Se você tiver menos de 40 anos, provavelmente nunca ouviu falar de Cassandra Rios. Mas ela é simplesmente uma das escritoras que mais vendeu livros no Brasil: cerca de 300 mil por ano, na década de 1970. O que levou uma autora, que atraiu tantos leitores, a se manter na obscuridade? O teor devasso dos seus livros, é claro. Publicado como folhetim na revista Status, em 1980, Eu sou uma lésbica é certamente o seu trabalho mais ousado.
Editora: Beco do Azougue; 1ª edição (1 janeiro 2006); Páginas: 144 páginas; ISBN-10: 8588338734; ISBN-13: 978-8588338739
Leia trecho do livro
Prefácio
Prezado Leitor
Você tem diante de sí, um texto polêmico escrito por uma das mais polêmicas escritoras brasileiras.
Cassandra Rios detém o recorde de ser a mais censurada artista do país.
Seus temas eróticos, muitas vezes considerados pornográficos, fizeram com que, nos anos setenta, no auge do regime militar, trinta e seis de seus livros fossem censurados e aprendidos.
O que não a impediu de alcançar outro resultado, espantosamente positivo: foi a primeira mulher a vender um milhão de exemplares de livros no país. Isso numa época em que a população brasileira era de “90 milhões em ação”, menos da metade da população atual.
Neste dia da mulher, fica este lançamento como uma homenagem da LeBooks a todas as autoras brasileiras e, principalmente, à liberdade de expressão, um dos esteios de qualquer democracia.
Uma excelente leitura.
LeBooks
“Esse texto surge como gorjeio de dor pelas asas cortadas, como um rasgo na pele, como um grito preso na garganta, como uma represa que estoura porque não suporta mais o silêncio, a apatia, a quietude, a insatisfação e a calúnia! Assim como Ícaro se lançara aos perigos do proibido, esse é um texto que nasce inspirado pelo proibido, pelo improvável, pela literatura! Ë um texto que surge do encontro com a frase: ‘A finalidade deste livro é honestidade.”
Cassandra Rios (1977)
EU SOU UMA LÉSBICA
Sumário
APRESENTAÇÃO
Sobre a autora Cassandra Rios
I. VAMOS BRINCAR DE GATINHO?
II. ALGO ALUCINANTE APODERAVA-SE DE MIM
III. ELA PARECIA UMA FADA ILUMINADA
IV. O MEU ESTRANHO MUNDO SECRETO
V. OS HOMENS PREFEREM AS LÉSBICAS
VI. NÓS ESTAMOS SÓS NA MULTIDÃO, MAS O NOSSO MUNDO É LINDO!
VII. NO CARNAVAL TUDO ACONTECE MUITO RÁPIDO.
VIII. ATÉ QUE PONTO UMA CRIANÇA É INOCENTE
IX. A CRIANÇA É O VERDADEIRO MONSTRO SAGRADO.
APRESENTAÇÃO
Sobre a autora Cassandra Rios
Cassandra Rios em o pseudônimo de Odete Rios, nascida no bairro Perdizes em São Paulo em 1932. Cassandra é considerada a pioneira da literatura lésbica no Brasil. Embora perseguida pela censura, foi uma das autoras que mais vendeu livros entre as décadas de 1950 e 70. Seus livros, embora demonizados por alguns segmentos da sociedade e criticada por intelectuais, ultrapassaram a marca de mais de um milhão de exemplares vendidos. Trata-se de uma vendagem surpreendente para a época, o que leva a supor que tenha transcendido ao público lésbico e feminino.
Sua estréia na literatura foi com o livro “Volúpia do Pecado” no ano de 1948, então com apenas 16 anos de idade. Sem recursos próprios, sua mãe lhe emprestou o dinheiro para publicação. Esta obra lhe rendeu o pioneirismo de ter publicado o primeiro romance de temática lésbica a alcançar repercussão nacional e a colocou como uma das autoras que mais vendeu livros na história da literatura brasileira.
Escreveu em torno de 40 livros, dentre eles: Carne em delírio, Nicoletta Ninfeta, Crime de honra, Uma mulher diferente, A lua escondida, As traças, A tara, Tessa a gata, A paranóica, Breve história de Fábia e MezzAmaro. Todos com altos índices de vendagem. Seus livros eram lidos as escondidas. Quanto mais era censurada, mais despertava curiosidade pelo prazer do proibido, pelo prazer da leitura e pelo prazer da descoberta.
