Livro ‘Os lugares que nos assustam’ por Pema Chödrön

"O livro de Pema Chödrön ensina a enfrentar medos e dificuldades com compaixão e coragem, transformando adversidades em crescimento pessoal."

Um guia para despertar nossa coragem em tempos difíceis. O livro explora a ideia de usar dificuldades e medos como oportunidades para cultivar compaixão e coragem. Pema Chödrön, uma monja budista, argumenta que, diante da incerteza da vida, podemos escolher entre nos fechar ou nos abrir para o desconforto. Ela propõe práticas espirituais para lidar com essas situações, encorajando a bondade e a compaixão como ferramentas para enfrentar desafios. Chödrön destaca a importância de reconhecer nossos medos e dificuldades e nos relacionarmos com eles de maneira gentil e compreensiva. Ao fazer isso, podemos despertar uma coragem e sabedoria que nem imaginávamos possuir, transformando nossas experiências e fortalecendo nossa resiliência emocional.

Editora: Editora Sextante; 1ª edição (24 fevereiro 2021); Páginas: 176 páginas; ISBN-10: 6555641177; ISBN-13: 978-6555641172; ASIN: B08VNFK3NW

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Biografia do autor: PEMA CHÖDRÖN é uma monja budista americana. Uma das mais brilhantes discípulas do famoso mestre de meditação Chögyam Trungpa, é professora residente no mosteiro de Gampo Abbey, no Canadá. Conhecida no mundo inteiro por sua interpretação pé no chão do budismo tibetano, Pema se destaca no ensinamento das práticas de meditação e de cura para estudantes ocidentais. É autora de Palavras essenciais e Comece onde você está, da Editora Sextante, Quando tudo se desfaz, A beleza da vida e Sem tempo a perder, entre outras obras. Instagram @anipemachodron

Leia trecho do livro

Ao Décimo Sexto Karmapa Rangjung Rigpe Dorje,
a Dilgo Khyentse Rinpoche e
a Chögyam Trungpa Rinpoche, que me ensinaram
o que significa ser destemida.

Prólogo

Quando ensino, começo sempre com uma aspiração compassiva. Expresso o desejo de que apliquemos os ensinamentos no dia a dia de nossa vida e, dessa forma, livremos os outros e a nós mesmos do sofrimento.

Durante a palestra, encorajo as pessoas a manter a mente aberta, assim como uma criança que, maravilhada, vê o mundo sem concepções prévias. Como diz o mestre Zen Suzuki Roshi: “Há muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na do perito.”

No final, dedico o mérito da ocasião a todos os seres. Esse gesto de amizade universal já foi comparado a uma gota fresca de água da fonte. Se a depositarmos sobre uma rocha, ao sol, ela logo evaporará. Se a colocarmos no oceano, no entanto, ela nunca será perdida. O desejo, portanto, é que não guardemos para nós mesmos os ensinamentos, mas os empreguemos em benefício dos outros.

Essa abordagem reflete os assim chamados três nobres princípios: bom no início, bom no meio, bom no fim. Eles podem ser empregados em todas as atividades da vida. Podemos iniciar qualquer coisa – começar o dia, comer uma refeição ou ir a uma reunião – com a intenção de sermos abertos, flexíveis e gentis. Depois, podemos prosseguir com uma atitude inquisitiva. Como costumava dizer meu mestre Chögyam Trungpa Rinpoche: “Viva sua vida como um experimento.”

Ao término da atividade, quer tenhamos sentido que fomos bem-sucedidos ou que falhamos em nossa intenção, fechamos a ação pensando nos outros, os que estão sendo bem-sucedidos e os que estão falhando, em todo o mundo. Desejamos que qualquer aprendizado que tenhamos tido em nossa experiência possa beneficiá-los também.

Com esse espírito, ofereço este guia sobre o treinamento do guerreiro compassivo. Que ele seja benéfico no início, no meio e no fim. Que possa nos levar aos lugares que nos assustam. Que enriqueça nossa vida e nos ajude a morrer sem arrependimentos.

U M  – A excelência da boditchita

Somente com o coração podemos ver corretamente; o essencial é invisível aos olhos. – ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY

Quando eu tinha cerca de 6 anos, recebi o ensinamento essencial da boditchita de uma velha que estava sentada ao sol. Eu ia passando em frente à casa dela, sentindo-me só, não amada e louca da vida, chutando qualquer coisa que me aparecesse pela frente. Rindo, ela me disse: “Menina, não deixe que a vida endureça seu coração.”

Naquele momento eu recebi esta instrução básica: podemos permitir que as circunstâncias da vida nos endureçam, nos tornando cada vez mais ressentidos e amedrontados, ou que essas mesmas circunstâncias nos tornem mais amáveis e mais abertos em relação àquilo que nos assusta. Sempre podemos escolher.

