos o equivalente a dizer que na geometria de Euclides o quadrado é um tipo de círculo.
Vejamos o que a consciência filosófica nacional, assim representada, pôde fazer para reconduzir ao bom caminho da ética uma nação perdida.
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O intuito declarado dos organizadores do curso era triplo: dar um esboço cronológico das principais doutrinas éticas, lançar luz sobre a questão da falta de ética no país e popularizar o debate a respeito, abrindo-o para um público de quinhentos e tantos leigos. A seleção dos temas e o conteúdo das conferências terminaram por desmentir os dois primeiros objetivos e anular o terceiro. Em todo debate científico ou filosófico, a compreensão de uma nova tese depende do conhecimento do estado da questão. Status quæstionis — termo da retórica antiga — é o retrospecto das discussões até o presente, com a criteriosa discriminação dos tópicos abrangidos e por abranger, das teses consensualmente admitidas e das que continuam em litígio. Quem fale aos leigos sobre um assunto da sua especialidade está implicitamente obrigado, pela ética da vida intelectual quando tem, a oferecer-lhes, como fundamento primeiro da argumentação, um sumário do estado da questão no consenso dos estudiosos. Opiniões próprias, novas ou divergentes que o orador acaso tenha a apresentar só poderão ser compreendidas e discutidas com proveito se forem vistas no quadro desse consenso, mesmo que dele divirjam e sobretudo quando divergem, porque toda divergência diverge de alguma coisa e só no confronto com ela adquire sentido; Benedetto Croce dizia que só se compreende um filósofo quando se sabe “contra quem ele se levantou polemicamente”. Se porém o especialista, o professor, o homem investido de autoridade acadêmica apresenta sua opinião solta, isolada, sem os nexos que a ligam positivamente ou negativamente ao consenso e à tradição, o público leigo fatalmente a tomará como se fosse ela mesma a expressão desse consenso, e dará às palavras de um só indivíduo — ou do grupo que ele representa — o valor e o peso de uma verdade universalmente admitida pelos homens cultos.
É também um preceito elementar do método científico não apresentar uma teoria nova sem provar primeiro que as anteriores não bastam para explicar os fenômenos de que trata. É um meio de evitar a proliferação de teorias inúteis. Desse preceito, que é válido também em filosofia, decorre uma norma prática: as novas teorias é que devem apresentar suas razões contra as velhas, e não estas contra aquelas. Como num duelo, cabe ao desafiado a primazia na escolha das armas. Dessa norma, por sua vez, flui a obrigação de ética pedagógica a que me referi: toda teoria nova, quando apresentada a um público leigo, deve ser mostrada como tal, recortada e contrastada sobre o pano de fundo do consenso que ela confirma ou desmente. Nunca deve ser exibida sozinha, ocupando todo o espaço e fazendo as vezes do consenso. Quem assim a empregue estará se aproveitando da ignorância alheia para fazer-se de autoridade.
Não deveria ser preciso fazer tais recomendações a pessoas tão cheias de consciência ética que, não conseguindo mais contê-la em si, sentiram o urgente impulso de derramá-la sobre toda a nação, ou pelo menos sobre quinhentas cabeças. Mas a versão que o ciclo apresentou da história das idéias éticas é bem diferente daquela a que o público teria acesso caso se dirigisse a qualquer das histórias da filosofia que circulam em formato de livro. É uma versão peculiar — alternativa, digamos — que tem todo o direito de ser defendida contra o consenso, mas não tem o direito de posar em lugar dele perante um público que o desconhece.
Por exemplo, o capítulo referente à filosofia grega resumiu-se a duas conferências: a de José Américo Motta Pessanha sobre Epicuro, que em detalhe comento mais adiante, e a da convidada francesa, Nicole Loraux (aliás excelente), sobre os sentimentos éticos na tragédia grega. Epicuro, no consenso quase universal, não é propriamente um filósofo menor, mas alguma coisa menor do que um filósofo. Veremos adiante. E a tragédia grega, como obra de arte, carregada ademais de obscuros simbolismos arcaicos, admite muitas outras interpretações éticas que não somente aquelas destacadas por Nicole Loraux (que seria, creio eu, a última a negá-lo). No fim das contas, o pensamento ético grego ficou ali reduzido ao filete escasso e marginal do epicurismo e a um vago e misterioso “sentimento” coletivo escoado entre os versos de Sófocles, Ésquilo e Eurípides. Nem uma palavra sobre Platão, Aristóteles ou o estoicismo: sobre os três sistemas completos que constituíram o essencial da herança moral grega às civilizações européia e islâmica.
Ninguém nega aos organizadores do ciclo o direito de reinterpretarem a História o quanto queiram. Nem mesmo o de desfigurá-la em nome de uma teoria qualquer, alterando a hierarquia dos fatos e as proporções dos valores, removendo para um canto os nexos principais articuladores do conjunto e puxando para o centro um detalhe qualquer de sua preferência, por insignificante e banal que seja. Apenas se pede, a quem assim proceda, a fineza de declarar de antemão seu propósito de apresentar uma versão nova e heterodoxa da História, e não “a” História, em sentido corrente. Uma história da ética grega que eleve Epicuro ao primeiro plano em lugar de Platão e Aristóteles não tem como evitar, no mínimo, o rótulo de extravagante. Mas cometer extravagâncias com o ar inocente de quem procede segundo a praxe mais rotineira é aquilo que, na ética popular, recebe o nome de cara-de-pau. E nada mais confortável para um carade-pau do que poder contar com a sonsa aprovação de uma platéia novata, incapaz de atinar com a extravagância do seu procedimento. Aí, ao abrigo de todo olhar de censura, ele se espalha: deita e rola.
Rolando, rolando, o cabotinismo elevado a princípio historiográfico foi cair num descalabro ainda pior ao tratar da filosofia medieval: espremeu-a toda, com seus quase mil anos de História, numa só conferência, e mesmo aí só a abordou, com seletividade feroz, por um único e privilegiado aspecto, tomado assim, pela massa crédula dos ouvintes, como a quintessência do assunto. Que aspecto foi esse, tão especial? Amoral agostiniana da autoconsciência? A ética tomista da escolha razoável? A pedagogia moral de Hugo de S. Vítor? O indeterminismo moral de Duns Scot? Nada disso. Nenhum desses tópicos nem dos muitos outros em que se subdivide a ética medieval nos livros de História da Filosofia foi considerado significativo o bastante para representar, no MASP, a essência da Idade Média. O tema ali encarregado de figurar como amostra suprema do pensamento medieval foi… o tribunal da Santa Inquisição!
Historicamente, é um quid pro quo. Instaurada oficialmente em 1229, “essa instituição — como frisou Alexandre Herculano — nasceu débil e desenvolveuse gradual e lentamente”.[ 13 ] Seu período de atuação mais intensa, que a revestiu da imagem sangrenta que tem para nós hoje, só começa a partir de 1400: em pleno Renascimento. As fogueiras da Inquisição continuaram depois a arder pela Idade Moderna a dentro, alcançando um máximo de furor nos séculos XVI e XVII. Isto é tão medieval quanto a física de Newton.
Mesmo o século do estabelecimento oficial da Inquisição, o XIII, que não coincide, repito, com o da sua atuação efetiva, já é apenas o finzinho da Idade Média: é o princípio da sua dissolução, com a eclosão das primeiras manifestações de autonomia nacional, das quais a própria disseminação das heresias, causa imediata da abertura do Santo Ofício, é um dos principais sintomas.
Em terceiro lugar, o período de atividade inquisitorial mais significativa já é posterior, de dois séculos, ao fim do ciclo de produção e publicação das principais obras filosóficas medievais, que vai do Proslogion de Sto. Anselmo (1070) até as Reportata Parisiensia de Duns Scot (1300), passando pelos livros de Pedro Lombardo, Pedro Abelardo, Alexandre de Hales, Guilherme de Conches, Hugo e Ricardo de S. Vítor, Sto. Alberto Magno, Sto. Tomás de Aquino e S. Boaventura.
Para completar, nenhum desses filósofos exerceu qualquer cargo no Santo Ofício nem teve com esta entidade contatos senão episódicos, que não marcaram significativamente o conteúdo de suas obras.[ 14 ]
Associar, assim, Idade Média com Inquisição, e sobretudo filosofia medieval com Inquisição, é um descalabro cronológico equivalente a dizer que Fernando Henrique Cardoso foi ministro da Fazenda de D. João VI.
