Anastácia carrega na pele as marcas deixadas por um casamento odioso. Em sua última noite como uma mulher livre, ela perdeu o controle do seu futuro e acabou presa no famoso hospício para alienados do Rio de Janeiro. Mas agora, três anos após sua internação, Anastácia precisará enfrentar o passado e descobrir como recomeçar. Quem ela escolherá ser longe do peso do título de Condessa De Vienne? Benício de Sá é conhecido como o Bastardo do Café. Lutando diariamente contra a opressão do pai – um dos mais poderosos cafeicultores do Brasil – ele encontrou na construção civil a oportunidade perfeita de mudar seu futuro e deixar uma marca no mundo...
Capa comum: 400 páginas Editora: Essência; Edição: 1 (30 de agosto de 2019) Idioma: Português ISBN-10: 8542216822 ISBN-13: 978-8542216820 Dimensões do produto: 16 x 2,5 x 23 cm Peso de envio: 517 g
Leia trecho do livro
Fecho os olhos e deixo o peso da realidade cair sobre mim. O sol da manhã aquece a minha pele, o canto dos pássaros alegra meus ouvidos e, mesmo sem vê-las, sinto as ondas do mar trazendo uma enxurrada de possibilidades.
Respiro fundo e dou alguns passos errantes — ainda com medo de abrir os olhos e descobrir que tudo não passa de um sonho. Assim que o vento fresco toca minha pele, carregando consigo o aroma salgado da água do mar, sou invadida pela calmaria. Aliviada, permito que minha mente aceite o que meu coração há horas comemora em silêncio.
Livre. Estou livre dele, do peso do seu sobrenome e das sombras do passado que por longos três anos tentaram me roubar o ar.
Sinto-me corajosa ao beliscar o interior do meu pulso esquerdo — um hábito que não me deixa esquecer quem fui — e abrir os olhos. Meu coração vibra ao notar a imensidão do dia azul e os caminhos infindáveis que me esperam atrás da linha do horizonte. Mal consigo acreditar que a praia está a poucos passos de distância, me convidando a desbravá-la.
Passei boa parte dos últimos três anos olhando esse mesmo mar, fitando-o através da janela do meu quarto enquanto ansiava por romper as amarras da prisão à qual fui imposta. Nos dias &ficais, tudo o que mais queria era sentir a força da água tocando minha pele. Então, nesse instante, dou-me conta de que a proximidade com o mar é o que torna a minha liberdade recém-adquirida real.
É assustador perceber as infinitas possibilidades à minha espera, mas assim como a grandiosidade das águas da Praia Vermelha, é inspirador saber que finalmente sou a única a controlar o meu próprio destino. Não tenho mais ninguém para ditar quem devo ser além de mim mesma.
Olho para trás uma última vez, fitando minha cela, e digo adeus ao passado. Em um instante, abro mão dos gritos, do ranger das amarrações de ferro, das grades nas janelas e da fachada tão bela e imponente que esconde propositalmente toda a dor, o medo e o descaso de homens e mulheres trancafiados em sua própria mente.
Digo adeus ao hospício e a todas as memórias ruins que adquiri nos últimos anos. E, ciente de que chegou a hora de recomeçar, volto minha atenção ao mar enquanto tiro a aliança da mão esquerda. Aperto o metal frio pela última vez, lutando para me libertar das memórias de um casamento odioso.
— Que Deus tenha piedade da tua alma, Jardel. — São as únicas palavras que sou capaz de dizer e são também toda a cortesia que ele terá de mim.
Sem pensar duas vezes, arremesso o anel com toda a minha força, observando o ouro reluzir no céu e rapidamente afundar nas águas do mar do Rio de Janeiro.
Não sou posse dele e nunca mais serei a condessa De Vienne.
Agora, sou de mim mesma.
Apenas Anastácia.
1
Paris, França, 1877
— Com sua licença, minha senhora. — Levo um susto quando noto que ela está ao meu lado. A camareira sorri para mim e me estende uma caixa que, muito provavelmente, é três vezes maior do que nós duas. — Meu desejo não era ínterrompê-la, mas o conde pediu que eu lhe entregasse um presente.
Deixo o grafite de lado, limpando minhas mãos em uma toalha úmida, e guardo as partituras em que estive trabalhando ao longo da semana em uma pasta de couro. Tenho dezenas de canções iniciadas, mas apenas duas finalizadas. A verdade é que está cada vez mais dificil transformar minhas emoções em composições — muito provavelmente porque rimar palavras como solidão e dissabor seja uma tarefa desgastante.
— Condessa?