Se perguntássemos ao Buda “O que é boditchita?”, ele nos responderia que essa palavra é mais fácil de entender do que de traduzir. Ele nos aconselharia a tentar encontrar o significado dela em nossa própria vida. E até nos desafiaria, acrescentando que somente a boditchita cura, que a boditchita é capaz de transformar o mais duro dos corações e a mais preconceituosa e amedrontada das mentes.

Chitta significa “mente” e, também, “coração” ou “atitude”. Bodhi significa “desperto”, “iluminado” ou “completamente aberto”. Algumas vezes a boditchita – coração e mente completamente abertos – é chamada de ponto sensível, um local tão vulnerável quanto uma ferida aberta. Equipara-se, em parte, à nossa capacidade de amar. Mesmo a mais cruel das pessoas possui esse ponto sensível. Mesmo os animais mais selvagens amam suas crias. Como disse Trungpa Rinpoche: “Todos amam algo, mesmo que sejam apenas tortilhas.”

A boditchita também se equipara, em parte, à compaixão – nossa capacidade de sentir a dor que compartilhamos com os outros. Sem perceber, constantemente nos protegemos dessa dor, porque ela nos assusta. Erguemos muros de proteção feitos de opiniões, preconceitos, estratégias e barreiras, construídos devido ao profundo medo que temos de ser feridos. Esses muros são ainda mais fortificados por emoções de todo tipo: raiva, ânsia, indiferença, ciúme e inveja, arrogância e orgulho. Mas felizmente, para nós, o ponto sensível – nossa capacidade inata de amar e de nos importarmos com as coisas – é como uma brecha nesses muros que construímos. É uma abertura natural nas muralhas que criamos quando estamos com medo. Com a prática, podemos aprender a encontrar essa abertura, a aproveitar aquele momento vulnerável – amor, gratidão, solidão, constrangimento, inadequação – para despertar a boditchita.

Análoga à boditchita é a sensação de ferida aberta causada por um coração partido. Às vezes, esse coração partido faz nascer ansiedade e pânico; outras vezes, raiva, ressentimento e acusação. Mas debaixo da rigidez dessa armadura existe a ternura da tristeza genuína. Essa é a nossa ligação com todos aqueles que, alguma vez, já amaram. Esse genuíno coração de tristeza pode nos ensinar uma grande compaixão. Ele pode nos 15 tornar humildes quando estivermos arrogantes e suaves quando formos rudes. Ele nos desperta quando preferimos permanecer dormindo e penetra nossa indiferença. Essa contínua dor no coração é uma bênção que, quando completamente aceita, pode ser compartilhada com todos.

O Buda disse que nunca estamos longe da iluminação. Mesmo nos momentos em que nos sentimos mais perdidos, nunca nos alienamos do estado desperto. Essa é uma afirmação revolucionária. Mesmo as pessoas comuns, como nós, com problemas e confusão, possuem essa mente da iluminação, que chamamos de boditchita. A abertura e o calor da boditchita são, na realidade, nossas verdadeiras condição e natureza. Mesmo quando nossas neuroses parecem muito mais reais do que nossa sabedoria, mesmo quando nos sentimos confusos e sem esperança, a boditchita – como o firmamento – está sempre presente, inalterada pelas nuvens que a escondem temporariamente.

Por estarmos tão acostumados às nuvens, é claro, podemos achar difícil acreditar nesse ensinamento do Buda. A verdade, no entanto, é que, no meio de nosso sofrimento, nos momentos mais difíceis, podemos fazer contato com esse nobre coração de boditchita. Ele está sempre disponível, tanto na dor quanto na alegria.

Uma jovem me escreveu sobre ter se encontrado cercada, em uma pequena cidade do Oriente Médio, de pessoas que zombavam e gritavam, ameaçando atirar pedras nela e em seus amigos, por eles serem americanos. Estava aterrorizada, é claro, e foi muito interessante o que lhe aconteceu. Subitamente, ela se identificou com todas as pessoas que, ao longo da História, foram escarnecidas e odiadas. Compreendeu o que é ser desprezada por uma razão qualquer: grupo étnico, origem racial, preferência sexual ou gênero. Algo se abriu e ela se pôs no lugar de milhões de pessoas oprimidas e passou a enxergar as coisas sob uma nova perspectiva. Ela até mesmo compreendeu a humanidade compartilhada que havia entre ela e aqueles que a odiavam. Esse senso de profunda conexão, de pertencer à mesma família, é a boditchita.

A boditchita existe em dois níveis. No primeiro está a boditchita incondicional, uma experiência imediata renovadoramente livre de conceito, de opinião e de nossas prisões usuais. É algo imensamente bom, que não conseguimos agarrar nem mesmo de leve; é assim como sabermos, no íntimo, que não há nada a perder. No segundo está a boditchita relativa, que é a nossa habilidade de manter o coração e a mente abertos para o sofrimento, sem nos fecharmos a eles.