Seus livros misturavam alquimicamente, relações lésbicas, transformismo, sincretismo religioso, política, relações de poder, desejo feminino, negócios e religião. Suas obras transbordam vida. Em um período em que o prazer feminino não era considerado um direito, ousou desvelar e revelá-los de forma aberta e sem falsos pudores. Talvez por isto tenha sido perseguida e tão censurada.
Uma das características da narrativa de Cassandra é o fato de suas personagens refletirem sobre si, sobre a identidade lésbica com todas as suas contradições. Tendo em vista que essa identidade está inserida em uma rede de discursos, Cassandra disputava sobretudo a construção desta identidade. Suas obras sinalizam para uma mudança de comportamento; apresentava um quadro de seu tempo, ao mesmo tempo em que, introduzia elementos de uma transformação histórica.
Os livros de Cassandra surgiram em um cenário, pouco propício para este tipo de discussão. Ao abordar desejo e prazer entre mulheres, o erotismo, os conflitos internos advindo desta experiência e das cobranças que a sociedade impingia, revelou um universo que era silenciado. Essa ousadia lhe valeu perseguições tanto dos que apoiavam a ditadura quanto dos que a combatiam, mas, sobretudo lhe valeu um estrondoso sucesso editorial; tendo suas publicações disputadas nas livrarias durante quase 30 anos.
Os títulos de seus livros eram uma atração a parte: chamativos e insinuantes. Suas obras literalmente seduziam um número expressivo de leitores, porém foi ignorada pela crítica por ser considerada pornográfica e por seu estilo popular. Seus textos eram considerados marginais. Eram lidos as escondidas. A forma como a homossexualidade era tratada antes das obras de Cassandra era limitada ao pecado, patologia e o crime. Muito embora, estes elementos também fizessem parte de suas obras, ocupavam outra categoria analítica; eram apresentados como forma de preconceito, que suas personagens enfrentavam ao escolher viver sua sexualidade.
Cassandra rompeu padrões ao apresentar-se de smoking em diversas festas onde compareciam governadores e figuras de renome no cenário político e cultural. Também era frequentemente convidada a participar de diversos programas de TV.
Seus primeiros romances adaptados para o cinema foram “A paranóica” sob o título de “Ariella” (considerado sucesso de bilheteria) e “Tessa, a gata” ambos, dirigidos por John Herbert. Outro romance adaptado para o cinema foi “A mulher serpente e a flor” — com roteiro de Benedito Ruy Barbosa e dirigido por J. Marreco. Nos anos 1980, Cassandra continuava a escrever, porém não atinge o sucesso anterior. Tentou carreira política, mas não conseguiu se eleger. No final da vida trabalhava como revisora de livros e dedicava-se a pintura.
Curiosamente no dia 8 de março de 2002 – Dia Internacional da Mulher —Morreu Cassandra Rios, a mulher que era considerada a mais polêmica escritora brasileira. Faleceu de câncer, aos 70 anos de idade, pouco antes de lançar oficialmente sua autobiografia: “Mezzamaro, flores e cassis”, onde revela alguns insultos que recebidos ao longo de sua trajetória de escritora: “demônio das letras, “papisa do homossexualismo”, “uma dama de capa e espada”. Mas revela, sobretudo, o fascínio e o medo que exercia sobre seus leitores e críticos.
Sobre eu sou uma lésbica.
Publicado como folhetim na revista Status, em 1980, ‘Eu sou uma lésbica’ é certamente o trabalho mais ousado de Cassandra Rios.
Narrado em primeira pessoa por uma lésbica, conta a descoberta e as peripécias da definição de sua identidade sexual durante os anos 6o e 70. Pela prosa nua e crua e situações envolvendo sexo lésbico, um crime inusitado e até pedofilia, é um livro que causou, e ainda causa, muita polêmica. Em função disso, muitos leitores irão amá-lo e outro tanto, odiá-lo. O difícil é se manter neutro.
EU SOU UMA LÉSBICA
I. VAMOS BRINCAR DE GATINHO?
Eu me lembro bem. não eram só pernas de cadeiras que me rodeavam. Pernas de mulheres também.