Os philosophes do MASP conhecem tão bem ou melhor do que eu todas essas datas, e não podem tê-las trocado por engano. Eles sabem perfeitamente bem que a Idade Média é um bode expiatório das culpas de períodos históricos posteriores, que a sua fama inquisitorial obedece à definição stendhaliana da fama: conjunto dos equívocos que a posteridade tece em torno de um nome. Mas também sabem que essa fama está profundamente arraigada na crendice popular, onde a plantou uma sucessão de obras de ficção de grande sucesso, de O Poço e o Pêndulo de Edgar Allan Pöe até O Nome da Rosa de Umberto Eco.[ 15 ] E, já que o público acredita na lenda, para quê desmenti-la? Por que não tirar proveito dela?
O proveito que se tirou, no caso, foi o de evitar qualquer exame da filosofia medieval, desviando as atenções para um assunto mais truculento, logo, mais vistoso, com a vantagem adicional de que essa filosofia, sem ter sido contestada diretamente ou mesmo discutida, ficou assim rodeada de uma auréola sangrenta. Por automática extensão, a auréola terminou por rodear também o catolicismo de modo geral, a que aquela filosofia se associa intimamente. Em matéria de retórica — a arte de alcançar o máximo de persuasão com o mínimo de argumentos —, foi um tour de force admirável: enlamear a reputação do adversário, sem ter precisado sequer mencionar o seu nome.
Mas fica a pergunta: para quê? Com que finalidade um grupo de intelectuais declaradamente empenhados na salvação moral do país se envolve num empreendimento tão comprometedor como esse de contar ao povo uma História da Ética que falta com a ética para poder falsificar a História?
§3 Pessanha e o pensamento ocidental
Uma pista podia ser encontrada, talvez, em José Américo Motta Pessanha, um dos mais destacados membros do grupo. Na escolha das obras que compõem a série Os Pensadores da Editora Abril, de que Pessanha fora organizador e editor, já se manifestara, com alguns anos de antecedência, a mesma seletividade deformante que agora inspirava o programa da Ética. O mais significativo da filosofia escolástica — Sto. Tomás, Duns Scot, Ockam — fora ali todo espremido num só volume, mais ou menos do mesmo tamanho daqueles concedidos individualmente ao economista John May nard Key nes, ao antropólogo Bronislaw Malinovski e até mesmo a Voltaire, grande retórico e jornalista que, como filósofo, não pode ser levado a sério.
As distorções não paravam aí: Pessanha achara indispensável dar todo um volume a Kalecki, um economista que não é citado em nenhuma História da Filosofia,[ 16 ] ao mesmo tempo que omitia Dilthey, Croce, Ortega, Lavelle, Whitehead, Lukács, Jaspers, Cassirer, Hartmann e Scheler. Procurando, na ocasião da edição, explicar-me as razões de escolhas tão bizarras, conjeturei que Pessanha talvez não tivesse desejado ilustrar a História da Filosofia, mas sim a História das Idéias. Nesta disciplina, as teorias não se tornam dignas de atenção pelo seu valor intrínseco, mas pela sua repercussão pública, por seus efeitos político-sociais, valham elas o que valham. Aí se explicaria o título da série (“pensador” é um termo mais vago e abrangente do que “filósofo”) e também a inclusão de autores menores, como Condillac, Helvétius e Dégerando, típicos philosophes.[ 17 ]
Mas logo tive de abandonar essa hipótese, visto que a coleção incluía obras que só exerceram influência em círculos bem delimitados, como por exemplo as de Wittgenstein e Adorno, e omitia outras que produziram verdadeiras revoluções, como as de Jung e René Guénon, que arrombaram as portas do Ocidente para a invasão das idéias orientais, ou as de Spencer e Thomas Huxley, que injetaram o evolucionismo nas veias espirituais do mundo. Sem falar, é claro, de Lênin ou Gurdjieff.
Enfim, o leitor d’Os Pensadores, se formasse por esta só coleção sua imagem da história do pensamento, acabaria por concebê-la bem diversa daquela que poderia obter em qualquer livro ou curso da matéria (exceto, é claro, o curso da USP, onde impera o grupo de Pessanha).
Para complicar mais ainda o imbroglio, a série Os Pensadores, num país onde se publicam poucos livros de filosofia[ 18 ] e onde as edições estrangeiras só são acessíveis a uns happy few, acabou por adquirir uma autoridade comparável à da Bibliothèque de la Pléiade ou dos Oxford Classics, representando, aos olhos do público, a imagem do pensamento universal.
Enfim, o programa da Ética não fizera senão prosseguir, em outra escala, a obra de deformação que Pessanha já havia iniciado por conta própria.
Mas ainda sobrava a pergunta: qual o sentido do empreendimento?
Foi só quando ouvi a conferência de Pessanha que pude compreender, retrospectivamente, o princípio a que obedecera a seleção dos livros: Pessanha não havia procurado mostrar o passado, mas moldar o futuro. Não escolhera os livros nem pelo seu valor, nem pela sua importância histórica, mas pela repercussão que ele mesmo pretendia lhes dar. Ele não quisera refletir a História das Idéias na imagem dos textos, mas produzi-la no campo dos fatos. A escolha não refletia um critério teórico, mas a decisão de uma práxis. Não se tratava de História, mas sim de estratégia e mercadologia.
O mesmo espírito parecia ter orientado a seleção dos temas para o curso de Ética, e por ele pude captar também, retroativamente, a inspiração talvez inconsciente de todos os títulos da série de eventos promovidos pela Secretaria de Cultura: o olhar que aquela gente lançava sobre o mundo não refletia a imagem de um objeto, mas projetava sobre ele o sentido de uma paixão. O círculo de Pessanha não era uma comunidade científica empenhada em descobrir o real, mas um grupo militante decidido a fabricá-lo.[ 19 ]
Nessa operação, Pessanha desempenhava uma função estratégica, não só como editor d’Os Pensadores, mas também por ser, na teoria e na prática, um grande conhecedor da Retórica, discípulo que era de Chaim Perelman, o grande renovador dos estudos retóricos no século XX, cujos trabalhos ele foi, salvo engano, o primeiro a divulgar no Brasil. Mas Perelman distinguia, seguindo a tradição, entre o retor e o retórico: entre o orador persuasivo e o estudioso da ciência retórica. Perelman era essencialmente um retórico, um investigador e codificador dos princípios da argumentação retórica. Pessanha, por seu lado, qualificou-se sobretudo como retor, como um mestre da persuasão, como um orador e homem de marketing. E não lhe faltaram ocasiões para manifestar o seu talento (que antes de empregar na persuasão política ele testara numa série de fascículos de culinária, na mesma editora). Juntos, a série Os Pensadores e os três eventos O Olhar, Os Sentidos da Paixão e Ética — sem contar a militância pedagógica nas cátedras da USP — formam o mais vasto empreendimento de persuasão retórica já realizado neste país por um grupo de intelectuais ativistas imbuídos de objetivos políticos bem determinados, e dispostos a sedimentar, no plano da luta cultural, as bases para a conquista desses objetivos.
Isto ainda não nos dá uma resposta quanto aos motivos últimos da seleção dos temas no curso de Ética, mas já nos coloca numa pista importante: se ali a verdade sofreu graves distorções, não foi por casualidade, mas para dar seguimento coerente a uma ação iniciada muito antes. Que intenção está aí subentendida e quais os valores que nela se incorporam, é o que teremos de descobrir numa análise microscópica da conferência de Pessanha. Mas antes mesmo de entrarmos em mais detalhes, o que foi constatado até agora já nos adverte que a estranha conjuntura referida no §1 deste livro era ainda mais estranha do que parecera à primeira vista. Pois, se já havia uma inusitada desproporção no volume de recursos culturais mobilizados para a consecução de um alvo tão pequeno quanto a simples destituição de um mandatário corrupto, mais esquisito ainda era que uma elite universitária, elevada à liderança intelectual de uma reforma ética de escala nacional, se mostrasse tão ignorante das regras mais elementares da ética intelectual, tão ávida de falsificar a História, prostituir a ciência e conduzir o povo por um caminho enganoso, tudo em nome de objetivos morais que seriam alcançados bem mais rápida e facilmente pela velha e boa linha reta. E quanto mais eu remexia o assunto, mais inexplicável a coisa toda me parecia. Não havia remédio, portanto, senão uma sondagem em profundidade, que remontasse às raízes intelectuais primeiras em que se inspirara aquela nova e singular concepção da ética. Era preciso nada menos que interrogar Epicuro.
