Livro ‘A Hora da Estrela’ por Clarice Lispector

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Concebida para celebrar o quadragésimo aniversário de sua publicação, esta edição especial de A hora da estrela reproduz pela primeira vez diversos manuscritos originais de Clarice Lispector. Traz, ainda, uma série de textos de referência, de estudiosos e ensaístas brasileiros e estrangeiros. Paloma Vidal se debruçou sobre os manuscritos propriamente ditos, ao passo que Hélène Cixous, Colm Tóibín, Florencia Garramuño, Nádia Battella Gotlib, Clarisse Fukelman e Eduardo Portella focalizaram todos os diferentes aspectos deste que foi o último livro escrito por Clarice. Uma obra de perfil único e original, conciliando habilmente a inovação estilística com os problemas sociais vividos por aqueles que, como a desventurada Macabéa, são obrigados a abandonar o Nordeste natal em busca de melhores condições de vida em outras paragens, nem sempre hospitaleiras. Clarice Lispector dispensa apresentação, já foi consagrada…

Editora: Rocco; 2ª edição (2 maio 2017); Páginas: 224 páginas; ISBN-10: 8532530664; ISBN-13: 978-8532530660; ASIN: B071CQ8YHM

Biografia do autor: Reconhecida pela crítica literária brasileira e estrangeira como uma das maiores escritoras do século XX, Clarice Lispector mudou os rumos da narrativa moderna com uma escrita singular, passando por diversos gêneros, do conto ao romance, da crônica à dramaturgia, da entrevista à correspondência e, também, pelas páginas femininas. –Este texto se refere à uma edição esgotada ou disponível no momento.

Leia trecho do livro

Livro 'A Hora da Estrela' por  Clarice Lispector
Livro "A Hora da Estrela - Edição Especial" por  Clarice Lispector
Livro "A Hora da Estrela - Edição Especial" por  Clarice Lispector
Livro "A Hora da Estrela - Edição Especial" por  Clarice Lispector

A culpa é minha
ou

A hora da estrela

ou
Ela que se arranje
ou
O direito ao grito
ou
Quanto ao futuro
ou
Lamento de um blue
ou
Ela não sabe gritar
ou
Uma sensação de perda ou Assovio no vento escuro
ou
Eu não posso fazer nada
ou
Registro dos fatos antecedentes
ou
História lacrimogénica de cordel
ou
Saída discreta pela porta dos fundos

Livro "A Hora da Estrela - Edição Especial" por  Clarice Lispector

Antes da hora

E agora – uma crônica do
encontro com os manuscritos
de
A hora da estrela

Paloma Vidal

para Tatiana Safem Levy

Um par de luvas de plástico, unia caixa que brilha de tão branca, muna pequena sala envidraçada e iluminada artificialmente. Tudo me faz pensar numa operação cirúrgica. Isso foi o que anotei. Em seguida uma pergunta sobre como fazer surgir uma emoção ali. Anotei isso e ergui a cabeça, tentando não ser vista ao olhar para J., sentada na escrivaninha confrontada à minha, atarefada e vigilante. Foi ela quem me ofereceu folhas, brancas também, e um lápis, que antes apontou, num gesto deliberadamente anacrônico. Ela passa horas dentro desta sala, com intervalos para o almoço e para o lanche, vendo como se abrem e se fecham as caixas brancas, que lembram presentes, menos por suas qualidades próprias do que pela expectativa daqueles que as abrem. Ela já viu esse gesto tantas e tantas vezes que poderia fazer uma tipologia: há os que riem, os que choram, há os desdenhosos e os desaforados, os que arregalam os olhos, os que os cerram. Há os que desconfiam, como eu. Tudo está mais ou menos previsto. Me pergunto se são muitos os que aceitam as folhas que ela oferece com gentileza junto com o lápis apontado, sendo permitido o uso de computador. Cadernos e canetas, não, computadores, sim.