Eu estava sentada no chão, debaixo da “mesa. E os meus olhos curiosos olhavam aquelas pernas com admiração. Nada estava dimensionado no tamanho do meu corpo, mas numa visão extraordinária das coisas que me rodeavam e que assumiam significados especiais no meu mundo infantil. E era especial a admiração por um par de pernas que me fascinavam, porque eram as pernas de dona Kênia.
Dona Kênia era a nossa vizinha mais próxima, e o marido dela era médico. Quase todas as tardes, as vizinhas vinham reunir-se em nossa casa para bater papo, depois dos seus afazeres domésticos.
Ninguém estava se preocupando comigo, porque eu em uma menina que não dava muito trabalho e não precisava de atenções e cuidados especiais. Assim parecia. Boazinha, quieta e obediente. O caso era que ninguém estava interessado em atravessar as fronteiras do meu mundo infantil. Ninguém se preocupava em analisar a desarmonia e as alterações da expressão dos meus sentimentos e emoções, a minha agressividade, os meus conflitos. Eu era, como toda criança, um organismo biológico diferente do adulto. Entretanto, o meu comportamento de quando criança me dá um conjunto de fatos que, sem dúvida, servem de base para determinar a minha natureza e personalidade.
Andando de joelhos, fora me infiltrando por entre as pernas que me atraíam, até ficar bem no centro sob a mesa. E olhava e comparava. Sem dúvida, as pernas de dona Kênia eram as mais bonitas, no meu inocente entender. Tudo para mim tinha uma cor e um formato que aguçavam a minha sensibilidade, principalmente tratando-se das pernas e da cor da pele de dona Kênia. Acho mesmo que a sensação do belo naquela idade estava ligada e era inerente à atração que dona Kênia exercia sobre mim.
As pernas de mamãe também estavam ali, mas não me interessavam, em absoluto; eu apenas me dizia interiormente que, por serem de minha mãe, naturalmente, também não tinham defeitos e eram perfeitas. Mas havia uma diferença estabelecida e firmada no modo como eu olhava para as pernas de dona Kênia e para as das outras amigas de mamãe, ali, todas à minha volta, formando como que uma cerca de canelas e sapatos.
Até os sapatos dela me fascinavam; eram sempre coloridos e seus pés ficavam muito lindos dentro deles, A força onipotente e propulsora se manifestava de modo claro na minha primeira infância. A sensualidade nasce com a vida, e no modo como eu olhava e admirava os pés de dona Kênia estava a primeira manifestação de sexualidade. Cheguei a debruçar-me para cheirá-los com cuidado, pois tinha certeza de que eram perfumados. Realmente, dela toda exalava um perfume suave e inebriante de sabonete e talco. Fiquei com a cabecinha inclinada, bem perto dos seus pés, aspirando o seu perfume, absorvendo o seu cheiro.
A minha boneca, o fogãozinho, as panelinhas, enfim, os meus brinquedos solitários, que eu pegara para me distrair, estavam abandonados perto do sofá da sala — preferira me pôr e ficar debaixo da mesa, cheirando as pernas e os pés de dona Kênia. O instinto poderoso do sexo, a força invencível da atração, tomava impulso.
O que estava fazendo produzia em mim uma sensação embriagadora; aos poucos, fui me debruçando, me aproximando, cada vez mais atraída e num impulso irresistível, segurei-lhe a canela com as minhas mãozinhas, ao mesmo tempo que lhe dava uma estranha e demorada lambida, Ela puxou as pernas, recolhendo-as para trás, assustada, exclamando, eufórica:
— Meu Deus! Tem um cachorrinho debaixo da mesa, lambendo a minha perna.
Simultaneamente, as donas das outras pernas feias – exceto as da minha mãe -abaixaram-se, erguendo a toalha, e me olharam com expressões arregaladas que eu nunca esqueci.
— O que você está fazendo aí, filhinha? Mamãe estendeu os braços para mim, pondo-se de cócoras, chamando-me para que eu saísse de sob a mesa, Havia um sorriso de ternura no rosto dela, e dona Kênia ria gostosamente, dizendo que aquela lambida na perna lhe causara aflição.
Saí de sob a mesa e dona Kênia beijou o meu rosto, achando muita graça no que eu fizera.
— Por que você lambeu a minha perna, Flávia?