4 South America: Observations and Impressions, London, Macmillan, 1912, p. 417. No trecho citado, o autor refere-se especificamente ao Brasil.
5 Habituado por uma longa autodisciplina a suspender o juízo até encontrar uma evidência ou uma prova suficiente, surpreendo-me ao notar o quanto essa habilidade pode ser deficiente em intelectuais militantes afeitos a buscar numa idéia antes seu poder de mobilização do que sua veracidade intrínseca. A carência absoluta dessa habilitação pode chegar a ser mesmo uma conditio sine qua non para a aquisição de respeitabilidade em certos círculos universitários, principalmente norte-americanos, mas também alguns brasileiros, onde vigora o pressuposto dogmático de que uma idéia ou doutrina qualquer nada mais pode ser que a expressão do desejo de poder de uma classe, de uma raça, de uma cultura, de um país, e de que, nesse sentido, a pressão coletiva e a intimidação autoritária são meios não apenas legítimos mas preferenciais do debate intelectual. Compreendo perfeitamente que as pessoas intoxicadas por essa atmosfera enxerguem ou finjam enxergar um mero truque de retórica na minha afirmação de não ter partido de convicções prontas. De pouco adiantará alegar que fui perfeitamente sincero, pois, para essa gente, a sinceridade individual não tem valor, já que o indivíduo não pensa e é sempre, querendo ou não, sabendo ou não, apenas o boneco de ventríloquo de um interesse coletivo que salta sobre as intenções do coitado e diz pela sua boca o que bem entende. Deixo a essas criaturas a tarefa extremamente científica de desencavar das sombras o secreto autor coletivo destas páginas, e permaneço, malgrado tudo, na convicção nada acadêmica de havê-las escrito eu mesmo [Nota da 2ª edição].
6 “As Delícias do Jardim: a Ética de Epicuro”. Mais tarde foi publicada no volume coletivo Ética, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
7 A onda de ira nacional contra Collor e depois contra os deputados metidos em desvios de verbas se mostram ainda mais estranhos quando comparados à persistente indiferença ante o escândalo das “polonetas” (empréstimos irregulares ao governo comunista da Polônia), que trouxe ao Brasil muito mais prejuízo do que o ex-presidente e todos os “anões do Congresso” somados. Há duas décadas o ex-embaixador na Polônia, José Owsvaldo de Meira Penna, tenta em vão despertar a atenção da justiça para o caso, que se tornou tabu provavelmente por envolver toda a elite dos chamados “barbudinhos” – a ala esquerda do Itamaraty.
8 Documentei o bastante a esquisitice ambiente em O Imbecil Coletivo para poder me dispensar de enumerar novamente aqui os sinais da patologia mental que então acometeu a inteligência brasileira. Só para dar um exemplo, um aspecto estranho, que pareceu escapar totalmente aos melhores observadores, foi este que na segunda fase da campanha — a guerra contra João Alves & Cia. — anotei num artigo que escrevi para a revista Imprensa: “Pelo furor investigativo com que os jornais e a TV abrem as latrinas, destapam os ralos, vasculham os esgotos da República, parece que o Brasil, dentre todos os países, tem a imprensa mais ousada, mais independente, mais empenhada em descobrir e revelar a verdade. Porém o mais admirável, nela, é a unanimidade da sua adesão a esse objetivo. Não há neste país um só jornal, estação de rádio ou canal de TV que se exima da obrigação de informar, que procure mesmo discretamente abafar denúncias, proteger reputações, acobertar suspeitos. Todos, mas todos os órgãos de comunicação, sem exceções visíveis, estão alinhados no ataque frontal à corrupção, que verberam em uníssono, com a afinação de um coro multitudinário regido por uma só vontade, por um só espírito, por um só critério de valores. No exército da moralidade pública, não há defecções. Foi a uniformidade do noticiário que permitiu fixar na retina do público a imagem de um Brasil dividido em justos e pecadores, mocinhos e bandidos, sem quaisquer ambigüidades ou meios-tons. Imagem na qual a linha demarcatória da ‘ética’se sobrepôs mesmo às divisões de partidos, de interesses, de ideologias, terminando por neutralizá-las e por não deixar à mostra senão duas facções, a de Caim e a de Abel, esta vociferando sua indignação nas praças, aquela esgueirando-se pelos corredores, tramando golpes, apagando pistas, num sombrio meneio de cobra. Esse unanimismo não teria poder sobre as consciências se não incluísse, entre os temas dominantes do seu discurso, a celebração de si mesmo: a condenação dos políticos corruptos é, ao mesmo tempo, e não raro explicitamente, a glorificação da imprensa livre que os investiga e desmascara. Ninguém hesita em ver nesse fenômeno o começo de uma nova era: levado pela mão da imprensa, o Brasil atinge o portal da maturidade democrática. Mas, a quem fez seu aprendizado no jornalismo ouvindo dizer que imprensa é diversidade, que democracia é pluralismo de opiniões, essa unanimidade não pode deixar de parecer um tanto suspeita. Anormal historicamente, ela é. Nunca, em qualquer lugar ou época, se viu um caso como este, de uma nação em peso abdicar de suas divergências internas para formar frente única sob uma bandeira tão vaga e abstrata quanto a ‘ética’. Nem países em guerra, movidos pela necessidade de unir-se em defesa de bens mais palpáveis contra perigos mais imediatos e letais, lograram homogeneizar a tal ponto o discurso dos seus jornalistas. O que está acontecendo no Brasil é um fenômeno ímpar na história da imprensa mundial. Um fenômeno tanto mais estranho quanto é recente a introdução da palavra ‘ética’no vocabulário popular brasileiro e rapidamente improvisada, com êxito fulminante, sua promoção ao status de ideal unificador de todo um povo. Jamais uma palavra-de-ordem emanada de um estreito círculo de intelectuais ativistas logrou alastrar-se com tal velocidade pela extensão de um continente, sem que ninguém se lembrasse de objetar que a rapidez com que se propagam as palavras está às vezes na razão inversa da profundidade de penetração das idéias” (“Unanimidade suspeita”, em Imprensa, maio de 1994; reproduzido em O Imbecil Coletivo) — Se o conhecimento, como diz Aristóteles, começa com o espanto, a falta da capacidade de espantar-se é um grave sintoma de apatia mental na nossa intelligentzia.
9 É também esta multiplicidade de temas e planos que explica a trama compósita deste livro, misto de memórias e ensaio filosófico, reportagem e panfleto, política e metafísica, esoterismo e fait divers, religião comparada e sei lá quê mais — coisa em suma incatalogável, que não se esperaria ver assinada pelo mesmo autor de uma rigidíssima teoria dos gêneros (v. “Os gêneros literários: seus fundamentos metafísicos” em A dialética simbólica: estudos reunidos, op. cit.). Mas, se fixei com tal apuro as distinções entre os gêneros, foi justamente para poder, em caso de necessidade, melhor misturá-los. E, na verdade, não há o que não caiba na minha definição de “ensaio”.
10 Pouco depois dos acontecimentos narrados nesta “Introdução”, ele atacou novamente, com um ciclo denominado Artepensamento. — Em 26 de setembro de 1994, com o título mudado para “Arte de Viver”, a palestra de Pessanha sobre Epicuro, gravada em vídeo, foi transmitida pela TV Educativa do Rio, numa programação que reproduzia resumidamente o ciclo de Ética do MASP, sob a direção do mesmíssimo Adauto Novaes que organizou o evento de 1990. Eis como a morte do pensador dá mais força de difusão às idéias que ele defendeu em vida. Conservado e industrializado pela técnica, o veneno epicúreo pode agora ser distribuído em massa, enobrecido e como que santificado pela morte de seu revendedor local. — Em junho de 1995, o mesmo grupo realizou o congresso Libertinos/Libertários, que incluiu comemorações — pagas com dinheiro público — do bicentenário do marquês de Sade, e muitas palavras de louvor a Laclos, Crébillon e similares. Só falta, como diria Paulo Francis, editar em papel-bíblia as obras completas de Julius Streicher.
11 As anteriores foram A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra e Antônio Gramsci e O Imbecil Coletivo: atualidades inculturais brasileiras.
12 Minha única iniciativa, até agora, de divulgar essa parte mais interior do meu trabalho — com a publicação do livro Uma filosofia aristotélica da cultura. Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Rio de Janeiro, IAL/Stella Caymmi, 1994) — deu mais encrenca do que todos os meus escritos de polêmica. O • • • episódio está documentado em Aristóteles em nova perspectiva: introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Campinas – SP, VIDE Editorial, 2013).