Foi assim também da única outra vez que estive diante de manuscritos. Eram proibidos os cadernos e as canetas, bem como fotografar. Mas não havia luvas e as caixas eram cinza. Quando me deparei com as fichas do Diário de luto, escrito por Roland Barthes entre 1977 e 1979, após a morte de sua mãe, chorei, e me senti ridícula. Talvez por isso, desta segunda vez, tenha me precavido com uma pergunta. Ou talvez tenha sido a sala envidraçada. Ou a proximidade de J. Da primeira vez, na sede Richelieu da Biblioteca Nacional francesa, em Paris, olhei em volta e me surpreendeu que ninguém mais estivesse chorando. Antes, naquela manhã, eu tinha deixado meus filhos na escola. Era o último dia de aula. Algo estava ficando para trás e eu queria registrar absolutamente tudo. Fotografei cada passo. As fotos do dia 5 de julho de 2016 mostram os dois meninos na porta do apartamento, no hall do prédio, no pátio, nossos passos a caminho do portão, eles abrindo o portão, eles na esquina da rua da escola, alguns passos mais à frente, na porta da escola, me dando tchau, meus passos na rua da escola, a caminho do ponto de ônibus. A essas imagens se seguem, na câmara do celular, as de algumas fichas do diário de Barthes contrabandeadas, que ficaram como o registro de uma continuidade apta a justificar minha emoção.

Não houve necessidade de contrabando desta vez e eu deveria ter deixado isso claro desde a primeira linha: quando cheguei à pequena sala do Instituto Moreira Sanes, no Rio de Janeiro, e antes de abrir a caixa branca, eu já tinha visto escaneadas as anotações de Clarice Lispector para A hora da estrela. Junto com o pedido de escrever uma crônica do encontro com os manuscritos do livro, para uma edição comemorativa dos 40 anos de sua publicação, que se completam este ano, em 2017, vieram as imagens desses papéis, que no entanto eu fazia questão de ver ao vivo. Por quê? Se tivesse me feito essa pergunta antes de abrir a caixa branca, teria respondido que era por causa daquela outra experiência, com o diário de Barthes. Eu queria aquela emoção, mas eu desconfiava de que ela não viria do mesmo modo, uma vez que o encontro já havia acontecido.

É um segundo encontro, nesta pequena sala, de luvas postas, em companhia de J., ela que estende para mim folhas brancas e um lápis, eu que aceito, embora tenha levado o computador. Aceito por cortesia, porque me custa em geral dizer não a algo que se oferece com gentileza. Mas não é só isso: é um convite para escrever à mão. J. me faz um convite raro. Um convite, por sua vez, que poderia dar um sentido a este encontro. Quero o gesto dela em mim. Isso foi o que anotei em seguida, antes de me decidir por fim a abrir a caixa branca.

Preciso deixar claro também que eu estava me preparando para este encontro, mesmo temendo que, somada às anotações escaneadas previamente vistas, a preparação me afastasse daquilo que eu estava procurando, ao seguir o que me propuseram, que eu repetia, para mim mesma e para os outros: uma crônica do encontro com os manuscritos. Uma crônica do encontro com os manuscritos de A hora da estrela, último livro que Clarice publicou em vida, em outubro de 1977. Não havia outro jeito. Nos dias que antecederam este momento, eu precisava falar sobre isso; mais ainda, eu precisava ouvir dos outros, possíveis futuros leitores, o que eles esperavam de mim quando estivesse aqui. S. me falou do seu desejo de escrever sobre os últimos anos de Clarice. T. me provocou dizendo que como ela nasceu em 1979 talvez fosse uma reencarnação da autora. G. me sugeriu que copiasse o livro à mão. J. P. me perguntou se eu lembrava que idade eu tinha ao ler A hora da estrela pela primeira vez. Cada um do seu jeito, eles me mostram caminhos e me acompanham. J. também. Eu não abri a caixa sozinha. Todos eles a abriram comigo.

Dentro dela encontramos 34 pastas, de cor creme, de tamanhos diversos, numeradas do lado direito, a lápis: 1/34, 2/34, 3/34, e assim por diante. Logo descobriremos que o tamanho das pastas está de acordo com o tamanho das folhas que elas abrigam — menores quando se trata de notas soltas, maiores quando se trata de blocos de folhas de tamanho oficio — e nos perguntaremos se houve alguém que as confeccionou artesanalmente, à medida. Descobriremos ainda que os títulos escritos no centro da capa das pastas, também a lápis, correspondem às primeiras palavras da primeira folha dos manuscritos contidos nelas. Tudo isso supõe o trabalho manual de alguém. “O arquivo supõe o arquivista; uma mão que coleciona e classifica” M, escreve Arlette Farge em O sabor do arquivo. Penso nessas mãos enquanto passam pelas minhas as pastas, que por enquanto não abro. Penso que este arquivo supõe muitas mãos, antes das minhas. E que muitas outras virão, em busca dessa sobrevivência, desse vestígio de real, tão vivo quanto inacessível.

