Livro ‘Essências’ por Juhani Pallasmaa

Livro 'Essências' por Juhani Pallasmaa
Este livro reúne quatro ensaios sobre a ideia de “essência” em arquitetura, tema que Juhani Pallasmaa vem desenvolvendo ao longo de sua extensa carreira como arquiteto e filósofo. Os textos cobrem a última década da obra teórica do crítico finlandês: desde o primeiro ensaio aqui apresentado, “Espaço, lugar, memória e imaginação” (2007), ao último, “A arquitetura como experiência” (2017). Eles têm uma abordagem bio histórica e existencial quanto à arte da arquitetura. Trata-se de uma superação da visão puramente ocular que Pallasmaa sintetiza com as seguintes palavras: “Penso que as experiências tocantes da arquitetura surgem de memórias e significados bio culturais secretos e pré-conscientes...
Editora: Editora Gustavo Gili; 1ª edição (10 maio 2018)  Capa comum: 123 páginas  ISBN-10: 8584521267  ISBN-13: 978-8584521265  Dimensões: 17.8 x 12.2 x 0.8 cm

Leia trecho do livro

PREFÁCIO

JUHANI PALLASMAA

Ao longo de quase meio século lecionando arquitetura, já proferi inúmeras palestras ao redor do mundo, cada uma delas com cerca de uma hora de duração. De dez a doze páginas de texto escrito também se tornaram o comprimento médio de meus ensaios, mesmo quando não foram escritos para palestras. Com esse número de páginas, conseguimos desenvolver um tema com argumentos suficientes e incluir desvios inesperados na linha de raciocínio principal a fim de fazer o texto ser lido como uma exploração ainda inacabada, em vez de se tornar um sermão. Como quase sempre ilustro meus colóquios com inúmeras imagens emparelhadas, que constituem sua própria narrativa dialética, minhas palestras têm, na verdade, inicialmente se constituído em duas narrativas estabelecidas com um contraponto deliberado — um verbal, o outro, visual.

Mais da metade de minhas palestras ou ensaios são respostas a tópicos que me foram solicitados junto com o pedido; o restante dos tópicos surgiu de meus interesses pessoais relacionados àqueles temas. Vistos em retrospectiva, os quase quatrocentos ensaios que já publiquei podem sugerir um projeto de pesquisa préconcebido, em virtude de uma direção ou progressão aparente, mas devo dizer — com toda a sinceridade — que o acaso e a sorte das felizes descobertas têm desempenhado um papel mais significativo do que qualquer plano geral ou direção escolhida conscientemente. Depois que comecei minha expedição verbal e filosófica no fenômeno da arquitetura e de suas essências, eu simplesmente continuei minha jornada, fiz os desvios e percorri os caminhos laterais sugeridos por aquilo que vivenciei, vi, ouvi ou li. Muitas vezes sou apresentado como um teórico, algo que sempre me deixa desconfortável. Não estou tentando construir uma teoria da arquitetura. Eu apenas sigo minha jornada através da ampla paisagem da arquitetura como uma experiência histórica, cultural, estética, sensorial e existencial e somente relato minhas percepções, observações e intuições.

Quando, em 1974, voltei da Africa ao meu país, após passar dois anos lecionando arquitetura em Adis Abeba, Etiópia, comecei a escrever sobre temas antropológicos, o condicionamento cultural da visão e o papel da inconsciência nas artes e no pensamento criativo. Após esses assuntos, passei para a hegemonia da visão na cultura ocidental, nossos sensos negligenciados e a significância da corporificação e da experiência existencial. Só depois me dei conta das obsessões modernas com a forma pura, a percepção focada e a racionalidade e passei a me interessar pela percepção periférica, a realidade do tempo na arquitetura, os benefícios da imprecisão e incerteza no pensamento criativo e atmosferas, “quase coisas” e os processos de transformação, em vez das formas fechadas. Acredito que, sem qualquer intenção deliberada, venho trabalhando rumo ao um entendimento bio-histórico e existencial da arte da arquitetura.

Penso que as experiências tocantes da arquitetura surgem de memórias e significados bioculturais secretos e préconscientes, bem como de encontros existenciais e ressonâncias, em vez de uma estética puramente visual. Essas características poderiam ser chamadas de “essências arquitetônicas”.