13 V. Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Lisboa, Bertrand, s/d, t. I, p. 25.
14 O número de balelas que circulam a respeito da Inquisição é assombroso. Elas constituem uma capítulo importante do fabulário popular — do “senso comum”, diria Gramsci — que sustenta a crença na superioridade do mundo moderno e de seus intelectuais. Eis algumas:
- A Inquisição atrasou o desenvolvimento científico, proibindo a circulação dos livros que traziam novas descobertas. – Basta examinar o Index Librorum Prohibitorum para verificar que nele não consta nenhuma das obras de Copérnico, Kepler, Newton, Descartes, Galileu, Bacon, Harvey e tutti quanti. A Inquisição examinava apenas livros de interesse teológico direto, que nada poderiam acrescentar ao desenvolvimento da ciência moderna (em caso de dúvida, leia-se A Inquisição, por G. Testas e J. Testas – v. Bibliografia no fim deste volume).
- Giordano Bruno foi um mártir da ciência, condenado pela Inquisição por defender teorias científicas. – Giordano Bruno não fez nenhuma descoberta, nenhuma observação, nenhum experimento científico. Nem sequer estudou as ciências modernas, física, astronomia, biologia ou matemática. As disciplinas que lecionava eram tipicamente medievais: lógica, gramática e retórica – o trivium. Ele desprezava a nova mentalidade matemática, e todos os cientistas matematizantes, de Galileu a Descartes, mostraram a maior indiferença pela sua obra, cujo maior mérito é justamente o de ter antecipado muito do que hoje podemos dizer contra a ciência moderna (v. Paul-Henri Michel, La Cosmologie de Giordano Bruno, Paris, Hermann, 1975). Ele não foi condenado por defender teorias científicas, mas por prática de feitiçaria, que na época era crime. Não sei se a acusação era procedente, talvez não fosse, mas aos que julguem um absurdo preconceito de eras pretéritas imputar à feitiçaria, de modo geral, qualquer caráter criminoso, recomendo a leitura do ensaio de Claude Lévi-Strauss, “O Feiticeiro e sua Magia” (em Antropologia Estrutural, trad. Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975), sobre a realidade das mortes por enfeitiçamento. — Para completar, a pesquisa histórica mais recente revelou que Bruno esteve muito provavelmente envolvido em atividades de espionagem contra a Igreja Católica (v. John Bossy, Giordano Bruno e o Mistério da Embaixada, trad. Eduardo Francisco Alves, Rio de Janeiro, Ediouro, 1993).
- A Inquisição instituiu a perseguição aos judeus. – As matanças de judeus, promovidas por devedores espertos ou por monges fanáticos, eram um • • • hábito consagrado na Península Ibérica. Não conseguindo reprimir a ralé enfurecida, o Rei de Portugal pediu que o Santo Ofício se incumbisse dos processos por usura, de modo a tirar qualquer pretexto que legitimasse as atrocidades dos “justiceiros populares”. Instituindo os processos regulares, a Inquisição controlou e enfim extinguiu as matanças. É verdade que a Inquisição se mostrou preconceituosa contra os judeus, mas se em vez de julgá-la por um padrão moral abstrato e utópico a comparamos com as alternativas reais existentes na época, entendemos que ela foi um mal menor: a única alternativa era o massacre (v. Alexandre Herculano, op. cit.).
- A Inquisição instituiu a tortura generalizada. – A tortura era considerada um procedimento legítimo e praticada em toda parte desde a Grécia antiga. Durante quase toda a Idade Média, caiu em desuso, sendo reintroduzida na justiça civil graças à redescoberta — tipicamente renascentista — dos textos das antigas leis romanas. O que a Inquisição fez foi seguir o uso então vigente na justiça civil, mas limitando-o severamente, não permitindo que o acusado fosse torturado mais de uma vez e proibindo ferimentos sangrentos (v. Testas, op. cit.). Deve-se portanto à Inquisição o primeiro passo efetivo que se deu contra o uso da tortura, o que deveria ser considerado um marco na história dos direitos humanos. A tortura ilimitada foi depois reintroduzida pelos comunistas, na Rússia, sendo seu exemplo imitado em seguida pelos nazistas e fascistas.
- O processo de Galileu foi um caso de perseguição inquisitorial. – Bem ao contrário, o processo foi uma pizza, uma farsa concebida pelo Papa – padrinho de Galileu – para que seu protegido se livrasse de um grupo de inquisidores fanáticos mediante uma simples declaração oral sem efeitos práticos, após a qual ele pôde continuar divulgando suas idéias sem que ninguém voltasse a incomodá-lo (v. Pietro Redondi, Galileu Herético, trad. Júlia Mainardi, São Paulo, Companhia das Letras, 1991).
- Os philosophes de modo geral não ignoram essas coisas, mas falar delas não é bom para a sua saúde e suscitaria desconforto na platéia.
15 Na verdade a lenda surgiu um pouco antes: “A Idade Média foi denegrida, no início da Renascença, por vícios que realmente pertenciam aos seus detratores; a História oferece muitos exemplos de ‘censura transferida’… Essa impressão sobre a Idade Média é parcialmente um produto dos ‘Romances Góticos’do século dezoito, com seus quadros sombrios de câmaras de tortura, teias de aranha, mistério e desvario” (Lewis Mumford, A Cultura das Cidades, trad. Neil R. da Silva, Belo Horizonte, Itatiaia, 1961, p. 23). A prova de que a velha aparelhagem cênica do “romance gótico” ainda funciona é o sucesso de O Nome da Rosa. Henry Kamen, op. cit., chap. 14, descreve a poderosa conjunção de interesses que produziu, conscientemente, a falsa imagem da Inquisição espanhola.
16 Por que essa honra concedida a um único economista, de figurar entre os filósofos, se ele jamais publicou um único trabalho de alcance filosófico e se entre seus colegas de ofício houve muitos que foram filósofos de pleno direito, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises? A resposta só pode ser uma: do ponto de vista uspiano um economista marxista é mais filósofo que qualquer filósofo liberal.
17 A direita também tem seus philosophes, alguns de primeira ordem pela qualidade literária e pela influência política de seus escritos — De Maistre, Donoso Cortés, Maurras, por exemplo —, mas foram omitidos.
18 Na verdade publicam-se muitos, mas não os de primeira necessidade. Em Contraponto, Aldous Huxley diz de uma personagem que, se lhe dessem o supérfluo, ela dispensaria o essencial. Parece ser isso que os editores brasileiros pensam do leitor. Até hoje não temos Aristóteles completo em português, e o Platão de Carlos Alberto Nunes, editado pela Universidade do Pará, jamais chegou ao Sul-Maravilha, que se crê muito letrado porque encontra nas livrarias as últimas modas filosóficas nacionais (leia-se: estrangeiras). Também nos faltam as obras principais de Hegel (só temos a Fenomenologia e textos menores), de Leibniz, de Kant, Schelling, Fichte, Husserl, Dilthey, Hartmann e não sei mais quantos. Mas temos Simone de Beauvoir quase completa, muito Foucault, muito Antonio Gramsci, sem contar Fielkenkraut, Fukuy ama e todos os outros filósofos de alta rotatividade. É por isto que, malgrado suas distorções, a série Os Pensadores se tornou, na falta de concorrentes, um item indispensável da bibliografia filosófica nacional.
19 Daí a receptividade, um tanto envergonhada, que se deu nesses círculos filosóficos às idéias de Richard Rorty, filósofo pragmatista segundo o qual a linguagem não pode dar uma imagem do real mas somente uma expressão dos nossos desejos, e segundo o qual, não podendo encontrar “universais” na realidade, a filosofia deve “fabricá-los” mediante a propaganda e a ação política. V. a propósito os capítulos “Armadilha relativista” e “Rorty e os animais” no meu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora, 1995).
LIVRO II
EPICURO
CAPÍTULO 2
COSMOLOGIA DE EPICURO
§4 Uma profissão-de-fé epicurista. Amatéria segundo Epicuro
“As Delícias do Jardim”, segunda conferência do ciclo de Ética, pronunciada por José Américo Motta Pessanha, não foi uma simples exposição da filosofia de Epicuro: foi uma rasgada profissão-de-fé epicurista e uma declaração de guerra a todos os críticos de Epicuro. O epicurismo foi ali pintado como uma das maiores filosofias de todos os tempos, portadora da solução para todos os males humanos (sic) e da inspiração que o Brasil precisa para sair do atoleiro moral.
