A história comovente e desconhecida das mulheres coreanas na Segunda Guerra Mundial ganha vida neste romance épico, profundo e sensível sobre duas irmãs e um amor capaz de atravessar gerações. “Sempre olhe para a praia quando voltar à superfície, senão você pode perder o norte”, a mãe disse, virando o rosto de Hana para que ela enxergasse a terra. Na areia, sua irmã estava sentada, protegendo os baldes que continham a pesca do dia. “Procure sua irmã depois de cada mergulho. Nunca se esqueça disso. Se puder vê-la, você estará segura.” Quando Hana nasceu, a Coreia já estava sob ocupação japonesa, e por isso a garota sempre foi considerada uma cidadã de segunda classe, com direitos renegados...
Capa comum: 304 páginas Editora: Paralela; Edição: 1 (9 de junho de 2020) Idioma: Português ISBN-10: 8584391746 ISBN-13: 978-8584391745 Dimensões do produto: 14 x 2 x 21 cm Peso de envio: 331 g
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Para Nico
Está quase amanhecendo, e a semiescuridão projeta sombras estranhas ao longo da trilha. Hana procura se distrair para não imaginar criaturas tentando agarrar seu tornozelo. Ela acompanha a mãe até o mar. Sua camisola tremula ao vento suave. Passos silenciosos caminham em seu encalço e, sem olhar para trás, ela sabe que é o pai que vem atrás, com sua irmãzinha adormecida nos braços. Na praia, algumas mulheres já estão à espera deles. Ela reconhece seus rostos à luz do alvorecer, mas a xamã é uma desconhecida. A mulher sagrada está de vestido hanbok vermelho e azul royal, e assim que eles descem em direção à areia ela começa a dançar.
Os vultos amontoados abrem espaço para os movimentos rodopiantes e se reúnem num pequeno grupo, hipnotizados pelo encanto da xamã. Ela entoa uma saudação ao Rei Dragão do Mar, dando-lhe as boas-vindas à sua ilha, seduzindo-o para que viaje através dos portões de bambu em direção às praias tranquilas de Jeju. O sol brilha no horizonte, um ponto de ouro iridescente, e Hana arregala os olhos diante da novidade do dia que está por vir. Trata-se de uma cerimônia proibida, declarada ilegal pelo governo da Ocupação japonesa, mas sua mãe está decidida a realizar um tradicional ritual gut antes do seu primeiro mergulho como uma haenyeo plenamente habilitada. A xamã está pedindo segurança e uma pesca abundante. Enquanto ela diz as mesmas palavras repetidas vezes, a mãe de Hana cutuca seu ombro e juntas elas se curvam, encostando a testa na areia molhada para reverenciar a chegada iminente do Reí Dragão do Mar. Quando ela se levanta, a voz sonolenta da irmã sussurra ‘Eu também quero mergulhar”, e o anseio em sua voz toca o coração de Hana. “Um dia, em breve, você estará aqui, irmãzinha, e eu vou estar bem ao seu lado para recebê-la”, ela sussurra de volta, confiante do futuro que as espera.
A água salgada do mar escorre por suas têmporas, que ela enxuga com as costas da mão. Agora sou uma haenyeo, Hana pensa, assistindo à xamã girar fitas brancas pela praia. Ela estica o braço para alcançar a mãozinha da irmã. De pé, lado a lado, elas escutam as ondas quebrando na praia. Enquanto o pequeno grupo confirma em silêncio sua aceitação na ordem, só se ouve o barulho do oceano. Quando o sol despontar por completo sobre as ondas, ela vai mergulhar com as haenyeo em águas profundas e assumir seu posto entre as mulheres do mar. Mas antes elas devem voltar para casa em segredo, protegidas dos olhares curiosos.
Hana, venha para casa. A voz da irmã soa alto em seu ouvido, trazendo-a num solavanco de volta ao presente, ao quarto e ao soldado que ainda dorme no chão a seu lado. A cerimônia desvanece aos poucos na escuridão. Num esforço desesperado para não deixá-la escapar, Hana fecha os olhos com força.
Já faz quase dois meses que ela está presa, mas ali o tempo se move dolorosamente devagar. Ela prefere não se lembrar do que sofreu, do que eles a forçaram a fazer, do que a obrigaram a ser. Em casa, ela era outra pessoa, outra coisa.
Parece que séculos se passaram desde aquela época, e Hana se sente mais próxima da cova do que das lembranças de casa. O rosto de sua mãe emergindo para encontrá-la na superfície. A água salgada em seus lábios. Fragmentos de memórias de um lugar mais feliz.
A cerimônia foi forte e poderosa assim como as mulheres do mar, assim como Hana. O soldado deitado ao lado se mexe. Ele não vai derrotá-la, ela promete a si mesma. Ela passa a noite em claro pensando em como escapar.