Penso nisso enquanto abro a pasta 34/34, a última, que me chama a atenção por conter uma outra pasta, laranja, de cartão, de tamanho oficio, onde provavelmente foram guardados e transportados estes papéis. Sua imagem não foi escanada. Busco então ser precisa na descrição, porque só com ela poderei contar ao abandonar esta sala. Nela está anotado em vermelho “TRABALHO OLGA” e, embaixo, em preto, “Manuscritos Clarice”. As anotações registram as mãos em exercício. Alguém anota sobre o que outro anotou antes. Em azul, num pequeno papel, leio: “ÚLTIMO Bilhete de Clarice/ Escrito no Hospital da Lagoa/ No dia 7-12-7742]. É esta a anotação que inicia os manuscritos, na pasta 1/34, que agora abro, voltando atrás, obedecendo a ordem que o arquivo determinou. A anotação deve ter sido feita por Olga Borelli, como parte de seu trabalho, que depois continuarão os arquivistas, ordenando, numerando e anotando, quando os manuscritos chegaram ao Instituto, em 2004, trazidos por Paulo Gurgel Valente, o filho que se desprende, aos poucos, dos escritos da mãe, para que outros os manuseiem. O último que ele trouxe, em 2012, foi o “Caderno de bordo” [31, uma caderneta com anotações de uma viagem feita por Clarice entre julho e agosto de 1944.

A Hora da Estrela por  Clarice Lispector - Um dos maiores clássicos da literatura brasileira, A hora da estrela completa 40 anos e chega às livrarias em edição comemorativa com projeto gráfico sofisticado, capa dura e recheada de textos críticos assinados por nomes de prestígio como Nadia Gotlib... Livros Online, Le Livro, Ebook e PDF.
Imagem do Livro “A Hora da Estrela – Edição Especial” por Clarice Lispector

Enquanto anoto “antes” e “depois” me dou conta de que esse modo de descrever o movimento do arquivo certamente não faz jus às suas idas e vindas, às suas hesitações, a um passa-passa que deve ser menos linear e mais sobreposto, como na brincadeira de empilhar mãos, em que a pilha se faz e se desfaz ao mesmo tempo. Mas não é à toa que a descrição sai desse modo: é estreita, etimologicamente inclusive, a relação entre o arquivo e a origem, fazendo-nos pensar em termos de algo que veio primeiro, que está no início de outra coisa, como, neste caso, os manuscritos que antecedem o livro. Somos seduzidos a pensar linearmente, mesmo que o arquivo contradiga tanto quanto reforça essa linearidade. Como não pensar nisso quando a palavra que o inicia é “ÚLTIMO”? Quando somos forçados a pensar no fim quando apenas estamos começando? Vejo isso como um sinal de que não adianta, neste encontro, tentar revelar antes ou depois um princípio ou um final. Os tempos vão se sobrepor. Contiguidades imprevistas vão surgir.

Me antecipo, eu sei. É que eu mesma estou aqui, na pequena sala, e já não estou mais. Anoto à mão nas folhas brancas que J. me deu, e já não estou lá, enquanto copio o que anotei nesta tela de computador. Me antecipo para desobedecer o arquivo, querendo ser fiel a ele. “A tarefa do geneticista seria tentar colocar esses tempos dispersos no espaço em uma ordem temporal — não uma ordem perfeita, não uma cadeia indestrutível —, mas em um movimento com direção”, escrevem Claudia Amigo Pino e Roberto Zular sobre um tipo de crítica genética que busca reconstruir o processo de criação, supondo a possibilidade de chegar a uma origem da obra. Críticos a ela, propõem que atentemos para o aspecto performativo da literatura, que ao dobrar-se sobre si mesma problematiza esse processo, e citam as perguntas que o autor Rodrigo S. M. faz na abertura de A hora da estrela: “Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré história já havia os monstros apocalípticos?” São elas que encontraremos na pasta 3/34.