Levado por aquele entusiasmo belicoso que sempre anima os porta-vozes de uma doutrina salvadora, Pessanha não recuou diante das maiores temeridades na apologia do seu guru. Se de um lado não poupou o sarcasmo ao ridicularizar as acrobacias dialéticas com que Sto. Agostinho, notório adversário do epicurismo, procurava conciliar a bondade de Deus com a existência do mal no mundo, de outro não hesitou em defender uma opinião que, para manter-se de pé, requer uma lógica não menos circense: a opinião de que a fuga dos intelectuais para o jardim de Epicuro não é alienação nem covardia, mas uma forma superior de luta política. Epicuro ensinava que o filósofo deve abandonar todo empenho de reformar a sociedade, retirando-se para a vida contemplativa na solidão do campo. Propor isto como um remédio eficaz para a corrupção reinante é o mesmo que recomendar a fuga para longe dos credores como um método eficaz de saldar as dívidas.[ 20 ]
Mas opiniões esquisitas não são mesmo de estranhar em quem se declare seguidor de Epicuro; pois os traços do mestre devem se reencontrar no discípulo — e Epicuro produziu algumas dúzias de opiniões que, no campo da absurdidade, se tornaram modelos insuperáveis, fazendo de seu autor um clássico do besteirol.
A questão não é portanto saber se Pessanha se saiu melhor ou pior do que Agostinho no seu devoto empenho, mas sim perguntar por que, num ciclo nominalmente votado ao esclarecimento de questões atuais e urgentes, alguém se deu o trabalho de ir retirar o pó milenar que encobria uma múmia filosófica, só para depois ter de varrê-lo para baixo do tapete.
Para sondar as razões desse mistério, cuja solução trará consigo a de todos os outros anteriormente mencionados, será preciso remontar ao próprio Epicuro e, já que alguém antes de nós desenterrou a múmia, mostrar o avançado estado de decomposição em que se encontra.
***
Um aspecto particularmente biruta da filosofia de Epicuro é o seu alegado materialismo, tão diferente daquela grossa metafísica de caixeiro de loja que costumamos conhecer por esse nome, e dela aparentado tão-somente na distância que ambos guardam de toda verdadeira filosofia.
Segundo Epicuro, o corpo é material, a alma também é material, e até os deuses são materiais — havendo apenas, entre estes três níveis de seres, a diferença de maior para menor densidade da dita “matéria”.[ 21 ] Como tudo é material, só o que é material chega ao nosso conhecimento. Logo — pelas leis da silogística epicúrea —, tudo o que chega ao nosso conhecimento tem, por esta mesma razão, existência material. Têm-na inclusive os objetos de nossos sonhos e visões imaginativas. Se sonhamos com deuses, isto já prova, segundo Epicuro, que eles existem materialmente, pois aquilo que não tem materialidade não poderia afetar nossos sentidos.[ 22 ] Só que, como não podemos encontrá-los em parte alguma deste baixo mundo, eles devem estar em algum outro mundo. Porém, como todo e qualquer mundo existente é sempre material como o nosso, só lhes resta alojar seus corpinhos de matéria sutil num intermundo, ou intervalo entre os mundos. Não é de bom tom, pela ética epicúrea, perguntar como é que seres materiais, mesmo de matéria sutil, podem viver sem um ambiente material em torno, e vestidos somente de intervalo.
Embora materiais como nós, os deuses são compostos de matéria sutil, rarefeita, e por isto são mais duráveis. Só que Epicuro, ao mesmo tempo, afirma a eternidade da matéria, o que cria o seguinte problema: se a matéria é eterna, por que teria de ser menos densa justamente nos seres mais duráveis e não nos mais efêmeros? É como dizer que uma superfície pintada é tanto mais azul quanto mais diluída esteja a tinta azul. Mas um conceito de matéria tão elástico como o de Epicuro só podia mesmo dar nisso.
***
Se a matéria de Epicuro é esquisita, os deuses não ficam atrás. Para começar, a única ocupação deles consiste em conversar. Sabe-se lá sobre que eles conversam, num ambiente que, destituído de coisas, não deve ser menos desprovido de assunto; mas o que Epicuro garante é que certamente eles o fazem em idioma grego, e não em língua de bárbaros (motivo pelo qual posso aqui falar mal deles à vontade, seguro de que não entendem uma só palavra do que estou dizendo). Sendo filósofos, diz Epicuro, eles ficam trocando idéias nas longas noitadas do intermundo, longe da miserável agitação dos mundos e sem interferir em nada na ordem ou desordem das coisas. Afinal, eles não iriam querer sujar suas mãozinhas de matéria sutil na porqueira da matéria mais densa, só para depois terem de pedir a Agostinho que as limpasse.
Embora eles nos sejam indiferentes e portanto inúteis, em nada ligando para as nossas preces nem mesmo quando proferidas no seu celestial idioma, Epicuro acha-os o supra-sumo da perfeição. E como Epicuro também diz que um deus não poderia ser impotente, devemos concluir que, se eles não nos ajudam, não é porque não podem, e sim porque não querem. Mas, ainda segundo Epicuro, um deus que, podendo ajudar os necessitados, se recusasse a fazê-lo, estaria procedendo de maneira indigna de sua condição divina. Assim Epicuro cai nas malhas do seu próprio argumento, com que julgava fulminar a religião grega e toda religião possível: “Ou Deus quer ajudar e não pode, ou pode e não quer, ou nem quer nem pode”. Pessanha não só achou engenhoso este argumento, mas declarou que ele se aplica perfeitamente ao Deus cristão. Mas nem toda a dialética de Agostinho, somada à retórica de Perelman, poderia tirar os deuses epicúreos desta aporia congênita, em que se agitam há milênios os debates no intermundo: se eles não interferem, mas não é porque não podem, não é porque não querem e também não é porque nem querem nem podem, por que raios é então?
***
Epicuro diz que nada devemos temer nem esperar dos deuses, já que eles permanecem no puro ócio contemplativo e não nos causam males nem bens. Mas, de outro lado, ele diz também que o prazer é o supremo bem, que a busca do prazer é a causa e finalidade das nossas ações, que o maior dos prazeres é o ócio contemplativo e que os deuses são o modelo mais perfeito do ócio contemplativo, motivo pelo qual devemos admirá-los. Como é possível que o modelo supremo do bem não nos cause nenhum bem, que o objeto da admiração não traga nenhum benefício à alma que o admira e não lhe dê nem mesmo um pouco de prazer, eis aí questões que, pelo bem da paz no intermundo, devem ser criteriosamente evitadas. Mas nós, que já estamos metidos na densa porcaria terrestre, prossigamos com a investigação.
Para saber se uma coisa exerce ou não influência sobre outra, o mais velho e eficaz procedimento consiste em suprimir (de fato ou imaginativamente) a primeira, para ver como fica a segunda. Epicuro diz que os deuses são inócuos e indiferentes. Mas, sem eles, que seria do epicurismo? A busca do prazer, ficando desprovida de um modelo ou meta final por que orientar-se, acabaria por se perder em prazeres menores — que Epicuro despreza — e, não alcançando jamais o benefício do ócio contemplativo, resultaria em aumento da dor. Tal é justamente, segundo Epicuro, o resultado a que chegam aqueles que buscam o prazer no terrestre e no imediato, sem conhecimento da meta suprema personificada na imagem dos deuses. Então, das duas uma: ou os deuses exercem um influxo benéfico, ainda que por sua simples presença,[ 23 ] e então não são inócuos como os diz Epicuro; ou, na hipótese contrária, não exercem influxo nenhum e então a prática do epicurismo está destinada ao fracasso. Ou Epicuro está certo na teoria e errado na prática, ou está certo na prática e errado na teoria — a não ser que esteja errado em ambas as coisas. Veremos isto mais adiante.
Por enquanto, tentemos tirar as conseqüências lógicas da teoria. Se os deuses são, de um lado, o modelo do bem, e, de outro, a imagem do ideal espiritual que norteia os esforços do asceta epicurista, então eles não apenas são causa de alguma coisa, mas o são duplamente: em linguagem aristotélica, são causa formal do bem e causa final da vida ascética.