Hana
ILHA DE JEJU, VERÃO DE 1943
Hana tem dezesseis anos e não conhece nada além de uma existência vivida sob a Ocupação. O Japão anexou a Coreia em 1910, e Hana fala japonês fluente, estuda a história e a cultura japonesas, mas é proibida de falar, ler ou escrever em coreano, sua lingua nativa. Ela é uma cidadã de segunda classe em seu próprio país, com direitos de segunda classe, mas isso não diminui seu orgulho em ser coreana. Hana e sua mãe são haenyeo, mulheres do mar, e trabalham por conta própria. Vivem numa pequena aldeia na costa sul da Ilha de Jeju e mergulham numa enseada que não é visível da estrada principal que leva à cidade. O pai de Hana é pescador. Ele navega o Mar do Sul com os outros homens da aldeia, escapando dos barcos de pesca imperiais que saqueiam as águas costeiras da Coreia em busca de produtos para repatriar ao Japão. Hana e sua mãe só interagem com os soldados japoneses quando vão ao mercado vender a pesca do dia. Aquilo dá uma sensação de liberdade que só pode ser desfrutada por poucas pessoas no outro lado da ilha, ou mesmo no continente, a mais de cem quilómetros ao norte. A Ocupação é um assunto tabu, sobretudo no mercado; somente os corajosos ousam abordá-lo e, ainda assim, apenas aos sussurros e por trás das mãos em concha. Os aldeões estão cansados dos altos impostos, das doações forçadas ao esforço de guerra, da captura de seus homens para lutar na linha de frente e de suas crianças para trabalhar em fábricas no Japão.
Na ilha de Hana, o mergulho é tarefa para as mulheres. O corpo delas se adapta às profundezas geladas do oceano melhor que o dos homens. Elas conseguem prender a respiração por mais tempo, nadar mais fundo e manter a temperatura corporal mais alta, portanto há séculos as mulheres de Jeju têm gozado de uma rara independência. Hana seguiu os passos de sua mãe em direção ao mar ainda criança. Começou a nadar no momento em que pôde sustentar a cabeça por conta própria, mas foi só aos onze anos que a mãe a levou às águas mais profundas e mostrou como extrair um abalone de uma rocha no fundo do mar.
Em seu entusiasmo, Hana perdeu o fôlego antes do esperado e teve que subir correndo para tomar ar. Seus pulmões ardiam. Quando finalmente rompeu a superfície, inalou mais água que oxigênio. Cuspindo e mal conseguindo manter o queixo acima das ondas, ficou desorientada e começou a entrar em pânico. Uma ondulação repentina passou por ela, deixando-a submersa num instante. Com a cabeça mergulhada, engoliu ainda mais água.
Com uma mão só, a mãe de Hana ergueu seu rosto acima da superfície da água. Hana tomou ar entre tossidas aflitas. Seu nariz e seus olhos ardiam. A mão da mãe, segurando firme sua nuca, a tranquilizou até que ela se recuperasse.
“Sempre olhe para a praia quando voltar à superficíe, senão você pode perder o norte”, a mãe disse, virando o rosto de Hana para que ela enxergasse a terra. Na areia, sua irmã estava sentada, protegendo os baldes que continham a pesca do dia. “Procure sua irmã depois de cada mergulho. Nunca se esqueça disso. Se puder vê-la, você estará segura.”
Quando a respiração de Hana voltou ao normal, a mãe a largou e voltou a mergulhar, dando uma lenta cambalhota em direção às profundezas do oceano. Hana observou a irmã por mais alguns momentos, assimilando a imagem serena da garota parada na praia, esperando a família voltar do mar. Totalmente recuperada, nadou até a boia e juntou seu abalone à pesca da mãe, que estava bem guardada numa rede. Então ela deu sua própria cambalhota rumo ao interior murmurante do oceano, em busca de outra criatura marítima para acrescentar à colheita.
Sua irmã era nova demais para mergulhar com elas quando se afastavam tanto da praia. Às vezes, quando Hana emergia, a primeira coisa que fazia era olhar para a costa para avistar a irmã correndo atrás de gaivotas, agitando loucamente gravetos no ar. Ela era como uma borboleta dançando em seu campo de visão.
Hana já tinha sete anos quando a irmã finalmente nasceu. Ela teve medo de ser filha única pelo resto da vida. Por muito tempo sonhou em ter um irmão mais novo — todos os seus amigos tinham dois, três, ou às vezes até quatro irmãos para brincar todos os dias e para dividir o fardo das tarefas domésticas, enquanto ela tinha que lidar com tudo sozinha. Então sua mãe ficou grávida e Hana se encheu de tamanha esperança que abria um sorriso radiante a cada vez que avistava de relance a barriga crescente da mãe.