Volto minha atenção para a jovem e pego o pacote de suas mãos. Simulando interesse, caminho pelo quarto abraçada ao presente, forçando o que imagino ser um sorriso curioso. Alcanço a cama de dossel e, com cuidado, deposito o embrulho em cima do cobertor azul. Preparo-me para amar os presentes enviados pelo conde, mas preciso esconder a repulsa quando retiro a tampa da caixa e toco a pele branca e macia como a neve.
Faço uma prece ao imaginar o sofrimento do pobre animal que perdeu a vida para suprir o capricho de alguém. E, depois de alguns instantes sufocantes nos quais tento pensar em como convencer Jardel de que não precisarei do casaco, deixo a pele de lado e retomo minha atuação. Com um sorriso ensaiado, encaro o vestido de gala que deverei usar na noite de amanhã. O corpete e as barras foram decorados com linha de prata. O bordado segue um estilo delicadamente arredondado, que me lembra do movimento das ondas do mar e que faz a peça refletir diante da luz dos lampiões. Ao retirá-lo da caixa e ver as pequenas partículas de diamante que foram presas ao vestido, não preciso fingir surpresa. Sinto que, em outro momento da minha vida, eu o teria amado.
— Impossível não admirar o cuidado do conde. Vossa graça sempre escolhe as peças mais belas — a jovem volta a falar, lembrando-me de que minhas reações são minuncíosamente vigiadas.
Mordo a parte interna das bochechas na intenção de provocar um leve rubor. Preciso parecer chocada ao ver que, no fundo da caixa, pequenas peças de renda me encaram. Elas são do mesmo tom do vestido e ainda menores do que as últimas lingeries que meu marido havia comprado.
— Pateticamente previsível. — Tenho certeza de que o conde sente prazer ao imaginar meu ultraje, mas a verdade é que suas escolhas não me afetam em nada.
— O que disse, senhora?
Sinto o peso de seus olhos enquanto a jovem avalia minha reação, mas neste instante evito encará-la. Tento ao menos lembrar o seu nome, mas desde que casei tantas empregadas me foram designadas — nos primeiros dias sorridentes e alegres por servirem a condessa, e nos últimos dias tão silenciosas e resignadas — que deixei de me importar em conhecê-las. A única coisa com a qual me preocupo é em desempenhar o papel que esperam de mim.
Coloco o vestido em frente ao corpo e imagino a sensação de vesti-lo. A cor prateada pouco surpreende, contudo preciso admitir que o tecido cumpre o objetivo de me agradar. Gosto de como a seda abraça a minha pele e, por alguns momentos ilusórios, afasta minha solidão. O tecido faz com que eu me lembre de mamãe e dos belos enxovais que encomendamos para a minha primeira temporada social. Desde meu casamento, tudo o que tenho para me manter sã é a memória do seu toque gentil ao pentear meus cabelos e ajeitar as minhas vestes.
— Venerável — respondo depois de alguns instantes. A criada me olha confusa e preciso reprimir a risada, sentindo-me um pouco culpada por confundi-la propositalmente. — Eu disse que ao usar um vestido tão belo parecerei venerável. Não concorda?
— Muito mais do que venerável, senhora! Só não entendo o motivo de o conde insistir tanto para que façamos um coque, a senhora ficaria ainda mais bela com as madeixas soltas. Minha antiga patroa, que Deus a tenha, sempre elogiava minhas mãos de fada. Para a duquesa, meus penteados eram os melhores de toda Paris. — Ela segue tagarelando, cercando-me com seus olhos atentos e tocando as mechas bagunçadas do meu cabelo. — Tão preto e brilhoso quanto um ônix. Talvez devêssemos surpreendê-lo, senhora.
— Surpreender quem? — Com mais frequência do que gostaria, tendo a desligar-me das conversas ao meu redor. Então, deixo que a jovem continue a falar e coloco o vestido de festa na cama.
— Ora, senhora! Vamos surpreender o conde e fazê-lo mudar de ídeía a respeito da escolha de penteado para o baile de amanhã. — Ela começa a correr pelo quarto enquanto permaneço encarando as vestes escolhidas por meu marido. Penso no iminente encontro com o imperador e o medo de não ser suficiente ameaça me dominar.
Tudo o que sei é que dom Pedro II, imperador do Brasil, vai participar de um sarau no hotel Le Grand. Um suntuoso jantar e um magnífico salão de dança foram preparados para transformar uma noite de negócios em um momento de prazer. Pouco me foi revelado sobre os assuntos que o conde deseja tratar com o imperador, mas fui avisada — mais de uma vez — que a noite de amanhã será determinante para o futuro de nossa família.
Quase rio ao imaginar que eu e o conde somos uma família. Nós nos casamos há um ano e, desde então, tenho certeza de que somos muitas coisas, mas nenhuma minimamente tão digna quanto o ato sagrado de construir uma família.