Porém, a busca do prazer filosófico é só um tipo especial de busca do prazer, meta e motor geral da vida humana. Logo, os deuses não somente são a causa das ações do filósofo, mas das de todos os seres humanos. Pois estes — diz Epicuro —, quando saem à cata de prazeres grosseiros, não fazem senão buscar de maneira obscura e inconsciente aquele mesmo objetivo supremo que, para o filósofo, se tornou consciente e assumido: o ócio contemplativo, personificado nos deuses. E como ademais o desejo de prazer não move somente os homens, mas todos os seres e coisas, animais e plantas e pedras e átomos e galáxias, tudo girando numa espiral ascendente desde os prazeres imediatos e grosseiros até o supremo ideal do ócio contemplativo, então só resta concluir que os deuses epicúreos, por mais que o filósofo procure isentá-los de toda responsabilidade, são enfim a causa formal e final de tudo quanto acontece no universo. Para seres ociosos como eles, deve ser um bocado de trabalho.
O máximo que se pode conceder à tese da inocuidade dos deuses é que, sendo causa formal e final, eles de fato não são nem causa material nem causa eficiente, no sentido aristotélico; isto é, que eles nem constituem o substrato material de que é feito o mundo, nem são o gatilho que dispara o movimento da criação. Neste ponto, Epicuro é taxativo: o mundo se compõe de átomos e a causa do movimento é o desejo. Os deuses são apenas a imagem do bem, a bússola por que se orienta o desejo.
Se Epicuro tivesse se limitado a dizer isto, estaria sendo nada mais que coerente com seus próprios pressupostos. Mas, neste caso, seus deuses não difeririam muito do Deus bíblico, o qual também não é nem estofo material do mundo nem causa imediata dos atos humanos ou dos fenômenos naturais. A única diferença que restaria entre Yaveh e os deuses epicúreos é que Ele criou o mundo, e eles não. Mas entre dizer que eles não criaram o mundo e concluir que eles não fizeram coisa nenhuma desde que o mundo foi criado, a distância é grande. Tirar o corpo fora de toda responsabilidade sob a alegação de não ter criado o mundo não é lá também um comportamento muito digno de um ser divino, a não ser que os membros da Comissão de Orçamento do Congresso sejam deuses.
Mas Epicuro afirma ainda que, além de ociosos, os deuses são indiferentes ao bem e ao mal. É claro que isto eles não podem ser, pois, como modelos e causas formais do bem, eles produzem um efeito bom e logo são bons sob algum aspecto. E não somente são bons em si mesmos, por sua estática e autobenéfica perfeição intrínseca, mas são bons para nós, ativa e transitivamente, na medida em que, aparecendo em nossos sonhos, nos mostram pelo exemplo da sua perfeição o caminho do bem. E, na medida em que este bem não é só para os filósofos, e nem só para os homens em geral, mas para todos os seres e coisas, então temos de admitir que os deuses epicúreos, afinal, são bons para o universo inteiro. Mas, se são tão formidavelmente bons assim, então por que diabos não interferem logo de vez para acabar com o mal no mundo? Neste ponto, o presidente do colóquio filosófico intermundano, vendo o debate acalorar-se acima do compatível com o decoro que deve imperar nessas regiões excelsas, interrompe os trabalhos e manda solicitar o parecer técnico de Sto. Agostinho…
§5 Um piedoso subterfúgio
A cosmologia de Epicuro desmente portanto a sua ética, e vice-versa:[ 24 ] se o mundo é como Epicuro o descreve, nele não se pode ser epicurista com sucesso; e se a prática do epicurismo é possível, então o mundo não é como Epicuro o descreve.
Esta constatação fecha o caminho a um piedoso subterfúgio com que o discípulo beato poderia ainda tentar salvar alguma coisa do epicurismo; isto é, à desculpa esfarrapada de que a cosmologia epicúrea não deve ser tomada ao pé da letra, mas interpretada simbolicamente; desculpa que nasce do desejo de enxergar profundidades insondáveis onde há apenas a banalidade de um pensamento confuso.
Segundo essa hipótese, a cosmologia de Epicuro não pretenderia oferecer uma descrição literal do mundo como realmente é, mas apenas uma imagem sugestiva que, embora falsa em si mesma, valesse como um artifício para apaziguar a alma humana, libertando-a do temor dos deuses e predispondo-a a ingressar no caminho epicurista; o qual, uma vez trilhado, levaria o discípulo a uma “visão interior” que, no fim de tudo, lhe revelaria o indizível segredo do universo como realmente é. Sob a aparência de uma falsa cosmologia, Epicuro nos teria dado uma verdadeira pedagogia, ou melhor, uma psicagogia: um guiamento da alma. Neste caso, a referida cosmologia não deveria ser julgada criticamente, mas aceita em confiança, como preço do ingresso na via da salvação. Mais ainda: a doutrina expressa que conhecemos como cosmologia de Epicuro não seria a verdadeira cosmologia de Epicuro, mas apenas o seu pórtico fictício, para uso dos novatos — um véu de fantasia na entrada do templo da verdade. À cosmologia propriamente dita só teriam acesso os iniciados, que ao atingirem os graus mais elevados da ascese epicúrea poderiam então jogar fora o véu de símbolos, para captar, por intuição direta, a verdade viva incomunicável em palavras. Muita gente, de fato, nada conseguindo entender da doutrina do mestre, deve ter resolvido perseverar na prática dos seus ensinamentos movida por essa esperança, ou por esse pretexto, sem o qual Rajneesh, o Guru Maharaji e o Rev. Moon já não teriam um discípulo sequer. A letra da doutrina epicúrea então não estaria aí para ser compreendida ou discutida filosoficamente, e sim para ser aceita e “revivida interiormente”, como na repetição ritual de um mito.
É até possível que seja assim, e, nestes tempos de naufrágio, quem se agarre ao epicurismo como a uma última tábua está naturalmente livre para crer que assim seja, amém. Só que:
1º: A aceitação dessa hipótese excluiria o epicurismo do campo da filosofia, para inscrevê-lo no das crenças religiosas, ou pseudo-religiosas.
2º: Não podemos admiti-lo nem mesmo como crença religiosa, porque toda religião que se preze distingue claramente entre doutrina e método, e não impõe jamais, em nome de quaisquer benefícios futuros a serem alcançados pela prática do método, a aceitação preliminar de uma doutrina intrinsecamente absurda, que confunde a inteligência e a torna inapta para seguir qualquer método que seja. A prova de uma doutrina, filosófica ou científica ou religiosa, é sempre de ordem intelectual e lógica, e o valor de um método se mostra por seus resultados práticos; mas os resultados práticos do método não servem nunca para validar retroativamente uma doutrina, a não ser que a conexão desse método com a doutrina já esteja provada de antemão na doutrina mesma. Se não fosse assim, qualquer bom resultado obtido na prática de um método poderia ser alegado como prova de qualquer doutrina, indiferentemente: a santidade do Buda demonstraria a validade da doutrina da livre empresa, e os milagres de Cristo seriam provas do vegetarianismo. Se a coisa fosse extrapolada para domínios extra-religiosos, a dieta de Beverly Hills atestaria a veracidade do marxismo e os sucessos do sistema de franchising seriam um argumento em favor da física quântica. Ora, o que vimos no epicurismo foi justamente que nele não há conexão entre teoria e prática; de modo que mesmo resultados práticos fabulosos não serviriam em nada como provas da teoria.
Estando as coisas nesse pé, somente um perfeito charlatão iria apelar, em última instância, para o argumento de que essa teoria, demasiado profunda para que a alcance a mera inteligência lógica, só pode ser compreendida por quem primeiro, sem discuti-la, pratique o método; pois isto seria um convite a que cada qual se entregasse com tanto mais fervor à prática quanto menos estivesse em condições de compreender a teoria. Neste caso, a perfeita imbecilidade se tornaria a mais alta prova de qualificação de um discípulo para a via espiritual.[ 25 ]
3º: Mesmo uma cosmologia simbólica, que se apresentasse como simples preparação imaginativa para uma ascese, teria de atender a um requisito óbvio: teria de ser sensata ou verossímil — pelo menos esteticamente verossímil — o bastante para poder acalmar provisoriamente a demanda de explicações de um homem adulto; e a cosmologia de Epicuro é apenas uma história mal contada, que talvez sirva para adormecer crianças ou velhinhas, mas que, no homem capaz de julgar, desperta apenas um sentimento de incongruência, uma vertigem abissal, sinal seguro de que algo ali está errado. Se, diante deste sinal, o candidato a discípulo, movido pelo temor reverencial que lhe inspira a pessoa do mestre ou pela chantagem emocional da massa de seus condiscípulos, reprime a exigência interior de explicações e se atira junto com eles no abismo, então, evidentemente, nada mais resta dizer, exceto o número do telefone do hospital psiquiátrico mais próximo.