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Na capa desta pasta, apenas o início da frase aparece copiada, seguida de reticências, usando uma régua como pauta imaginária, com uma letra muito caprichosa, que me lembra antigos cadernos escolares, a mistura de afeto e controle da escola primária. Copio o que o arquivista copiou na minha folha branca, mas sem régua, domesticando eu mesma a letra, que sai irregular e oscilante, por falta de prática recente. Quero esse gesto em mim, para estar um pouco mais perto do trabalho manual do arquivista. Vejo que era isso também que me dizia o convite de J.: a oportunidade de estar um pouco mais perto do que o arquivista nos dá, quando recaptura um fragmento de tempo através da cópia, garantindo a sobrevivência de tantos textos através de tantos séculos. “O sabor do arquivo”, escreve Farge, “passa por esse gesto artesão, lento e pouco rentável, em que se copiam textos, pedaço por pedaço, sem transformar sua forma, sua ortografia, ou mesmo sua pontuação. Sem pensar muito nisso. E pensando o tempo todo. Como se a mão, ao fazê-lo, permitisse ao espírito ser simultaneamente cúmplice e estranho ao tempo e a essas mulheres e homens que vão se revelando.”

Ser simultaneamente cúmplice e estranha — penso desse modo em Olga Borelli, anotando indicações para situar as notas, que preparam uma Mura estrutura do livro, trabalho no qual vinha auxiliando Clarice desde Água viva. Com sua letra aparece nos manuscritos o começo do livro, na pasta 5/34: “Tudo no mundo começou com um ‘sim’. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.” Clarice a conheceu no final de 1970. Em 11 de dezembro desse ano, ela lhe escreve uma carta em que começa dizendo: “Olga, datilografo esta carta porque minha letra anda péssima.” Nestas pastas, no entanto, tudo está escrito à mão. A letra de Clarice se encontra com a de Olga, cúmplices e estranhas. Em quase todos as notas, haverá indicações dela, como “descrição de Maca” ou “morte de Maca”, às vezes com uma dúvida: “Autor?”

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Vou adiante. Sinto que não posso me fixar demais, à espera de que cada uma dessas anotações me faça uma revelação. Começo a passar mais rápido as notas e pastas, fazendo pequenas pilhas que alarmam J.: “você vai saber colocar na ordem de novo?”, ela me pergunta, tirando os fones de ouvido e rompendo o silêncio que parecia ter sido pactuado entre nós depois de distribuídos nossos papéis. Eu respondo o que ela já sabe: que as pastas estão numeradas e que, sim, sim, está tudo sob controle. Ela deve ter notado minha inquietação. Minha sensação de falta de preparo. Não é a primeira a quem isso acontece. Há os que sabem o que procuram e há os que apenas procuram, sem saber por onde começar. “Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?” J. poderia muito bem ter me dito que era possível começar por onde eu quisesse. Que ela está ali para garantir que eu mantenha a ordem do arquivo, mas que, ao escrever, quem sabe sendo infiel a essa ordem, eu poderia, estranha aos desígnios do arquivista, me tornar cúmplice desses manuscritos.

Dou um salto. A cumplicidade que eu procuro poderá vir de uma nota na pasta 8/34. Com letra muito trêmula, em quatro linhas, sem pontuação, Clarice escreve no verso de um talão de “Requisição de cheques”: “Juro que este/ livro é feito/ sem palavras/ É uma fotografia muda.” Entre as anotações que recebi escaneadas, não foi incluída a imagem do verso do talão, e se não fosse o encontro posterior, possivelmente eu não teria como saber a origem do papel em que essas linhas foram escritas. Na imagem, via-se uma textura, finas listras bege recobrindo um papel de cor creme, com uma borda ligeiramente mais escura. Penso sobre a frequência destas notas na escrita de Clarice, quando as frases vêm inesperadamente, quando vem a necessidade de anotar, a qualquer momento, em qualquer lugar. Nestas pastas, há envelopes, papéis rasgados, folhas soltas, este pedaço de talão. Vejo a fascinação que exerce o registro de uma escrita que vem de repente e não pode ser contida. O registro de um instante. Do instante em que algo se cria. Além, também, do testemunho de um método, que só mais tarde, tendo aberto mais algumas pastas, será possível enxergar melhor.

