Esta seleção de escritos de George Orwell, extraídos de seus romances, ensaios, cartas e reportagens, reúne de forma única os pensamentos do autor de 1984 sobre o tema da verdade. Na semana da posse de Donald Trump, quando sua assessora justificou as falsas estimativas do presidente sobre o número de presentes no evento utilizando a expressão "fatos alternativos", livros de George Orwell como 1984 e A revolução dos bichos foram catapultados ao topo da lista de mais vendidos nos Estados Unidos. Numa realidade dominada pelas fake news, as reflexões de Orwell sobre a verdade se tornam cada vez mais urgentes...
Tradução: Claudio Marcondes Número de páginas: 161 páginas Editora: Companhia das Letras (11 de junho de 2020) ISBN: 9788554517687 Selo: Companhia das Letras
Leia trecho do livro
Introdução
Alan Johnson
Embora George Orwell tenha morrido quatro meses antes de eu nascer, sempre achei seus textos atuais, influindo em minhas posições políticas mais que os de qualquer outro escritor ou até mesmo qualquer outro político. Sua intenção explícita era “mover o mundo em certa direção, modificar a ideia que as pessoas têm sobre o tipo de sociedade que deveriam almejar”. No que me diz respeito, ele certamente foi bem-sucedido. E desconfio que poucos autores moldaram as concepções de seus leitores na mesma medida em que Orwell o fez.
George Orwell entrou na minha vida em 1964, quando eu estava no quarto ano do ensino fundamental, na Sloane Granar School. O professor de inglês, o sr. Carlen, decidiu que todos nós, da classe 4Y, leríamos juntos A revolução dos bichos. Ainda que eu fosse um bom leitor, devorando tudo o que caía em minhas mãos, nunca tinha ouvido falar de Orwell. Então, nós, meninos domados pela autoridade natural do sr. Carlen, nos revezamos para ler em voz alta o único exemplar, que passava de uma carteira de madeira a outra. A revolução dos bichos exerceu sobre mim um fascínio do qual nunca me livrei. Ainda que fosse uma leitura cativante sobre animais que assumem o controle de uma granja, duvido que teríamos reparado no subtexto sem as explicações do sr. Carlen. Com isso, ele não só revelou a engenhosidade do livro, como proporcionou aos meninos da 4Y uma perspectiva do mundo adulto em que estávamos crescendo: um mundo no qual nada menos que um terço da população vivia sob o comunismo. Outro jovem professor da Sloane, o sr. Paliai, havia escapado da Hungria quando os tanques russos entraram no país. Ele nos ensinava história e economia, ocasionalmente divagando sobre a perversidade do regime de partido único. Dois anos antes de a minha classe ler A revolução dos bichos, a Crise dos Mísseis em Cuba havia ameaçado a nossa sobrevivência, com os Estados Unidos e a União Soviética considerando a possibilidade de uma destruição nuclear mútua. Publicada quase duas décadas antes de sermos apresentados a ela pelo sr. Carlin, a alegoria de A revolução dos bichos continuava relevante. A obra de Orwell trazia clareza e ajudava a entender os tempos sombrios e perigosos em que vivíamos.
Quanto mais lia daquele autor, mais eu me impressionava com a honestidade brutal que ele se impunha ao escrever. Sem lançar mão da virtude espúria da coerência, como faz a maioria de nós, as concepções que sustentou na juventude eram bem diversas daquelas que adotou ao chegar à maturidade. Ele era um pensador político que jamais teve medo de adaptar suas ideias às novas circunstâncias, em vez de tentar submeter tais desenvolvimentos à rigidez de seu pensamento. Autoproclamado anarquista conservador quando jovem, mais tarde se associou ao Partido Trabalhista Independente, que estava à esquerda do Partido Trabalhista, apenas para, logo em seguida, repudiar todas as razões que o haviam levado a tomar essa decisão. Quando foi lutar na Espanha, não se alistou na Brigada Internacional, à qual se juntaram quase todos os outros participantes britânicos, mas a um obscuro partido marxista/anarquista, o Poum, na Catalunha. Conhecemos as maquinações políticas pelas quais passou porque ele escreveu sobre elas —corajosamente expondo as suas próprias dúvidas e inconsistências. Em O caminho para Wigan Pier, ele dedica toda a segunda parte do livro para se opor ao socialismo, que defende na primeira parte. Essa postura de advogado do diabo trazia o conhecido ataque a “toda aquela tribo horrorosa de mulheres que se acham tão superiores, e os barbudos de sandálias que tomam suco de frutas e acorrem em bandos ao cheiro do ‘progresso’ como moscas-varejeiras em cima de um gato morto”. Provavelmente, no campo da esquerda, Orwell não era o único escritor que convivia com a atração pelo socialismo e a repulsa aos socialistas, mas foi o único a pôr no papel essa dicotomia. Entendo quão frustrante isso pode ter sido para o leitor contemporâneo que acompanhava em tempo real o processo mental de Orwell. Como observou Bernard Crick, seu grande biógrafo: “Às vezes ele mais parecia aqueles torcedores de futebol fanáticos e barulhentos que se destacam ao lançar críticas, sarcasmos e abusos contra seu próprio e resignado time”. Para mim, contudo, segui-lo de longe era estimulante.