4º: Se a cosmologia de Epicuro não vale nem mesmo como prefácio simbólico a uma prática ascética, então vale somente como miragem para atrair os discípulos a essa prática. Vale o mesmo que um anúncio do Silva Mind Control. Sua eficácia depende de que o discípulo tenha abdicado de toda demanda da veracidade e esteja somente em busca de um alívio factício para angústias banais. Nossas cidades estão cheias de pessoas assim, que não atinam com as temíveis conseqüências psicológicas a que podem chegar por esse caminho fácil. É a elas que se dirige o apelo de Epicuro e de José Américo Motta Pessanha.
§6 Aimaginação dos deuses. Aeviternidade
Mas não pensem que termina aí o rol de problemas filosóficos que mantêm atarefadíssimos os ociosos deuses de Epicuro. Há um pior ainda.
Se os deuses falam, é porque pensam. Se pensam, têm memória e imaginação; e como tudo o que aparece na memória e na imaginação tem, segundo Epicuro, existência material (só que mais rarefeita que a do corpo), segue-se que as coisas que os deuses recordam e imaginam existem materialmente nesse mesmo instante. Sendo essas coisas, porém, mais rarefeitas do que os corpos dos deuses que as imaginam, a equação epicúrea de que rarefação = durabilidade obriganos a admitir que elas são mais duráveis do que os deuses mesmos. E se por acaso ocorresse a um deus a idéia desastrosa de pensar num gato ou numa lagartixa, estes miseráveis mortais ficariam, ipso facto, dotados de uma durabilidade maior que a dos deuses.
A coisa torna-se ainda mais catastrófica pelo fato de que, entre os seres e coisas recordados pelos deuses, pelo menos alguns são também pensantes, e dotados portanto de memória e imaginação. Um deus pode, por exemplo, pensar num homem que está pensando num gato que está pensando numa lagartixa, e isto inexoravelmente formaria uma hierarquia de durabilidade crescente que partiria de um deus provisório e culminaria numa lagartixa eterna, caso a lagartixa por sua vez não pensasse em mosquitos.
Se a idéia em si já é bastante desconfortável, para um materialista roxo como Epicuro ou Pessanha ela deve assumir uma feição sinistra e diabólica uma vez constatado que, nessa hierarquia dos seres recordantes, os lugares mais altos e duráveis são ocupados pelos seres mais rarefeitos, e os lugares mais baixos pelos seres mais densos. Ou seja: que quanto mais matéria existe num ser, mais baixo ele está na escala ontológica e mais próximo da irrealidade pura e simples. E isto, para dizer o português claro, é autêntico idealismo.
Uma possível saída para o dilema seria o conceito de eviternidade, ou perenidade. Os deuses, diz Epicuro, não são eternos. São mortais, mas, uma vez mortos, se refazem integralmente tais e quais. Não estando presos aos limites de uma existência determinada, talvez até pudessem realizar o prodígio de recordar, como coisa vivida, fatos acontecidos antes de seu nascimento, ou sucedidos após sua morte. Bastaria que apelassem às memórias de uma vida anterior ou futura. Assim poderiam até mesmo tornar-se mais duráveis do que as lagartixas, de vez que estas não têm uma memória tão rica.
Mas isso seria multiplicar o problema, em vez de resolvê-lo, pois os seres recordados, para poderem retornar à memória dos deuses a cada nova existência destes, precisariam ser eviternos eles mesmos; e como cada um desses seres também teria suas recordações pessoais, constituídas por sua vez de seres ainda mais duráveis, a coisa toda se complicaria formidavelmente.
Resta ainda um pormenor intrigante. Se os deuses se refazem após cada existência, é que, de uma vida para outra, permanecem fundamentalmente idênticos a si mesmos. Sendo assim, existe continuidade de essência entre as várias existências; e uma essência que permanecesse inalteravelmente a mesma por cima da mudança, do tempo e da morte, seria nada menos que eterna. Com isto, além de recairmos no pecado mortal de idealismo, ficaria totalmente revogada a mais importante diferença entre os deuses de Epicuro e os da religião grega, ou de qualquer outra.
§7 Epicuro crítico de Demócrito
O leitor já deve ter percebido que a coerência lógica não é o forte de Epicuro. Mas o filósofo do jardim não ignorava a necessidade dela, nem a desprezava, tanto que a cobrava dos adversários. Só que, polemizando na base do faça-o-queeu-digo-mas-não-faça-o-que-eu-faço, ele geralmente chegava a conclusões tão ou mais estapafúrdias do que aquelas que refutava. Um exemplo é a sua crítica de Demócrito, endossada por Karl Marx e por José Américo Motta Pessanha.
Demócrito proclamava que no mundo só existe o vazio e, dentro dele, os átomos; o vazio, não sendo material, não oferece resistência, e por isto os átomos, impelidos por um inexplicável empurrão inicial, caem e acabam por se chocar uns com os outros. O universo de Demócrito é um vasto escorregador, onde o principal que acontece é tudo vir abaixo.[ 26 ] Epicuro responde que, se fosse de fato assim, os átomos cairiam todos em linha reta e paralelamente;[ 27 ] e, no vazio infinito em todas as direções, jamais chegariam a tocar uns nos outros como o pretende Demócrito, não podendo portanto juntar-se para formar os seres e coisas que, não obstante, existem.[ 28 ]
Deste apelo à razão, Epicuro conclui que a impulsão inicial da queda não é tudo; que independentemente dela, e contra ela, os átomos devem ter também um princípio de movimento livre e indeterminado, que ele denomina clinamen (“inclinação”, “tendência”) e define como o impulso espontâneo de buscar o prazer e fugir da dor. Pelo clinamen, os átomos se movem randomicamente em todas as direções, subtraindo-se ao menos em parte à lei de queda; e, entrando em contato fortuito uns com os outros, acabam por se aglomerar em massas compostas, formando os seres e os mundos.
Tudo isso é de uma ingenuidade atroz, para a mentalidade de hoje.
Perguntamo-nos se essa gente conseguia distinguir um ovo de um tomate, ou completar um silogismo da primeira figura. Acontece que Demócrito, contemporâneo de Platão, não podia ser mesmo muito bom em lógica, que não fora ainda codificada por Aristóteles e se exercia de maneira empírica e amadorística. Mas Epicuro já conhecia a obra de Aristóteles, e por isto é mais fácil perdoar a ingenuidade da cosmologia de Demócrito do que a inconsistência da sua refutação. Demócrito não se deu conta de uma coisa que hoje até um garoto de escola perceberia num relance: que, no vazio indeterminado, expressões como “cai” e “sobe” não fazem o menor sentido.[ 29 ] Pois essas são, precisamente, formas da determinação. Pressupõem balizas, uma escala, um espaço finito referido a um centro ou pelo menos a limitação a um campo determinado. Mas é também falso o que alega Epicuro: que, no vazio, todos os movimentos teriam de ser paralelos e uniformes; pois a indeterminação exclui, por definição, toda regularidade obrigatória. No indeterminado, todos os movimentos seriam indeterminados, sem a necessidade de introduzir, para isso, um novo princípio, e muito menos um princípio tão extravagante como o clinamen; os átomos se moveriam indeterminadamente em todas as direções, não porque quisessem fazê-lo movidos por tais ou quais intenções epicúreas, mas simplesmente porque não haveria nada que determinasse a direção do movimento. O vazio, uma vez admitido, torna o clinamen perfeitamente desnecessário.[ 30 ]
A física de Demócrito e sua refutação por Epicuro são ambas igualmente falazes, mas Pessanha condenou a primeira e endossou a segunda sob a alegação de que aquela favorece uma ética “conservadora” e esta uma ética “progressista” — argumento que é propriamente aquilo a que se dá a denominação científica de o fim da picada.
Pessanha enxergou conservadorismo na física de Demócrito pela razão de que a lei de queda impõe um determinismo integral, não deixando para os pobres átomos outra saída senão a obediência servil a uma necessidade tirânica; ao passo que, na física de Epicuro, sobra lugar para o imprevisto e o livre-arbítrio. Aliás sobra até demais, porque aí os átomos, usando e abusando do seu direito ao clinamen, acoplam-se e desligam-se à vontade na mais obscena gandaia cósmica, e vão gerando e destruindo mundos e mais mundos sem dar a mínima satisfação a seres, coisas ou deuses.
O devotado interesse de um filósofo pelos direitos políticos dos átomos pode parecer um tanto bizarro, porém mais inexplicável ainda é que os átomos devam ter o direito a estar livres da lei de queda, enquanto nós, seres viventes, ficamos inapelavelmente submetidos à arbitrariedade dos átomos, sem podermos dar um pio contra o seu maldito clinamen e só nos restando, em face dele, a alternativa de relax and enjoy que nos é oferecida pelo epicurismo. Tudo isso é, de fato, uma concepção muito singular acerca da liberdade.