— Precisamos correr, minha senhora. Logo o jantar será servido! — Aprovo seu gesto quando a jovem usa as mãos para me empurrar até a lateral do quarto, afastando-me daquele maldito e sedutor vestido.
Entro no trocador e faço uma rápida toalete. Ao lavar o rosto, agradeço pelo fato de a água fria afastar o leve latejar que sinto por trás dos olhos – primeiro sinal de uma iminente dor de cabeça. Passo nos braços um creme feito com leite de rosas, devidamente escolhido pelo conde, e borrifo o perfume de lavanda na região do pescoço. Troco o vestido de ficar em casa por um de gala, substituindo o tecido marrom por um de cor verde-musgo.
Sempre que visto as peças do meu guarda-roupa de condessa, sinto uma vontade inexplicável de usar tecidos coloridos e extravagantes. Fuí privada da liberdade de escolher as minhas próprias roupas desde o dia do meu casamento e, mesmo ciente da tolice que é preocupar-me com algo tão pequeno, gostaria de voltar ao tempo em que era livre para vestir o que desejasse. Caso fosse permitido, escolheria para o jantar de hoje uma peça de algodão na cor rubi, equiparando minha aparência ao meu humor tempestuoso.
— Pretendo fazer o penteado mais lindo que o patrão já viu. Tenho certeza de que vossa graça nunca mais vai desejar vê-la nesses coques horrendos!
A voz animada da empregada me apressa, então saio do trocador na lateral do quarto e a sigo até a penteadeira do outro lado do cômodo. Conheço o quarto bem o suficiente para não precisar olhar por onde ando – até porque passo mais tempo nele do que em qualquer outro lugar de Paris -, por isso ando traçando os pequenos calos que restaram nas pontas dos meus dedos.
Por um tempo, como qualquer esposa de um nobre, imaginei e ansiei por uma vida movimentada, repleta de passeios, jantares e bailes. Mas, quando descobri o preço alto requerido por cada momento fora de casa, decidi refugiar-me em meus aposentos. Ao menos neles sinto-me levemente protegida, rodeada pelas paredes azuis que me lembram o mar, pelas partituras espalhadas por toda e qualquer superfície e pelo violoncelo apoiado na parede ao lado da única janela do quarto.
Levanto os olhos por um instante só para encarar o instrumento – meu mais valioso presente de casamento e meu único lembrete da família que deixei em Bordeaux. Sinto falta dos meus país, da nossa casa afastada do centro da cidade, das pequenas vinícolas que papai mantinha por prazer e, principalmente, de acompanhá-lo durante seu trabalho. Passar um dia no porto, escondida sob suas asas protetoras, me fazia sonhar com o dia em que desbravaria a imensidão do mar.
Respiro fundo na tentativa de afastar a solidão. É em dias como hoje, em que a saudade ameaça me dominar, que lamento por não ser mais capaz de perder-me em minha música. Anos atrás eu costumava passar horas praticando, transformando emoções em harmonias e dores em arte. Mas por mais que eu continue tracejando uma centena de acordes aleatórios, há meses mal consigo tocar no violoncelo. E por isso que olhar os calos desaparecendo em minhas mãos também serve como lembrete de tudo a que estou renunciando. Assim como fiz com a minha família, com minhas roupas favoritas e, principalmente, com a minha voz.
Alcanço a poltrona em frente à penteadeira e sento sem lembrar ao certo o motivo de tê-lo feito. Enquanto a camareira penteia, alisa e decora meu cabelo, continuo fitando a pele das minhas mãos, imaginando se um dia voltarei a tocar. A dor de olhar meus antigos calos é, sem dúvida, menor do que a que encontrarei no reflexo à minha frente. Então, fujo do espelho da penteadeira por puro medo de enxergar nele os fantasmas escondidos em meus olhos.
— Malditos olhos! — deixo escapar em tom raivoso.
— Perdão, milady? — A jovem abandona o penteado e, sem titubear, toca a minha testa. — Ora, a senhora não está acalorada. Por um minuto achei que estivesse alucinando. Fui avisada de que a febre pode causar alucinações, mas não recordo como proceder. Eu deveria chamar um médico? Ou seria melhor informar o conde?
Alucinando. Odeio essa palavra. Odeio como me faz parecer fraca. Eu gostaria de estar alucinando desde o dia em que me dei conta de que havia me casado com um mentiroso, mas, infelizmente, mantenho-me cônscia de cada palavra, gesto ou olhar com o qual o conde me controla. A verdade é que eu seria sortuda caso estivesse alucinando e tudo não passasse de um sonho.
