A arte de perder é muitas vezes ignorada, embora façamos isso frequentemente ao longo da vida, enfrentando dores pela perda de bens, pessoas, sonhos e realidades. Saber perder é um reflexo de quem viveu intensamente o que ganhou. Em 2012, Ana Claudia Quintana Arantes fez uma palestra no TED que viralizou, e sua frase “A morte é um dia que vale a pena viver” inspirou seu livro homônimo, lançado em 2016. Reconhecida como uma das maiores referências em Cuidados Paliativos no Brasil, ela aborda a finitude de maneira surpreendente. Ana propõe que o medo da morte não é o mais importante, mas sim a possibilidade de chegarmos ao fim da vida sem aproveitá-la plenamente. Esta nova edição, revista e ampliada, é uma ode à vida, convidando-nos a repensar nossa existência e a oferecer às pessoas a chance de viver bem até seu último dia, transformando o fim em um término natural da jornada.
Editora: Editora Sextante; Edição: 1 (15 de fevereiro de 2019); Páginas: 192 páginas; ISBN-10: 8543107202; ISBN-13: 978-8543107202; ASIN: B07NF6B3T6
Leia trecho do livro
Dedico a sabedoria deste livro aos
meus maiores mestres: as pessoas
de quem cuidei e os seus familiares.
INTRODUÇÃO
“Se você expressar o que habita em você, isso irá salvá-lo. Mas se você não expressar o que habita em você, isso irá destruí-lo.”
Jesus – Evangelho de São Tomé
Um convite, uma festa. Chego sem conhecer ninguém além da anfitriã. Pela recepção calorosa dela, percebo que alguns convidados estão interessados em saber quem sou. Aproximam-se. Fico meio tímida nessas ocasiões e tenho dificuldade para começar a conversar. Mais uns instantes e a roda se amplia; a conversa flui. Cada um diz quem é e o que faz da vida. Observo gestos e olhares. Um instinto misteriosamente provocador brota em mim. Sorrio. Por fim, alguém pergunta:
– E você? Trabalha com o quê?
– Sou médica.
– Mesmo? Que máximo! Qual é a sua especialidade?
Segundos de dúvida. O que vou responder? Posso dizer que sou geriatra, e a conversa vai enveredar para o rumo mais óbvio. Três ou quatro dúvidas sobre problemas de cabelo e unhas. O que eu, com minha experiência, recomendo para retardar o envelhecimento? Talvez alguma pergunta sobre um familiar que parece “esclerosado”. Dessa vez, porém, quero responder algo diferente. Quero dizer o que faço; dizer ainda que o faço com muito prazer, e que me realiza muito. Não quero fugir. Essa decisão interna me traz uma inquietude e, ao mesmo tempo, uma sensação agradável de libertação.
– Eu cuido de pessoas que morrem.
Segue-se um silêncio profundo. Falar de morte em uma festa é algo impensável. O clima fica tenso, e mesmo a distância percebo olhares e pensamentos. Posso escutar a respiração das pessoas que me cercam. Algumas desviam o olhar para o chão, buscando o buraco onde gostariam de se esconder. Outras continuam me olhando com aquela expressão de “Oi?”, esperando que eu rapidamente conserte a frase e explique que não me expressei bem.
Já havia algum tempo eu tinha vontade de fazer isso, mas me faltava coragem para enfrentar o abominável silêncio que, eu já imaginava, precederia qualquer comentário. Ainda assim, não me arrependi. Internamente, eu me consolava e perguntava a mim mesma: “Algum dia as pessoas escolherão falar da vida por esse caminho. Será que vai ser hoje?”
Então, em meio ao silêncio constrangedor, alguém toma coragem, se esconde atrás de uma bolha sorridente e consegue fazer um comentário:
– Nossa! Deve ser bem difícil!
Sorrisos forçados, novo silêncio. Em dois minutos, o grupo se dispersou. Um se afastou para conversar com um amigo recém-chegado, outro foi buscar um drinque e não voltou mais. Uma terceira pessoa saiu para ir ao banheiro, outra simplesmente pediu licença e se foi. Deve ter sido um alívio quando me despedi e fui embora antes de completar duas horas de festa. Eu também senti alívio e, ao mesmo tempo, pesar. Será que algum dia as pessoas serão capazes de desenvolver uma conversa natural e transformadora sobre a morte?