A associação que Pessanha fez entre cosmologia e política é pura figura de estilo. Metaforicamente, a festança dos átomos no liberou geral da cosmologia epicúrea pode parecer mais progressista ou democrática do que a submissão implacável à lei de queda. Mas é só uma aparência, que pode ser interpretada num sentido como no sentido inverso. Algumas décadas atrás, uma visão determinística da queda inevitável do capitalismo não parecia aos comunistas ser mais progressista do que a crença liberal na imprevisibilidade da História? Os teóricos do liberal-capitalismo não atacaram no marxismo justamente o seu calcanhar de Aquiles determinista? O uso de imagens tiradas da ciência física em apoio desta ou daquela ideologia política só tem valor retórico, no sentido mais baixo da expressão. Aceitar a física de Epicuro por ser progressista é o mesmo que rejeitar a de Einstein por ser judaica.
Mas ainda há um outro senão. Quem disse que buscar o prazer e evitar a dor nos liberta do determinismo? Pavlov dizia exatamente o contrário: o binômio dorprazer é o comutador que aciona os reflexos condicionados, por meio dos quais um animal ou um homem pode ser governado desde fora. O budismo diz a mesma coisa: que só alcança a liberdade quem se coloca para além da dor e do prazer. Aristóteles o confirma, mediante a distinção, que se tornou clássica e foi endossada pelo cristianismo, entre a vontade livre e a obediência ao instinto. E também pelo Dr. Freud, com o seu “princípio de realidade” que transcende o princípio do prazer. Mas não é preciso tanta ciência para nos informar aquilo que um carroceiro sabe perfeitamente: que, fazendo um asno perseguir a prazerosa cenoura e esquivar-se do doloroso porrete, podemos levá-lo para onde o quisermos, sem que ele tenha a menor idéia de estar sendo conduzido de fora nem deixe de estar persuadido de que exerce livremente o seu clinamen. Não há saída: se os átomos seguem o clinamen, não são livres: obedecem ao determinismo do instinto, que é rígido e repetitivo como a lei de queda.
Politicamente, então, a coisa é das mais óbvias. Bismarck dizia que a ciência do governo consiste em pauladas e guloseimas. O filósofo Alain, teórico do Partido Radical francês, tornou célebre a condenação do clinamen em nome da liberdade. Os homens são dóceis e manipuláveis, argumentava ele, justamente porque buscam o prazer e fogem da dor; levados pelas sensações, caem no engodo das aparências, ardilosamente encenadas pelo tirano (lembram-se do futebol no tempo do general Médici?). O cidadão consciente, reagindo contra o ardil, abstrai-se das impressões de prazer e dor e decide segundo a lógica implacável da ordem física, que não mente. Aqui é o determinismo que se torna “progressista”, e o clinamen um instrumento da tirania. Por uma coincidência irônica, esse argumento está no livro Le Citoyen contre les Pouvoirs, em cujo título os organizadores do ciclo de Ética se inspiraram para nomear uma das divisões do evento: “O cidadão contra os poderes”. Eis aí no que dá citar sem ler.
Feitas as contas, reação e progressismo, ditadura e democracia podem indiferentemente chamar em seu apoio Demócrito ou Epicuro, a lei de queda ou o clinamen, com iguais resultados: no reino da retórica política, todos os argumentos são de borracha.
20 Veremos, no fim, que essa opinião não é totalmente destituída de sentido, mas que o seu sentido é o de um engodo proposital.
21 Lucrécio, De rerum natura, V, 146 ss.
22 Diógenes Laércio, X, §32.
23 E não haveria nada de estranho em que uma escola de ascetismo atribuísse a seus deuses a capacidade de produzir efeitos pela sua simples presença, sem necessidade de uma ação externa. Nas tradições espirituais em geral, a capacidade para a “ação de presença”, como se denomina aliás tecnicamente, é atribuída mesmo a santos e gurus; e a imobilidade agente é, por definição, um dos atributos essenciais da divindade em todas as religiões.
24 Objeção exatamente igual à que Pessanha, como veremos mais adiante, lançou contra a filosofia de Demócrito, sem notar que ela se aplica também a Epicuro.
25 Não falta, no mundo da pseudo-espiritualidade ou antiespiritualidade contemporânea, quem interprete assim as expressões da Bíblia acerca dos “pobres de espírito”, da “inocência” e dos “pequeninos”, fazendo a apologia do mongolismo. Nada mais lisonjeiro, para um público intelectualmente incapaz, do que sugerir-lhe que sua estupidez é uma forma superior de aptidão espiritual.
26 O temível gozador metafísico Georges Gurdjieff reeditaria no século XX essa teoria, com um ar de seriedade à Buster Keaton que bastou para impressionar uma multidão de intelectuais. Ele denomina-a “Lei de Queda” e a expõe no início do livro Relatos de Belzebu a seu neto, numa linguagem alucinante onde é impossível distinguir o que é dito em sentido direto do que é dito em sentido oblíquo; logo em seguida argumenta, com igual cara-de-pau, pela viabilidade do moto contínuo, como que a desmascarar a fraude anterior; mas aí o leitor de alma oblíqua já está zonzo demais para perceber a piada. Gurdjieff tinha um prazer diabólico em humilhar os intelectuais ocidentais, levando-os a acreditar nos absurdos mais patentes, só para desmascarar-se em seguida e desmascarar, no ato, a vacuidade mental do seu público. Ele sabia do ponto vulnerável que há na alma de todo materialista durão, e batia nesse ponto sem dó, até esmagar o cérebro do infeliz. O moderno intelectual ocidental tem, de fato, a mais funda incapacidade de perceber a fraude espiritual, que ele confunde com o mero charlatanismo, acreditando que precauções contra este bastam para resguardá-lo daquela. Gurdjieff não era evidentemente um charlatão, mas alguém dotado de poderes reais, e bastava um ocidental ter verificado isto para submeter-se a ele com reverência e temor, tomando-o como mestre espiritual. “Quando um homem já não crê em Deus — dizia Chesterton –, não é que ele não acredite em mais nada: ele acredita em tudo”. Gurdjieff provou isto em toda a linha; mostrou que as defesas pretensamente racionais do intelectual moderno contra a ilusão religiosa o tornam indefeso contra a fraude espiritual, tal como as defesas de um neurótico contra a terapia o tornam ainda inerme ante a neurose. Um exemplo contundente encontra-se no livro de Muniz Sodré, Jogos Extremos do Espírito (Rio de Janeiro, Rocco, 1990). Comprovar a autenticidade dos fenômenos produzidos pelo taumaturgo mineiro Thomas Green Morton foi o bastante para que Sodré, típico cientista social brasileiro de formação marxista, se prosternasse ante esses fenômenos como ante sinais do Espírito, sem perceber que ali havia apenas uma demonstração de siddhis (“poderes”, em sânscrito). Os siddhis podem ser adquiridos por treinamento, e não representam, para o homem espiritual, senão uma enganosa periferia do Espírito, uma zona nebulosa onde meras forças sutis da natureza podem ser tomadas pelos tolos como mistérios transcendentais. Os siddhis são a pirita espiritual. Comentarei este caso com mais detalhe no meu livreto O Antropólogo Antropófago. A Miséria da Ciência Social.
27 O que pressupõe que os átomos tenham peso – uma premissa epicúrea da qual Demócrito não compartilha pelo menos explicitamente.
28 V. Carlos García Gual, Epicuro, Madrid, Alianza Editorial, 1985, p. 110 ss.
29 V. adiante, §20, as considerações de Nicolau de Cusa quanto a este ponto.
30 Que ninguém confunda, levado pela coincidência vocabular, o indeterminismo epicúreo com o de Plancke Heisenberg. Este se opõe — logicamente, ou dialeticamente, ou complementarmente, como queiram — a um princípio real e concreto, que é o determinismo mecanicista, e não a um “vazio” que tornaria o indeterminismo perfeitamente redundante. Em caso de dúvida, leiam Werner Heisenberg, Diálogos sobre la Física Atómica, trad. Wolfgang Strobl y Luís Pelayo, Madrid, BAC, 1975 (ed. americana, Physics and Beyond. Encounters and Conversations, New York, Harper & Row, 1971), aliás um dos mais belos livros do século. Volto a este assunto mais adiante.