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Por enquanto, me detenho nesta nota. O encontro entre estas frases e este papel. Qualquer tipo de papel poderia ter servido para estas anotações, eu sei, entre eles este, que, não obstante, ao contrário de outros, indica uma data, 15/9/76, um número de conta, uma agência, “Lido”, do Banco Nacional. Neste caso específico a escrita passa a existir no tempo e no espaço, numa relação muito mais concreta com o real do qual fez parte e do qual se tornou vestígio. Ela dá a ver um corpo, de quem percorre e habita um determinado lugar na cidade, numa época, com suas marcas singulares. Enquanto o texto mesmo fala dessa vontade de dar a ver, fotografar, como eu imagino agora: uma mulher atravessa a passos lentos a avenida Princesa Isabel, em direção à Prado Junior; para distraída, olhando através de seus óculos escuros as vitrinas cintilantes das lojas na avenida Nossa Senhora de Copacabana, mas não lhe interessam tanto as roupas, que lhe parecem brilhantes demais, quanto os manequins mudos, que a remetem a uma solidão compartilhada com uma multidão de pessoas que como ela andam na rua mal suportando o calor. Fotografar essa mulher, guardá-la, e depois tentar dizê-la, sabendo que entre as palavras e ela haverá um desencontro.

Haverá também um encontro, inesperado, difícil de dizer aqui. Em 1976, a Argentina e o Brasil estavam sob ditadura. Em junho de 1977, quando eu tinha dois anos, meus pais chegaram ao Brasil vindo de Buenos Aires e se instalaram no nono andar de um apartamento alugado na avenida Nossa Senhora de Copacabana, em frente à Praça do Lido. Sei que esta crônica não deve ser sobre mim. Sobre onde eu estava em outubro de 1977. Ou entre junho e dezembro de 1977. Ou em julho de 2016. A primeira pessoa está bastante apagada do pedido “uma crônica do encontro com os manuscritos”. Deve ser um encontro, até certo ponto, até onde a crônica permitir, impessoal, quase anônimo. Só que um encontro é feito de coincidências que não se pode prever nem evitar. E nem sequer as anotações escaneadas vistas antes de chegar aqui faziam prever a palavra “Lido” assinalando um pedaço compartilhado no mapa do Rio de Janeiro. Anoto que há algo com a simultaneidade de espaços e tempos que pode revelar um fragmento de história comum. Que o que é comum pode deixar falar outras vozes, além da minha e da dela.

Volto à nota. Me detenho também nela porque me chama a atenção para uma relação que não é indiferente ao que este livro, entre os escritos de Clarice, traz com tanta força, como indicaram os que o leram ao longo das últimas quatro décadas: um chamado para o exterior, para fora do eu, para fora, até, da própria literatura, num risco que dificilmente outros escritores encarariam. “Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa”, escreve o autor na abertura do livro. A palavra escrita no talão me chama a atenção para o sentido profanatório deste texto, que em tantos momentos coloca em xeque o lugar de quem escreve e do que se escreve no mundo. “Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia”, escreve também o autor, num eco à “fotografia muda”. E continua: “Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua.” Esse trecho aparece mais para o final do livro, recortado do resto, e não está presente nos manuscritos. Recorto dele: a espera da morte, a procura da palavra no escuro, o olho da rua. A literatura feita no limite, da vida e de si mesma.

Não quero me antecipar. “Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes, explica o autor. Quero também, à procura de cumplicidade, “uma visão gradual” destes manuscritos. E o que sai neste momento, da caixa branca, mais precisamente da pasta 10/34, não são mais notas soltas, mas um bloco de texto, escrito na frente e no verso de folhas de tamanho ofício, numeradas pela própria Clarice: constam na pasta as de 1 a 14, depois de 23 a 43, sendo que o número 39 se repete, num total de 36 páginas manuscritas, com relativamente poucas rasuras: há várias páginas sem nenhuma modificação e várias com apenas modificações pequenas. Elas começam com o título “Quanto ao futuro”, seguido de “Registro dos fatos antecedentes”, dois dos treze títulos que abrem o livro publicado. Busco ser precisa ao descrever, porque gostaria que fosse possível ver o que aparece para mim como uma descoberta: Clarice copiou nestas páginas, com começo, meio e “gran finale”, a história de Maca.


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