Orwell: um homem do nosso tempo torna evidente o caráter premonitório dos livros do autor, traçando paralelos entre sua obra e os tempos atuais. Para um autor cujo trabalho foi considerado o mais importante durante os anos turbulentos de meados do século XX e que rompeu as fronteiras entre literatura, jornalismo e comentário político, houve relativamente poucas tentativas de apresentar George Orwell, o homem por trás dos escritos. Desde o início dos anos 1930, Orwell foi astuto em identificar aspectos nossos que resistiriam ao tempo e ressurgiriam muitas décadas depois: o antissemitismo, a tolerância do mundo livre aos regimes autoritários, o duplipensar como o motor do discurso político e até mesmo o Brexit. Por meio dessa lente contemporânea, Bradford constrói um retrato vívido do autor e o coloca, juntamente com sua obra, no centro de algumas das principais questões atuais…
Editora: Tordesilhas; 1ª edição (10 setembro 2020) Páginas: 376 páginas ISBN-10: 6555680059 ISBN-13: 978-6555680058 ASIN: B08HBY8TCB
Leia trecho do livro
PREFÁCIO E AGRADECIMENTOS
Todas as citações são de textos de Orwell e de outros autores mencionados na Bibliografia. Orwell, é claro, nasceu Eric Arthur Blair, mas, por conveniência, vou me referir a ele como “Orwell” ou “George Orwell”, e ao casal Eric e Eileen como “os Orwell”. Na preparação deste livro, devo agradecimentos à equipe da Biblioteca da Universidade de Ulster e à Lisa Verner. A dra. Amy Burns, uma fã de Orwell, foi de grande ajuda, assim como D. J. Howells, pela mesma razão. Minha editora na Bloomsbury, Jayne Parsons, foi uma joia.
INTRODUÇÃO
Bíografias, por sua natureza, tratam do passado, mas esta narrativa da vida de Orwell será um pouco diferente. O livro o trará ao presente e, com isso, mostrará que certas perguntas feitas pelo escritor à sua geração permanecem sem resposta e, por vezes, sem terem sido discutidas.
Nenhum autor é capaz de prever o futuro; no entanto, o talento de Orwell como pressagiador é extraordinário. Desde o início dos anos 1930, ele foi astuto em identificar aspectos nossos que resistiriam ao tempo e ressurgiriam muitas décadas depois: o antissemitismo, especialmente na extrema esquerda; a tolerância do mundo livre aos regimes autoritários, porque precisamos deles do ponto de vista econômico; o materialismo ignorante; a política populista; o nacionalismo descerebrado; o duplipensar como o motor do discurso político, isto é, mentiras descaradas; o ressurgimento da xenofobia aparentemente endêmica; e, é claro, o Brexit. Em sua maioria, os suspeitos de sempre não estavam vivos quando Orwell nos deixou, em janeiro de 1950, mas ele não ficaria surpreso ao vê-los como figuras-chave em reencenações dos dramas orwellianos: [Theresa] May, [Donald] Trump, [Boris] Johnson, [Michael] Gove, [Jeremy] Corbyn, [Nigel] Farage, [Vladimir] Putin, Xi Jinping e outros.
Na juventude, Orwell era antissemita, mas, ao contrário de quase todos que partilhavam dessa inclinação, tanto naquela época quanto hoje, Orwell distanciou-se de sí mesmo, reconheceu a atitude que a seu ver era perniciosa, confrontou as causas de sua aversão e acabou se arrependendo. A expiação de Orwell envolveu ao mesmo tempo desprezo por si mesmo e o terrível reconhecimento de que muitos de seus compatriotas eram tão perversos quanto ele tinha sido. Quem acredita que uma Grã-Bretanha ocupada teria protegido seus judeus deveria ler o jornalismo que Orwell produziu no tempo de guerra e repensar. Sua avaliação sobre o verdadeiro antissemitismo como uma forma calculada de duplipensar nos diz um bocado sobre o estado do Partido Trabalhista de Corbyn.