Fiquei calada, dissimulada e hipócrita, sentindo o meu coraçãozinho bater forte, emocionada por estar com o rosto metido entre os seios gostosos e belos de dona Kênia, que me abraçava e me beijava a rosto, causando-me forte e esquisita sensação, Uma sensação que parecia muito com angústia, mas não era angústia; algo assim como um prazer agoniado. Como eu não soubesse o que responder, deixaram-me de lado.
Afinal, o que poderia significar uma lambida na perna de uma linda mulher perfumada, dada por uma menina de sete anos?
II. ALGO ALUCINANTE APODERAVA-SE DE MIM
Eu tinha sete anos. E sofria. Ardentemente, de ansiedade. E já sentia vergonha. Inusitadamente ou, de modo mais correto, intuitivamente, eu guardava segredo do meu sentimento ansioso, de expectativa, de espera pelas visitas de dona Kênia.
Vivia na janela e pelos jardins, com os olhinhos atentos à sua procura, na rua, na janela de sua casa, na porta da cozinha ou na varanda, Eu a procurava como uma criança procura o seu brinquedo predileto, colocado em lugar muito alto, fora do seu alcance. Acho que era essa a sensação que me atormentava. Dona Kênia me fascinava, e eu ficava aguardando o momento em que ela vinha à nossa casa para matar hora, conversando com mamãe. As vizinhas de mamãe gostavam de frequentar a nossa casa e lá passavam a maior parte da tarde, até a hora de irem preparar o jantar para os maridos e filhos.
Por isso, eu não gostava do seu Eduardo, o marido de dona Kênia. Em sempre por causa dele que ela ia embora às cinco e meia, dizendo:
— Eduardo fica uma fera quando telefona ou chega em casa e não me encontra. Ele vive reclamando: por que vou tanto ao supermercado, por que não compro tudo de uma vez ou não mando a empregada. Ele acha horrível mulher ficar metida na casa dos vizinhos. Eduardo é um horror. Bem, lá vou eu enfrentar a fera!
E eu comecei a assimilar e a comparar o que sentia quando dona Kênia não vinha passar a tarde com mamãe com o que o seu Eduardo sentia quando não encontrava a mulher em casa. Eu ficava uma fera! Era isso. Então deixava mamãe atordoada, sem entender as alterações do meu temperamento ainda incerto, preocupada com o meu comportamento agressivo e irrequieto, Eu ficava emburrada, não respondia quando ela me chamava, parecia mesmo noutro mundo.
Sentada no degrau da escada que conduzia ao jardim da nossa casa, olhava para a rua. Obviamente, para a outro lado da rua, numa mesma direção, olhos fixos na casa de dona Kênia.
— O que você tem, filhinha?
Um dia, mamãe se assustou e riu muito quando eu respondi, com unia inflexão de revolta:
— Estou uma fera!
— Por que você está uma fera?
Não respondi, sacudi os ombros. Mas logo minha expressão mudou, quando vi dona Kênia aparecer na porta da casa dela, atravessar a rua, abrir o nosso portão e dirigir-se a mim, carinhosamente como sempre:
— Como vai a minha bonequinha que virou cachorrinho?
Eu me retraía porque sabia da intensidade do meu sentimento. De algum modo, eu entendia que não podia demonstrar o que sentia, o que se passava comigo; por isso cada vez mais eu me transformava numa criança arredia, intimista, muda, indiferente ao que normalmente interessa as crianças. Nem brinquedos, nem passeios, nem carinhos me agradavam, a não ser, neste, caso, os que me eram feitos por dona Kênia.
Quanto a mamãe, eu também gostava quando ela me acarinhara, mas era uma coisa diferente, menos forte, não mexia com o meu corpo, não fazia o meu coraçãozinho bater, ao contrário; quando mamãe brincava comigo, eu ficava alegre, muito feliz, ria, enfim, em uma coisa natural que não criava um certo medo de revelar ou deixar transparecer o que sentia, como, por exemplo, quando dona Kênia me tocava ou simplesmente se achava próxima.
Aos sete anos, portanto, eu agia com hipocrisia e dissimulação, não pela intimidação do método pelo qual eu era criada, mas por algo intuitivo que já me prevenia contra as pessoas e me fazia guardar segredo de tais emoções. Eu queria que dona Kênia me apertasse nos braços, que me sufocasse entre os seus seios, que me levasse para a sua casa, não para ficar, apenas para me abraçar escondido, longe dos olhos de mamãe e das suas amigas.