— Condessa? — Sinto a preocupação em sua voz, mas não consigo lidar com ela agora. Não quando meu corpo e minha mente estão prestes a explodir.
— Cale-se. — Sinto a aspereza por trás da minha voz. E, com medo de que a jovem surte de vez, toco a sua mão na intenção de tranquilizá-la. — O silêncio ajuda a dor a enfraquecer. Apenas termine o penteado.
Encarando-me assustada, a camareira engole o que provavelmente seria uma enxurrada de perguntas a respeito da minha saúde e volta a trabalhar. Suas mãos tremem ao ajeitar meu cabelo. Ela sem dúvida foi alertada por meu atencioso marido de que, além de alucinações, a condessa também é dona de uma personalidade raivosa.
Louca. Raivosa. Mentirosa. Indigna. Palavras que não ultrapassam as paredes desta casa, mas que ainda assim são constantemente associadas à condessa De Vienne.
Buscando retomar o controle, tateio pelos frascos de perfume espalhados pela penteadeira de madeira — ainda fugindo do espelho e do seu reflexo revelador. Não levo muito tempo para encontrar o pequeno vidro vermelho e, sem pensar duas vezes, engulo o conteúdo em um único gole. Imediatamente sinto o calor queimar minhas entranhas e acalmar meus nervos.
— Bebendo tão cedo, mon amour. Assim mal vai aproveitar o jantar. — É só escutar a voz dele que a recém-calmaria evapora. — Não se sente bem? Estou farto de repetir que uma dose de vinho não amenizará sua condição, minha joía.
Suas palavras saem em um tom caloroso e amoroso. Se não o conhecesse, quase acreditaria que está realmente preocupado com a minha saúde. Mas a verdade é que, sempre que alguém está por perto, Jardel se transforma no companheiro que qualquer mulher gostaria de ter ao seu lado: carinhoso, atencioso e dedicado às minhas necessidades e meus anseios.
— É minha culpa, senhor. Notei que havia algo errado, mas não quis preocupá-lo. — A voz da criada treme e sinto pena da pobre garota. — Mal comecei e já falhei em meu serviço, decepcíoneí vossa confiança.
— Ora, minha jovem, por favor, não chore. — Jardel é doce como mel ao consolar a camareira. Sinto sua presença atrás de mim, mas mantenho os olhos fixos em minhas mãos. — Todos nós cometemos pequenos erros e não restam dúvidas de que na próxima vez a senhorita não falhará em notar os sintomas da doença da condessa. Agora saía, quero alguns instantes a sós com a minha esposa.
— Mas ainda não terminei o penteado da condessa, senhor!
— Não se preocupe, eu mesmo vou fazê-lo. — Suas mãos sobem pelo meu pescoço e percorrem as mechas soltas, penteando-as com dedos delicados. Sinto o corpo tremer em antecipação, lembrando-me de que deveria ter prestado mais atenção, de que errei ao esquecer que Jardel prefere meus cabelos presos.
Seguro a respiração quando ouço a jovem abandonar o quarto. E, em uma tentativa tola de acalmar os nervos, imagino como ela enxerga Jardel. Será que nesse exato instante está espalhando pela casa, em um tom de voz maravilhado, a paciência do conde e sua delicadeza ao cuidar da esposa? E assim que todas as pessoas ao nosso redor o veem: como um marido esplêndido que teve o infortúnio de se casar com uma mulher mentalmente fraca.
— O que acha que está fazendo, Anastácia? — Jardel exclama com raiva no exato instante em que ficamos a sós. Evito seus olhos o máximo que consigo, mas o conde puxa meu cabelo, fazendo-me ceder e jogar a cabeça para trás. Nosso olhar se encontra e tudo o que vejo em seus olhos cristalinos como água é uma preocupação doentia. — A ideia foi sua, mon amour? Diga-me, deseja ver-me triste?
Falar ou calar não importa, ambos os caminhos inflam sua raiva. Mas no dia de hoje, no qual sinto-me farta do seu controle, escolho o silêncio. Jardel encara-me, desejoso por uma resposta e, percebendo que não vai receber uma única palavra, começa a desfazer meu penteado. Meus olhos lacrimejam com os puxões e com o aperto firme de suas mãos, mas nada se compara à dor que sinto ao ser arrastada pelos cabelos até o outro lado do quarto.
— Abra os olhos, Anastácia. — Escuto, mas não o faço. Não até senti-lo roçar o corpo no meu e deixar claro qual será o preço cobrado por minha teimosia. Então cedo e abro os olhos para encarar nosso reflexo no espelho. Odeio o objeto tanto quanto odeio Jardel, porque a imagem que vejo refletida é um lembrete constante do motivo de estar presa a esse casamento.