Mais de quinze anos se passaram desde esse dia em que saí do armário. Assumi minha versão “cuido de pessoas que morrem” e, à revelia de quase todos os prognósticos da época, a conversa sobre a morte está ganhando espaço na vida. A prova disso? Estou escrevendo este livro, e há quem acredite que muita gente vai ler.
QUEM SOU EU
“Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com suas contradições.”
Manoel de Barros
Eu vejo as coisas de uni jeito que a maioria não se permite ver. Mas tenho aproveitado várias oportunidades de capturar a atenção de pessoas interessadas em mudar de posição, de ponto de vista. Algumas apenas podem mudar, outras precisam; o que nos une é o querer. Desejar ver a vida de outra forma, seguir outro caminho, pois a vida é breve e precisa de valor, sentido e significado. E a morte é um excelente motivo para buscar um novo olhar para a vida.
Por meio deste livro, você e eu começamos uma convivência na qual espero compartilhar parte do tanto que tenho aprendido, a cada dia, com meu trabalho como médica e também como ser humano que cuida de seres humanos, intensamente humanos. De cara, preciso já dizer que saber da morte de alguém não faz necessariamente com que nos tornemos parte da história dessa pessoa. Nem mesmo assistir à morte de alguém é suficiente para nos incluir no processo. Cada um de nós está presente na própria vida e na vida de quem amamos. Presente não apenas fisicamente, mas presente com nosso tempo, nosso movimento. Só nessa presença é que a morte não é o fim.
Quase todo inundo pensa que a norma é fugir da realidade da morte. Mas a verdade é que a morte é uma ponte para a vida. Despratique as normas.
POR QUE EU FAÇO O QUE FAÇO
“Queres ser médico, meu filho?
Essa é a aspiração de uma alma generosa,
De um espírito ávido de ciência.
Tens pensado bem no que há de ser tua vida?”
Esculápio
Enquanto escrevo este livro, provavelmente já passei da metade da minha vida aqui nesta Terra, e venho há mais de duas décadas praticando medicina. Muitas escolhas profissionais podem levar a questionamentos, e a medicina está entre os mistérios. Por que a medicina? Por que escolhi ser médica? Uma das razões mais mencionadas pelos que seguem esse caminho é a existência de médicos na família, alguém que admiram, mas não, não há nenhum na minha. No entanto, sempre houve doença e sofrimento, desde que eu era muito pequena.
Minha avó, a quem atribuo o primeiro passo em direção a essa escolha profissional, tinha doença arterial periférica e se submeteu a duas amputações. Perdeu as pernas por causa de úlceras mortalmente dolorosas e gangrena. Expressava suas dores com gritos e lágrimas. Suplicava a Deus piedade, pedindo que a levasse. Apesar de toda a limitação que a doença lhe causou, ela me educou e cuidou de mim.
Nos piores dias, recebia a visita de um médico, o Dr. Aranha, cirurgião vascular. Lembro-me dele como uma visão quase sobrenatural, angelical. Um homem grande, de cabelos grisalhos penteados para trás cuidadosamente com Gumex, um poderoso fixador. Ele cheirava bem. Era muito alto (não sei se era alto de fato ou se assim me parecia por eu ter apenas 5 anos) e se vestia sempre de branco. Camisa engomada, cinto de couro gasto, mas com a fivela sempre brilhando. Suas mãos grandes e muito vermelhas carregavam sempre uma maleta preta pequenina. Eu acompanhava com os olhos os movimentos daquelas mãos e desejava ver tudo o que se passava no quarto de minha avó. Mas sempre me mandavam embora. Mesmo assim, vez por outra esqueciam a porta entreaberta, e eu assistia a toda a consulta pela fresta. Ela contava a ele sobre as dores, sobre as feridas. Ela chorava. Ele a consolava e segurava suas mãos. Cabia todo o sofrimento dela dentro daquelas mãos enormes. Em seguida, ele abria os curativos e explicava os novos cuidados para minha mãe. Deixava a receita, passava a mão na minha cabeça e sorria.
— O que você vai ser quando crescer?
— Médica.
A VIDA É FEITA DE HISTÓRIAS – O QUE EU FIZ COMA MINHA?
“Chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer”
Clarice Lispector
O Dr. Aranha era para mim o ser mais poderoso e misterioso do mundo. Depois de atender minha avó, ele sempre ficava um pouco mais. Entre cafés, biscoitos de polvilho e bolo de laranja, seguia com algumas conversas mais amenas, gesticulando com suas mãos imensas diante de meus pequenos olhos atentos. Na hora de sair, me beijava a testa e fazia crescer em mim a vontade de beijar testas também. Quando ia embora, deixava um rastro de paz. Era impressionante como minha avó melhorava só de vê-lo. Minha mãe voltava a sorrir, cheia de esperança na nova receita.
A vida seguia, mas, entre altos e baixos, o curso natural da doença levou à amputação das pernas. A esperança de a dor passar com a amputação também acabou rapidamente: ela persistia. Diagnóstico atemorizante para uma criança: minha avó tinha uma dor fantasma. Dor fantasma… Teria sido possível exorcizá-la? Mandar a dor fantasma seguir seu caminho evolutivo? Tirá-la do purgatório e libertá-la rumo ao céu das dores? Ou poderíamos condená-la ao inferno, onde ficaria por toda a eternidade e nunca mais amedrontaria ninguém por aqui?
O que faço eu, ainda viva, para combater uma dor fantasma?
Rezar não adiantou.
Amputei as pernas finas ou gordas de todas as minhas bonecas. Nenhuma escapou ao destino cruel da semelhança. Só a Rosinha, que viera de fábrica com as pernas cruzadas, como um Buda, ficou inteira. Hoje ainda me pergunto: a escolha de se manter sentada nos protege de andar e de perder as pernas no caminho? Mas a Rosinha ganhou marcas “cirúrgicas” de canetinha, só para me lembrar que, mesmo se eu quiser me manter sentada, a vida deixará suas marcas. Então, aos 7 anos, eu já tinha uma enfermaria que cuidava da dor das bonecas. No meu hospital ninguém tinha dor. Entre um remédio e outro, eu as colocava sentadinhas e ensinava a elas o que aprendia na escola. Minha avó se divertia com as cenas e sempre perguntava:
— Mudou de ideia? Vai ser professora?
— Vou ser os dois, vó! Quando a dor delas passa, elas querem aprender!
Minha avó ria e dizia que queria ser cuidada no meu hospital. E eu prometia que cuidaria dela e que ela nunca mais sentiria dor. Perguntava também se, depois que a dor passasse, ela ia querer ter aulas. Ela respondia que sim.
— Você me ensina a ler?
— Claro que sim, vó!
Ela sorria. Devia achar bonita a minha certeza de criança.
Aos 18 anos entrei na USP. No início era dificil acreditar que eu estava cursando medicina, pois as primeiras disciplinas são muito ásperas — bioquímica, biofísica, histologia, embriologia. De vida humana, só a morte, nas aulas de anatomia. Lembro-me direitinho da primeira: na sala imensa, muitas mesas com pedaços de gente moita. Cadáveres. Achei que teria medo, mas eram tão diferentes e estranhos que ignorei os gritinhos e cochichos de pequenos pavores das minhas colegas de turma. Busquei um rosto e achei o cadáver de alguém que parecia jovem. A expressão era de puro êxtase. Comentei com uma colega ao lado:
— Olha a cara dele! Deve ter morrido vendo algo lindo.
A menina se encolheu e me olhou como quem olha um ET:
— Você é muito estranha.
Naquela sala, tentava contar a mim mesma as histórias possíveis de cada rosto das “peças” de estudo. Cada vez mais gente me olhava como se eu fosse um ET, e eu seguia o curso cada vez mais “estranha”. No final do terceiro ano, aprendi a fazer anamnese, termo que descreve o momento em que o médico entrevista o paciente. Achei que o guia detalhado que ensinava os estudantes a conversar com uma pessoa doente me conduziria por caminhos seguros.
Rústico engano, como descobri logo na primeira vez. Em um sorteio de casos na enfermaria de clínica médica do hospital universitário, conheci o Sr. Antônio. O professor já havia me relatado os principais fatos a respeito do paciente que eu entrevistaria: homem, casado, alcoólatra, tabagista, dois filhos, com cirrose hepática, câncer no figado e hepatite B; estava em fase terminal. Naquele tempo, as portas dos quartos tinham um quadradinho de vidro e podíamos espiar por ele sem precisar abri-las. Lembro que fiquei um bom tempo ali, diante da janelinha. Meu coração quase saía pela boca por causa da emoção de conversar pela primeira vez com um paciente de história tão complexa. O que eu não poderia imaginar era o que esse encontro iria desencadear de descobertas, medos, culpas e tormentas insondáveis dentro de mim.