Talvez isso pudesse ser explicado como timidez e receio de magoar mamãe pelo fato de desejar com mais ansiedade os carinhos e aconchegos de dona Kênia, mas eu sabia — possivelmente por uma excessiva precocidade, única explicação que encontro para justificar tal noção das coisas por parte de uma menina de sete anos — que não era esse o motivo; era algo relacionado ao prazer que sentia e que não queria que ninguém soubesse ou mesmo percebesse.
Engraçado que eu nunca tenha apelado para a masturbação (sei que há crianças até de dois anos que,’ flexionando o corpo, por um movimento do tronco, quando sentadas, masturbam-se). Durante os sonhos, porem, eu chegava a sentir uma sensação gostosa nos órgãos sexuais, alcançava um certo prazer, e a simples visão de dona Kênia era o suficiente para me transtornar. Ela aparecia nos meus sonhos, despia-me, abraçava-me, afofava-me contra os seus seios, e era tão forte o que eu sentia, que o perfume do seu corpo ficava grudado nas minhas narinas até quando eu acordava. Algo alucinante se apoderava de mim, tremores, angústia, uma agonia lenta e agradável; meu coração acelerava e. eu despertava, permanecendo como que num transe sugestivo.
E esse ato, que acontecia em sonho, repetia-se então durante todo o dia; quando dona Kênia aparecia lá em casa, as caricias imaginárias tornavam o desejo violento e grave. Eu queria ficar sozinha com ela e lamber os seus braços, o seu rosto, os seus pés perfumados, para que ela risse de novo e me chamasse de “cachorrinho sem-vergonha”, como quando, em uma segunda vez, numa tarde que ela fora passar em casa, esperei mamãe ir para a cozinha fazer o café costumeiro e meti-me sob a mesa. Fascinada, fiquei olhando para as pernas de dona Kênia. As sandálias de tirinhas coloridas, o salto muito fino e alto, a cor da saia e seu perfume me entonteciam. Ao mesmo tempo que alisava com os meus delicados dedinhos a barriga da sua perna, dei-lhe uma demorada lambida na canela.
— Seu cachorrinho sem-vergonha, sai já daí Sua risada me contagiou e eu ri muito junto com ela.
De repente, ela enfiou a cabeça sob a mesa, ficou muito séria e me pediu para sair dali, apontando o dedo em riste para mim:
— Não faça mais isso, viu, Flávia? Você não é cachorrinho, e eu não quero.
Seu olhar ficou gravado para toda a vida na minha memória e devo tê-la deixado muito intrigada naquele momento, porque abaixei a cabeça, triste, com lágrimas saltando dos olhos. Dona Kênia ficou preocupada (não queria que mamãe pensasse que ela havia sido rude comigo) e tentou acalmar-me com carinhos, afagando o meu rosto com os seus dedos longos, finos, macios, perfumados, as unhas pintadas de vermelho, brilhantes como lantejoulas convexas. Para que mamãe não me visse chorar, saí correndo dá sala e fui me esconder atrás de uma sebe no jardim e lá fiquei, chorando, tentando esconder-me de mim mesma, achando que dona Kênia fora má comigo.
Fiquei decepcionada e triste por saber que desse dia em diante não poderia mais lamber a perna de dona Kênía, que era, para mim, melhor do que um sorvete, melhor do que um chocolate, melhor do que um pirulito, melhor e muito mais gostosa do que todos os doces que pudessem me oferecer.
Sobre o autor: Cassandra Rios era o pseudônimo de Odete Rios. Nasceu no bairro Perdizes em São Paulo em 1932. Cassandra é considerada a pioneira da literatura lésbica no Brasil. Embora perseguida pela censura, foi uma das autoras que mais vendeu livro entre as décadas de 1950 e 70. Suas obras, embora satanizada por alguns seguimentos da sociedade e criticada por intelectuais, chegou a vender por ano 300 mil exemplares. O que era considerado número surpreendente para a época. Esta cifra leva a supor que tenha transcendido ao público lésbico e feminino. Sua estréia na literatura foi com o livro “Volúpia do pecada” no ano de 1948, então com apenas 16 anos de idade. Sem recursos próprios, sua mãe lhe emprestou o dinheiro para publicação. Esta obra lhe rendeu o pioneirismo de ser considerado primeiro romance de temática lésbica a alcançar repercussão nacional e a colocou como uma das autoras que mais vendeu livros na história da literatura brasileira.