Na Espanha, Orwell foi um herói, arriscando a vida ao liderar inúmeros ataques contra trincheiras falangistasl e postos de metralhadoras. Levou um tiro na garganta e, como recompensa, foi acusado de traição pelos soviéticos e simpatizantes russos no Ocidente. Orwell e sua esposa, Eileen, se refugiaram em Barcelona e escaparam da execução pela nkvd, a polícia secreta russa, ao cruzar a fronteira para a França. Em resumo, ele sentiu na pele uma versão do que vinha ocorrendo por quase uma década sob o governo autoritário de Stálin: a dissidência resultava em julgamento-show sumário e execução.
Orwell abominava a pobreza, mas execrava em igual medida a inflexibilidade do marxismo e do comunismo, não os vendo como soluções; sistemas e ideologias que negam aos seres humanos a quixotesca oportunidade de viver e pensar como desejarem são, na visão de Orwell, quase tão cruéis quanto a desigualdade. Viajando em meio à classe trabalhadora inglesa, Orwell encontrou homens e mulheres quase reduzidos à condição de animais, mas, para seu desgosto, também detectou uma mistura de apatia e funesta resignação; algo bem diferente da energia indômita da Catalunha revolucionária. Os “proletas” de 1984 nasceram das tristes figuras de Na pior em Paris e Londres e O caminho para Wigan Pier. Ele tinha a expectativa de que as condições dos proletários melhorassem, mas não estava otimista com relação à mudança de um estado mental coletivo. Os entusiásticos aplausos da multidão em Lancashire, saudando o discurso de Mosley, seriam ecoados décadas depois por seguidores do Partido do Brexit, liderado por Nigel Farage. Mais importante, Orwell diagnosticou um estado de introversão e xenofobia que transcende classes e é a essência do caráter inglês: o Brexit existia muito antes de o Mercado Comum ter sido inventado.
E, é claro, temos o duplipensar, o uso da linguagem para distorcer a realidade objetiva. Hoje, isso não é uma ferramenta do Partido Interno, e sim uma condição cooperativa; não nos importamos de ser enganados. Mas erradicamos o pesadelo de 1984, não é mesmo? Pelo contrário. Como parceiros no comércio global, estendemos nossas tigelas de pedintes para a China, cujo Partido Comunista no poder poderia muito bem ter usado o romance de Orwell como um manual de instruções.
Os romances de Orwell da década de 1930 (Dias na Birmânia, A filha do reverendo, A flor da Inglaterra e Um pouco de ar, por favor!) são belos exemplos da arte da escrita, mas o leitor sente também uma tensão entre eles e os três livros publicados no mesmo período (Na pior em Paris e Londres, O caminho para Wigan Pier e Homenagem à Catalunha), que são igualmente fascinantes porque partem apenas de experiências vividas. Quando a Segunda Guerra Mundial foi deflagrada, Orwell decidiu que contar a verdade era mais importante do que inventar coisas. Seu jornalismo da década de 1940 é furioso e confrontador por ser baseado em fatos que ele observou e relatou, e que praticamente todas as outras pessoas preferiram ignorar. Desse modo, foi um ensaio para seus dois romances diatópicos mais conhecidos, A revolução dos bichos e 1984. Ambos sintetizam a teoria de Orwell acerca do papel da literatura, apresentada em Dentro da baleia e outros ensaios. A literatura não deve ser uma diversão ou distração, tampouco um ramo das “artes”. Deve mostrar o pior de nós e servir de alerta sobre o que somos capazes de criar. A Guerra Fria acabou, mas ainda precisamos dar atenção à advertência de Orwell. A versão chinesa do totalitarismo do “Grande Irmão” [Big Brother] é horripilante, e não apenas por ser pior do que qualquer coisa imaginada por Orwell. Em seu tempo, a esquerda tanto ludibriou a si mesma quanto à realidade do regime de Stálin. Hoje sabemos o que acontece no governo de Xi Jinping e, por uma questão de conveniência econômica, não damos a mínima. Orwell disse acerca de seu último romance: “Não deixe isso acontecer”. Pelo visto, agora ajudamos e instigamos a coisa a acontecer. Talvez possamos acreditar que Orwell esteja descansando em paz no cemitério em Sutton Courtenay, uma vez que impedimos sua profecia de se concretizar aqui e no restante do “mundo livre”. Mas leia nas páginas de 1984 as descrições do ritual dos Dois Minutos de Ódio, depois veja gravações de Trump conclamando seus correligionários a bradar “Prendam ela! Prendam ela!” e reavalie.