O imaginário do mestre do realismo mágico latino-americano retratado em seis contos ilustrados. Criado pelos avós, Gabriel García Márquez dizia que foi por causa da avó que ele se apaixonou pelas histórias contadas. Ele sempre se recordava com muito carinho dos relatos que ela compartilhava com ele quando era pequeno. Os seis contos reunidos neste livro retratam o imaginário do grande autor colombiano e têm em comum a presença de uma criança. Essas comoventes histórias são ilustradas pela premiada Carme Solé Vendrell, única pessoa que deu vida aos escritos de García Márquez, com a permissão do próprio autor. Fiel à magia de sua prosa, as ilustrações iluminam as delicadas reflexões sobre a infância que marcou o Prêmio Nobel de Literatura...
Editora: Record; 1ª edição (30 novembro 2020) Capa comum: 114 páginas ISBN-10: 8501118176 ISBN-13: 978-8501118172 Dimensões: 17 x 1.5 x 23 cm
Leia trecho do livro
O trem saiu do trepidante corte de pedras vermelhas, entrou na plantação de bananas, de ruas simétricas e intermináveis, e o ar se fez úmido e não se voltou a sentir a brisa do mar. Um rolo de fumaça sufocante entrou pela janela do vagão. No estreito caminho paralelo à via férrea havia carros de boi cheios de cachos verdes. Do outro lado do caminho, em inopinados espaços sem plantação, havia escritórios com ventiladores elétricos, acampamentos de tijolos vermelhos e residências com cadeiras e mesinhas brancas nas varandas, entre palmeiras e roseiras empoeiradas. Eram onze horas da manhã e ainda não começara a fazer calor.
— É melhor levantar a vidraça — disse a mulher. — Seu cabelo vai ficar cheio de carvão.
A menina tentou obedecer, mas a persiana estava presa pela ferrugem. Eram os únicos passageiros no vagão pobre, de terceira classe.
Como a fumaça da locomotiva continuava entrando pela janela, a menina levantou-se e pôs em seu lugar os únicos objetos que levavam: uma sacola de plástico com coisas de comer e um ramo de flores embrulhado em papel de jornal. Sentou-se no banco oposto, longe da janela, de frente para a mãe. Ambas vestiam um luto rigoroso e pobre.
A menina tinha doze anos e era a primeira vez que viajava. A mulher parecia velha demais para ser sua mãe, por causa das veias azuis nas pálpebras e do corpo pequeno, flácido e sem formas, em um vestido que parecia uma batina. Viajava com a coluna vertebral firmemente apoiada contra o espaldar do assento, segurando no colo com as duas mãos uma bolsa de verniz desbotado. Tinha a serenidade escrupulosa da gente acostumada à pobreza.
O calor começara ao meio-dia. O trem parou dez minutos numa estação sem povoado para abastecer-se de água. Do lado de fora, no misterioso silêncio das plantações, a sombra tinha um aspecto limpo. Mas o ar estancado dentro do vagão cheirava a couro cru. O trem não voltou a acelerar. Parou em dois povoados iguais, com casas de madeira pintadas de cores vivas. A mulher inclinou a cabeça e começou a cochilar. A menina tirou os sapatos. Depois foi ao sanitário para botar água no ramo de flores mortas.
Quando voltou a mãe esperava-a para comer. Deu-lhe um pedaço de queijo, meia broa de milho e um biscoito doce e tirou para si da sacola de plástico uma ração igual. Enquanto comiam, o trem atravessou lentamente uma ponte de ferro e passou ao largo de um povoado igual aos anteriores, só que neste havia uma multidão na praça. Uma banda de música tocava uma peça alegre sob um sol esmagador. Do outro lado do povoado, em uma planície entrecortada por trechos áridos, terminavam as plantações.
A mulher parou de comer.
— Calce os sapatos — disse.
A menina olhou para fora. Não viu nada além da planície deserta por onde o trem começava a correr de novo, mas guardou na sacola o último pedaço de biscoito e calçou rapidamente os sapatos. A mulher deu-lhe um pente.
— Penteie-se — disse.
O trem começou a apitar enquanto a menina se penteava. A mulher enxugou o suor do pescoço e limpou a gordura do rosto com os dedos. Quando a menina acabou de se pentear o trem passou diante das primeiras casas de um povoado maior, porém mais triste que os anteriores.
— Se você está com vontade de fazer alguma coisa, faça agora — disse a mulher. — Depois, mesmo que esteja morrendo de sede, não tome água em lugar nenhum. Principalmente, não vá chorar.
A menina concordou com a cabeça. Pela janela entrava um vento ardente e seco, misturado com o apito da locomotiva e o estrépito dos velhos vagões. A mulher enrolou a sacola com o resto dos alimentos e guardou-a na bolsa. Por um instante, a imagem total do povoado, na luminosa terça-feira de agosto, resplandeceu na janela. A menina embrulhou as flores nos jornais empapados, afastou-se um pouco mais da janela e olhou fixamente para a mãe. Ela devolveu-lhe uma expressão tranquila. O trem parou de apitar e diminuiu a marcha. Um momento depois parou.
Não havia ninguém na estação. Do outro lado da rua, na calçada sombreada pelas amendoeiras, apenas o salão de bilhar estava aberto. O povoado flutuava no calor. A mulher e a menina desceram do trem, atravessaram a estação abandonada cujos ladrilhos começavam a rachar pela pressão da erva e cruzaram a rua até a calçada de sombra.
Eram quase duas. A essa hora, abatido pela modorra, o povo fazia a sesta. Os armazéns, as repartições públicas, a escola municipal fechavam às onze e não voltavam a abrir até um pouco antes das quatro, quando o trem passava de volta. Só permaneciam abertos o hotel em frente à estação, sua cantina e seu salão de bilhar e o escritório do telégrafo a um canto da praça. As casas, em sua maioria construídas no mesmo estilo da companhia bananeira, tinham as portas fechadas por dentro e as persianas baixadas. Em algumas fazia tanto calor que seus moradores almoçavam no pátio. Outros recostavam uma cadeira à sombra das amendoeiras e faziam a sesta sentados em plena rua.
Procurando sempre a proteção das amendoeiras, a mulher e a menina entraram no povoado sem perturbar a sesta. Foram diretamente para a casa paroquial. A mulher raspou com a unha a tela metálica da porta, esperou um pouco e voltou a chamar. No interior zumbia um ventilador elétrico. Não se ouviram passos. Ouviu-se apenas o estalido de uma porta e em seguida uma voz cautelosa bem perto da tela metálica: “Quem é?” A mulher procurou ver através da tela.
— Preciso falar com o padre.
— Ele agora está dormindo.
— É urgente — insistiu a mulher.
Sua voz tinha uma tenacidade repousada.