Aqueles que treinam sinceramente para despertar a boditchita incondicional e a boditchita relativa são chamados de bodisatvas, ou guerreiros – não guerreiros que matam ou causam mal, mas guerreiros da não agressão, guerreiros que ouvem os lamentos do mundo. São homens e mulheres dispostos a treinar, mesmo em meio ao fogo. Treinar em meio ao fogo pode significar que os guerreiros-bodisatvas se envolvem em situações desafiadoras com o objetivo de aliviar o sofrimento. Também se refere à sua disposição de superar a sua tendência pessoal de reagir e de se autoenganar, bem como à sua dedicação a desvelar a energia básica, não distorcida, da boditchita. Temos muitos exemplos de mestres guerreiros – pessoas como Madre Teresa e Martin Luther King – que compreenderam que os maiores males vêm de nossa própria mente agressiva. Eles devotaram sua vida a ajudar os outros a compreenderem essa verdade. Existem também muitos indivíduos que passam a vida treinando para abrir o coração e a mente, a fim de ajudar os outros a fazerem o mesmo. Como eles, poderíamos aprender a nos relacionar, como guerreiros, conosco e com nosso mundo. Poderíamos treinar para despertar nossa coragem e nosso amor.

Existem métodos tanto formais quanto informais para nos auxiliar a cultivar essa coragem e essa ternura. Existem práticas para alimentar nossa capacidade de nos alegrarmos, de nos libertarmos, de amarmos e de vertermos lágrimas. Há aquelas que nos ensinam a permanecermos abertos à incerteza e outras que nos ajudam a nos mantermos presentes em momentos nos quais, habitualmente, nos fecharíamos.

Onde quer que estejamos, podemos nos treinar como guerreiros. As práticas de meditação, bondade amorosa, compaixão, alegria e equanimidade são as nossas ferramentas. Com o auxílio dessas práticas, podemos expor o ponto sensível da boditchita. Vamos encontrar essa suavidade na tristeza e na gratidão. Vamos encontrá-la por trás da dureza da raiva e do tremor do medo. Ela está disponível tanto na solidão quanto na ternura.

Muitos preferem práticas que não causem desconforto e no entanto, ao mesmo tempo, desejam ser curados. Mas o treinamento da boditchita não funciona dessa maneira. Um guerreiro compreende que nunca podemos saber o que irá acontecer conosco em seguida. Podemos tentar controlar o incontrolável, buscando encontrar segurança e previsibilidade, sempre na esperança de ficarmos confortáveis e seguros. Mas, na verdade, nunca podemos evitar a incerteza. Esse não saber é parte da aventura e é também o que nos faz ter medo.

O treinamento da boditchita não oferece a promessa de finais felizes. Em vez disso, esse “eu” que deseja encontrar segurança – que quer algo a que se agarrar – pode, finalmente, aprender a crescer. A questão central do treinamento do guerreiro não é como evitamos a incerteza e o medo, mas como nos relacionamos com o desconforto. Como é que praticamos com a dificuldade, com as nossas emoções, com os embates imprevisíveis de um dia normal?

Com muita frequência, nos comportamos como pássaros tímidos que não ousam deixar o ninho. Ficamos sentados em um ninho que está se tornando bastante malcheiroso e que já há muito tempo não tem mais servido à sua função. Ninguém chega para nos alimentar. Não há mais ninguém nos protegendo e nos mantendo aquecidos. E, ainda assim, guardamos a esperança de que a mamãe pássaro irá retornar.

Poderíamos fazer a nós mesmos o favor supremo de, finalmente, abandonar esse ninho. É óbvio que, para isso, é necessário coragem. Também está claro que poderíamos usar algumas dicas úteis. Podemos duvidar de que estejamos aptos a ser guerreiros em treinamento. Mas podemos nos fazer a seguinte pergunta: “Eu prefiro crescer e me relacionar diretamente com a vida ou vou escolher viver e morrer com medo?”

Todos os seres possuem a capacidade de sentir ternura – de ter o coração partido, de sentir dor e incerteza. Portanto, o coração iluminado da boditchita está disponível em todos nós. O mestre da meditação do insight, Jack Kornfield, conta ter testemunhado isso na época do Khmer Vermelho, no Camboja. Cinquenta mil pessoas haviam se tornado comunistas sob a mira de armas, ameaçadas de morte se continuassem com suas práticas budistas. Apesar do perigo, um templo foi criado no campo de refugiados e 20 mil pessoas compareceram à cerimônia de inauguração. Não houve sermões nem preces, simplesmente o contínuo entoar de um dos ensinamentos centrais do Buda:

O ódio nunca termina pelo ódio;

somente pelo amor ele é curado.

Esta é uma lei antiga e eterna.

Milhares de pessoas cantaram e choraram, sabendo que a verdade dessas palavras era ainda maior do que o seu sofrimento.

A boditchita possui esse tipo de poder. Ela nos inspira e apoia nos bons e nos maus momentos. É como descobrir uma sabedoria e uma coragem que nem mesmo sabíamos que tínhamos. Da mesma maneira que a alquimia transmuda qualquer metal em ouro, a boditchita pode, se assim permitirmos, transformar qualquer atividade, palavra ou pensamento em um veículo para despertar a nossa compaixão.


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