Entrei no quarto sentindo um profundo respeito e temor. O Sr. Antônio estava sentado em uma cadeira de ferro esmaltada e descascada, em frente à janela, olhando lá fora. Era uma imagem de assustar: muito magro, mas com uma barriga imensa. Uma grande aranha de quatro membros. Tinha a pele amarelo-escura, o rosto sulcado de rugas profundas. Havia hematomas em todo o corpo, como se tivesse apanhado muito. Recebeu-me com um aceno de cabeça e um sorriso educado de dentes faltantes. Apresentei-me e perguntei se podíamos conversar um pouco.
Ele foi para a cama. Com muita dificuldade subiu os degraus da escadinha e se deitou lentamente. Comecei a penosa entrevista em busca de detalhes do passado: quando andou, quando falou, as doenças da infância, os antecedentes familiares. A história da moléstia atual. Sua queixa principal era a dor na barriga, do lado direito, bem abaixo das costelas. Falou que a barriga estava muito grande e isso dificultava a respiração. À noite sentia muito medo e a dor piorava. E, com a piora da dor, o medo aumentava. Tinha medo de ficar sozinho, de estar sozinho na hora da morte. E ainda tinha o medo de não acordar de manhã. Com os olhos vazando lágrimas, disse que merecia tudo isso. Tinha sido um homem muito ruim na vida, e sua mulher dizia que Deus o estava castigando. Achava que ela tinha razão. E o abismo entre o que ele dizia e o que eu queria dizer só crescia. A cada instante eu me dava conta, mais e mais, do quanto era impossível dizer qualquer coisa diante de tanto sofrimento. Fui ficando enroscada em um silêncio imenso e decidi que era chegado o momento de examiná-lo, mas não pude continuar. Não conseguia tocar naquele corpo; naquele instante, quem tinha medo era eu. Me veio uma fantasia: se eu o tocasse, poderia sentir a dor dele. Ao mesmo tempo, havia o medo de lhe causar mais dor. Fui buscar ajuda.
Primeiro tentei o posto de enfermagem. A enfermeira do andar mal levantou os olhos das suas anotações quando perguntei se poderia dar mais remédio para acalmar a dor do Sr. Antônio.
— Ele acabou de tomar dipirona. Tem que esperar fazer efeito.
— Mas ele ainda está com dor! E já tem mais de uma hora que deram a medicação — respondi.
— Não tem mais nada a fazer a não ser esperar a próxima dose, daqui a cinco horas — disse ela. — Mas e agora? Ele vai ficar com dor esse tempo todo? Como assim, não tem nada a fazer?
— Minha querida — retrucou ela, em um tom irônico —, no dia em que você for médica, vai poder dar mais remédio. Já falei com o médico de plantão e tentei convencê-lo a sedar o paciente. O Sr. Antônio precisa morrer logo.
— Morrer? Mas por que ele não pode ter menos dor antes de morrer?
A enfermeira baixou os olhos e sua atenção desapareceu no meio da papelada à sua frente. Percebi que não adiantava mais insistir com ela e fui atrás do professor. Eu o encontrei na sala dos médicos, tomando café com outros professores. Disse a ele que precisava dar analgésico para o paciente antes de continuar o exame, pois ele sentia muita dor. Fui repreendida; afinal, eu já fora informada de que se tratava de um paciente terminal, e não havia nada a fazer por ele. Entendi então o que era morrer de uma doença incurável em um hospital: todo o sofrimento do mundo em uma pessoa só, e todas as vozes terríveis ecoando: “Não há nada a fazer… Não há nada a fazer.”
Até o primeiro semestre do quarto ano, deparei com muitas mortes, previstas ou imprevistas. Crianças com doenças graves e mortes violentas, jovens com aids e câncer, e muitos idosos consumidos por anos e anos de sofrimento causado por doenças crônicas e debilitantes. Muitos eu vi morrer sozinhos na maca da porta do pronto-socorro. Cada vez que isso acontecia, fortalecia-se a minha certeza de que não ia dar para continuar. Parei a faculdade na metade do quarto ano do curso médico.