Li O capital, de Marx, ainda jovem e, acreditando ter entendido a teoria da mais-valia, era atraído pela noção de um Estado dos trabalhadores. Muitos dos meus companheiros no movimento sindicalista eram enfáticos sobre a conveniência de uma ditadura do proletariado. A opinião pública era descartada como “falsa consciência”, e o Parlamento eleito representava a “democracia burguesa”. A ideia de compromisso era ridicularizada, e a de moderação, desdenhada. Foi graças a Orwell que descobri o socialismo visceralmente igualitário, patriótico e não dogmático com o qual tenho afinidade. O objetivo dele não era converter os incrédulos, mas defender o socialismo democrático contra os ataques da esquerda e reconquistar do comunismo os “companheiros de viagem”. Como registra no ensaio “Why I Write” (Por que escrevo), ele adotou uma posição firme apenas quando “a Guerra Civil Espanhola e outros acontecimentos em 1936-7 marcaram um ponto decisivo, a partir do qual soube onde me colocar. Toda frase séria que escrevi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o entendia”.
O que me atraía como um jovem da classe trabalhadora era a confiança de Orwell na decência inata da classe trabalhadora. Teria sido dificil confundir o próprio Orwell com um trabalhador de mãos calejadas. Educado em Eton (graças a uma bolsa de quatro anos que recebeu ainda adolescente), ex-funcionário subalterno do Império Britânico (ele se alistou no Serviço Colonial como oficial de polícia na Birmânia, em vez de ir cursar a universidade) e com o afetado sotaque que o distinguia como um “cavalheiro”, e não um “companheiro”, ele sem dúvida não se parecia com ninguém que houvesse conhecido nos cortiços de North Kensington, mas ainda assim eu sentia que estava genuinamente do nosso lado.
A publicação dos seus romances era entremeada pelo que chamava de “documentários” — obras que registravam suas tentativas de entender como era a vida das classes trabalhadoras (O caminho para Wigan Pier) e das classes mais baixas (Na pior em Paris e Londres). Curiosamente, embora o sotaque tenha prejudicado suas tentativas de cair nas boas graças dos mineiros de carvão em Wigan, não o atrapalhou ao dar o passo extraordinário de conviver com os destituídos, submetendo-se à vida dos então chamados vagabundos. Ao que parece, havia muitos “almofadinhas” que tinham perdido tudo e acabado na rua da amargura. Essas tentativas de explorar o submundo dos pobres foram, com razão, tidas por muitos como condescendentes e inautênticas, uma vez que Orwell podia retomar sua vida no momento em que quisesse. Ainda que talvez insensato sob certos aspectos, tal artificio também podia dar resultados, sobretudo quando ele descia literalmente ao submundo. Um bom exemplo é a famosa passagem de O caminho para Wigan Pier na qual Orwell entra numa mina de carvão e se arrasta pelas galerias claustrofóbicas, percorrendo muito recurvado uma distância de quase um quilômetro e meio. Ao chegar exausto à frente da lavra de apenas 66 centímetros, ele se dá conta de que seu turno de trabalho nem sequer tinha começado. Esse longo e perigoso percurso não remunerado pelas entranhas da terra era apenas o prelúdio de uma jornada de oito horas arrancando pedaços de carvão do minúsculo veio num ambiente sem ar, escuro como breu e sufocante, que Orwell descreveu vividamente para os leitores que consumiam o carvão sem pensar por um instante em como era produzido. Sem dúvida, esse trecho me ensinou sobre as dificuldades e os perigos da mineração do carvão, tal como deve ter feito com milhões de outros desde a publicação da obra, em 1937.