ESPAÇO, LUGAR, MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO
A DIMENSÃO TEMPORAL DO ESPAÇO EXISTENCIAL
2007

Prólogo: arquitetura e filosofia

Arquitetura geralmente é vista em termos futuristas; acredita-se que prédios inovadores sondem e projetem uma realidade imprevista, e a qualidade da arquitetura está diretamente associada a seu nível de inovação e singularidade. A modernidade, em geral, tem sido dominada por esse preconceito futurista. Ainda assim, o gosto pela novidade provavelmente jamais foi tão obsessivo como o de nosso culto atual por um imaginário espetacular da arquitetura. Em nosso mundo globalizado, a novidade não é apenas um valor estético e artístico — é uma necessidade estratégica da cultura do consumismo e, consequentemente, um ingrediente inseparável de nossa surreal cultura materialista.

Contudo, as construções humanas também têm a tarefa de preservar o passado e nos permitir experimentar e compreender o continuum da cultura e da tradição. Não existimos apenas na realidade espacial e material, também habitamos em realidades culturais, mentais e temporais. Nossa realidade existencial e vivida é uma condição espessa, em camadas e em constante oscilação. Arquitetura é essencialmente uma forma artística de reconciliação e mediação, e, além de nos inserir no espaço e lugar, as paisagens e edificações articulam nossas experiências de duração do tempo entre as polaridades do passado e do futuro. Na verdade, ao longo do corpus inteiro da literatura e das artes, as paisagens e os prédios constituem a mais importante externalização da memória humana. Entendemos e lembramos quem somos por meio de nossas construções tanto materiais como mentais. Também julgamos as culturas diferentes e do passado por meio de evidências fornecidas pelas estruturas arquitetônicas que elas produziram. As edificações, portanto, projetam as narrativas épicas da cultura e da tradição.

Além de seus propósitos práticos, as estruturas arquitetônicas têm uma tarefa existencial e mental significativa: elas domesticam o espaço para a ocupação humana ao transformarem espaços anônimos, uniformes e indefinidos, em lugares distintos e com significância humana. Igualmente importante é o fato de que elas tornam tolerável o tempo infinito ao atribuir uma medida humana à sua duração. Como afirma o filósofo Karsten Harries:

A arquitetura ajuda a substituir uma realidade insignificante por outra, transformada de modo teatral, ou melhor, arquitetônico, que nos chama para seu interior e, à medida que nos rendemos a ela, nos confere uma ilusão de significado […] não conseguimos viver com o caos. O caos deve ser transformado em cosmos.¹

Harries vai além, resumindo: “A arquitetura não trata somente de domesticar o espaço. Ela também é uma defesa profunda contra o terror do tempo.”²

Conjuntamente, os ambientes e prédios não apenas servem a propósitos práticos e utilitários, eles também estruturam nosso entendimento do mundo. “[A casa] é um instrumento com o qual se confronta o cosmos”, como diz o filósofo Gaston Bachelard.³ A noção abstrata e indefinível de cosmos está sempre presente e representada em nossa paisagem imediata. Toda paisagem e toda edificação é um mundo condensado e uma representação microcósmica de nosso lugar dentro dele.

A arquitetura e a memória

As imagens da arquitetura evidentemente eram usadas como recursos mnemônicos pelos oradores da Antiguidade. As edificações atuais, bem como as imagens meramente lembradas e as metáforas, servem como importantes mecanismos da memória: em primeiro lugar, elas materializam e preservam a passagem do tempo e a tornam visível; em segundo, elas concretizam a lembrança ao conter e projetar as memórias; e, em terceiro, elas nos estimulam e inspiram tanto a recordar como a imaginar. Memória e fantasia, recordação e imaginação, são relacionadas entre si, e as relações sempre têm conteúdo situacional e específico. Aquele que não consegue se lembrar, tem muita dificuldade para imaginar, pois a memória é o solo da imaginação. A memória também é o terreno da identidade pessoal: somos o que lembramos.

Edificações são depósitos e museus do tempo e do silêncio. À medida que entramos em um monastério românico, ainda conseguimos vivenciar o silêncio benevolente do universo. As estruturas arquitetônicas têm a capacidade de transformar, acelerar, desacelerar e parar o tempo. Seguindo o pedido de Kierkegaard — “Crie silêncio!” —, elas também podem criar e proteger o silêncio. Em resposta a Max Picard, o filósofo dos silêncios lamenta: “Nada mudou a natureza do homem tanto quanto a perda do silêncio” e “o silêncio não existe mais como um mundo, mas somente em fragmentos, os resquícios de um mundo”. A arquitetura tem de preservar a memória do mundo do silêncio e proteger os fragmentos existentes desse estado ontológico fundamental.

Certos tipos de edificação, como memoriais, túmulos e museus, são concebidos e construídos deliberadamente para o propósito de preservar e evocar memórias e emoções específicas. Os prédios conseguem manter sensações de pesar ou êxtase, melancolia ou felicidade, bem como de medo ou esperança. Todos os prédios mantêm nossas percepções de duração e profundidade temporal e registram e sugerem narrativas culturais e humanas. Não temos como conceber ou lembrar o tempo como uma mera dimensão física; podemos apenas compreender o tempo por meio de suas realizações, mediante os vestígios, lugares e eventos da ocorrência temporal. O escritor Joseph Brodsky, refletindo sobre as imagens compostas das cidades na memória humana, considera essas cidades sempre vazias: “[A cidade da memória] é vazia porque, para a imaginação, é mais fácil invocar a arquitetura do que os seres humanos. Seria essa a razão inerente pela qual nós, os arquitetos, tendemos a pensar na arquitetura mais em termos de sua existência material do que da vida e das situações humanas que acontecem nos lugares que projetamos?

Estruturas arquitetônicas facilitam a memória. Nossa compreensão da profundidade do tempo seria decididamente mais pobre, por exemplo, sem a imagem das grandes pirâmides egípcias em nossas mentes. A mera imagem de uma pirâmide marca e concretiza o tempo. Também lembramos nossa própria infância em grande parte por meio das casas e dos locais nos quais vivemos. Temos partes projetadas e ocultas de nossas vidas em paisagens e casas em que habitamos, exatamente como os oradores antigos inseriam os temas de seus discursos no contexto de edificações imaginadas. A recordação de lugares e recintos gera a lembrança de eventos e pessoas. “Eu era uma criança daquela casa, impregnada com a memória de seus cheiros, impregnada com a frieza de seus corredores, impregnada com as vozes que lhe haviam dado vida. Havia até mesmo a canção das rãs nas poças d’água; aqui elas se uniram a mim”, recorda Antoine de Saint-Exupéry, o lendário piloto e escritor, após seu avião fazer uma aterrissagem de emergência no deserto do Norte da África.

O poder mental dos fragmentos

Em seu romance Os cadernos de Malte Laurids Brigge, Rainer Maria Rilke nos oferece um registro também comovente de uma memória distante da casa de sua identidade pessoal a partir de fragmentos recordados da casa do avô que se encontrava na memória do protagonista:

No estado que a resgato em minhas memórias infantis, não é um prédio completo: está toda quebrada dentro de mim; aqui há um cômodo, ali há outro, e lá existe um trecho de corredor que não conecta esses dois recintos, mas que está preservado, como um fragmento, por si só. Dessa maneira, ela está toda dispersa dentro de mim […] tudo que ainda está em mim e que jamais deixará de estar ali dentro. É como se a fotografia dessa casa houvesse caído dentro de mim de uma altura infinita e se estilhaçado contra meu próprio chão.

A imagem relembrada surge gradualmente, parte por parte, de fragmentos da memória, como um quadro cubista emerge de motivos visuais desconexos.

Já escrevi sobre minhas próprias memórias da humilde casa de campo de meu avô e ressaltei que a casa da memória de minha primeira infância é uma colagem de fragmentos, odores, condições de luz, sensações específicas de fechamento e intimidade, mas que raramente são recordações visuais precisas e completas. Meus olhos já esqueceram o que viram outrora, mas meu corpo ainda se lembra.

As edificações e seus vestígios sugerem histórias de destino humano, tanto reais como imaginárias. As ruínas nos estimulam a pensar nas vidas que já desapareceram e a imaginar o destino de seus ocupantes falecidos. As ruínas e os contextos erodidos têm um poder especial de evocar e emocionar: eles nos forçam a recordar e imaginar. A incompletude e a fragmentação possuem um poder evocativo especial. Em ilustrações medievais e pinturas renascentistas, os espaços arquitetônicos frequentemente são representados como uma mera quina de parede ou abertura de janela, mas o fragmento isolado basta para fazer surgir a experiência de um ambiente construído completo. Esse é o poder evocador da arte da colagem, mas arquitetos como John Soane e Alvar Aalto também tiraram partido desse poder emocional do fragmento da arquitetura. A descrição de Rilke das imagens de uma vida em uma casa abandonada e demolida é evocada pelos vestígios e manchas que ficaram na parede externa e lateral da casa vizinha. Sua observação é um registro surpreendente de como a memória humana trabalha:

Mas o mais inesquecível de tudo eram as próprias paredes. A vida teimosa desses recintos não havia permitido ser totalmente destruída. Ainda estava ali; se agarrava aos pregos que restavam; se apoiava nos palmos de piso remanescentes, estava incrustrada nos cantos onde ainda havia um pouco do espaço interior. Era possível percebê-la nas cores da pintura que, ano após ano, haviam se alterado lentamente: o azul havia se transformado em verde musgo, o verde, em cinza, e o amarelo em um branco mofado e encardido.


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