O brilhantismo de Orwell ia além de seus livros. De muitas maneiras, ele se revela mais plenamente nos ensaios e nos artigos jornalísticos. É ali que fala de seu “prazer em objetos sólidos e fragmentos de informação inútil”. Mais esclarecedor (em “Why I Write”), Orwell nos conta que “não se consegue escrever nada legível a menos que se lute constantemente para anular a própria personalidade”. Nessa frase, sem nenhuma explicação adicional, Eric Blair indica o motivo de ter escolhido publicar sob pseudônimo. A meu ver, contudo, Orwell fracassa nesse objetivo, sobretudo nos ensaios. E como se tivessem sido escritos por Eric Blair, ao passo que George Orwell se concentra nos livros. Com exceção da segunda parte de O caminho para Wigan Pier, é nos livros que se encontram plenamente delineadas as suas concepções políticas. Mas o caminho que o levou a elas está nos ensaios. E devemos agradecer ao fato de a tentativa de apagamento ter falhado, pois é justamente a personalidade de Eric Blair que descobre uma poesia instigante nas coisas corriqueiras. Em The Lion and the Unicorn [O leão e o unicórnio], ele manifesta o seu amor pela Inglaterra, onde “as moedas [são] mais pesadas, a relva, mais verde, os anúncios, mais chamativos”, ao evocar a imagem de “velhas solteironas pedalando a caminho da comunhão em meio à névoa das manhãs de outono”. E descreve uma cultura “associada a desjejuns substanciais e domingos melancólicos, cidades esfumaçadas e estradas sinuosas, campos verdejantes e caixas de correio vermelha”. Os ensaios comprovam a sua ternura essencial, parte de sua personalidade tanto quanto o distanciamento e a contrariedade. E ainda que ele esteja convencido de que conceitos como justiça, liberdade e verdade objetiva podem ser ilusórios, são ilusões poderosas nas quais as pessoas ainda acreditam. Na Inglaterra de Orwell (nunca Grã-Bretanha), “a espada continua na bainha” e o juiz que decide a pena capital, “esse velho maligno de toga escarlate e peruca de crina, a quem nada menos além da dinamite vai ensinar em que século está vivendo”, é incorruptível, parte da “sutil rede de compromissos” que fazem da Inglaterra um país pelo qual vale a pena lutar.
A eclosão da Segunda Guerra Mundial marcou a cristalização das concepções de Orwell. Ele era um patriota que entendeu as ameaças do fascismo e do comunismo (o pacto entre Hitler e Stálin foi um ponto de inflexão crucial), e isso inspirou os seus dois romances mais conhecidos. A revolução dos bichos veio antes e é tido por alguns como um alerta contra os males da revolução. Mas Orwell acreditava que ela era necessária. Mais do que um evento, ele a considerava um processo e acreditava que poderia ser alcançada por meio das urnas. A violência apenas seria perpetrada por aqueles reacionários que se opunham à vontade popular, determinada por via democrática. A revolução dos bichos não vituperava contra a revolução, mas contra uma revolução traída. O livro o tornou famoso em todo o mundo. Curiosamente, em “Why I Write”, de 1946, ele afirma que “há sete anos não escrevo um romance, mas tenho a esperança de começar outro logo mais. Está destinado a ser um fracasso”.
Esse outro romance foi 1984, a derradeira obra de Orwell, publicada em 1949, sete meses antes de sua morte. Incluído em todas as listas dos melhores romances em língua inglesa, da revista Time à BBC, 1984 vendeu e continua a vender milhões de exemplares em todo o mundo. Orwell deixou claro que se tratava de um alerta contra o totalitarismo de direita e de esquerda, e não de uma profecia. No romance, ele imagina as consequências de uma filosofia política que coloca o poder acima da lei e sacrifica a liberdade individual pela interpretação de bem coletivo imposta pelo Partido. Na época em que o escreveu, embora Orwell soubesse dos esforços de Hitler para promover a pureza racial, ainda estava por ser revelada toda a amplitude dos crimes contra a humanidade cometidos por Stálin — e O livro vermelho, de Mao Tsé-tung, nem sequer havia sido escrito. O romance de Orwell estava fadado a se manter relevante entre o ano de sua publicação e o do seu título. Surpreendente é o quanto continua a ser extraordinariamente relevante mesmo no século ru. A limpidez e a precisão da prosa preservaram o frescor do livro, e os seus temas — a importância da verdade objetiva e da distinção entre patriotismo e nacionalismo — continuam muitíssimo pertinentes na nossa época. Em suma, a trajetória literária, política e filosófica de Orwell culminou numa derradeira obra magistral, que acabou sendo incorporada às nossas vidas.