“Você está bem mais gorda hoje, não está, mãe?”, ela perguntou na manhã do dia do nascimento da irmã.
“Muito, muito gorda e desconfortável”, a mãe respondeu, fazendo cócegas na barriga dura de Hana.
Ela jogou o corpo para trás e riu de alegria. Quando recuperou o fôlego, Hana sentou ao lado da mãe e colocou a mão no ponto mais alto de sua barriga saliente.
“Minha irmã ou meu irmão já deve estar quase pronto, não é, mãe?”
“Quase pronto? Você fala como se eu estivesse cozinhando arroz dentro da minha barriga, sua bobinha.”
“Não arroz, minha nova irmã… ou irmão”, Hana acrescentou rapidamente, sentindo um chutinho tímido sob a mão. “Ouando ela ou ele vai sair?”
“Que filha mais impaciente eu tenho aqui.” A mãe balançou a cabeça, resignada. “O que você prefere, uma irmã ou um irmão?”
Hana sabia que a resposta correta era um irmão, para que seu pai tivesse um filho com quem dividir os conhecimentos de pescaria, mas mentalmente respondeu outra coisa. Espero que você tenha uma filha, para que um dia ela possa nadar comigo no mar.
Sua mãe entrou em trabalho de parto naquela noite, e quando mostraram a Hana sua irmãzínha, ela não conseguiu conter a felicidade. Abriu o sorriso mais largo que seu rosto já conhecera, mas tentou com todas as forças soar desapontada.
“Sinto multo que não seja um menino, mãe, sinto muito mesmo”, Hana disse, balançando a cabeça com uma tristeza fingida.
Então a menina se virou para o pai e puxou a manga da camisa dele. Ele se abaixou, e ela colocou as mãos em concha em volta de sua orelha.
“Pai, preciso te confessar uma coisa. Estou multo triste por você, por ela não ser um menino para aprender suas técnicas de pescaria, mas…” Ela respirou fundo antes de terminar. “Mas estou tão feliz por ter uma irmã para nadar comigo.”
“É mesmo?”, ele perguntou.
“Sim, mas não conte para minha mãe.”
Aos sete anos, Hana não era multo habilidosa na arte de sussurrar, e uma risada afetuosa reverberou entre o grupo de amigos mais próximos dos país. Hana ficou em silêncio. Suas orelhas queimavam. Ela se escondeu atrás do pai e olhou rapidamente para a mãe por baixo do braço dele, para ver se ela também tinha escutado. A mãe encarou a filha mais velha, depois baixou os olhos para a bebê faminta sugando seu peito e sussurrou, alto o suficiente para que Hana ouvisse:
“Você é a írmãzinha mais amada em toda a Ilha de Jeju. Sabia disso? Ninguém nunca vai te amar tanto quanto sua irmã mais velha.”
Quando levantou o olhar para Hana, fez um gesto para que ela se aproximasse. Os adultos presentes no quarto fizeram silêncio enquanto a menina se ajoelhava ao lado da mãe.
“Agora você é a protetora dela, Hana”, a mãe disse em tom sério.
Quando levantou o olhar para Hana, fez um gesto para que ela se aproximasse. Os adultos presentes no quarto fizeram silêncio enquanto a menina se ajoelhava ao lado da mãe.
“Agora você é a protetora dela, Hana”, a mãe disse em tom sério.
Hana olhou fixamente para sua irmãzínha bebê e esticou o braço para fazer carinho no tufo de cabelo preto que brotava de sua cabeça.
“Ela é tão macia”, disse, admirada.
“Você ouviu o que eu disse? Agora você é uma irmã mais velha, e junto com isso vêm algumas responsabilidades. A primeira delas é a de proteção. Eu não vou estar sempre por perto; mergulhar no mar e vender no mercado nos mantém alimentados, e vai ser seu papel cuidar da sua irmã daqui para a frente, quando eu não puder. Posso contar com você?”, a mãe perguntou em tom grave.
Hana recolheu a mão. Ela baixou a cabeça e respondeu com obediência.
“Sim, mãe, vou protegê-la. Eu prometo.”
“Promessas são para sempre, Hana. Não se esqueça.”
“Vou me lembrar, mãe, sempre”, Hana disse, com os olhos colados no rosto da irmãzinha, que cochilava tranquilamente. Um pouco de leite escorreu da lateral da boca aberta da bebê, que a mãe limpou com o polegar.
Com o passar dos anos, Hana começou a mergulhar com a mãe em águas mais profundas e foi se acostumando a ver sua irmã à dístâncía, a menina com quem dividia os cobertores à noite e para quem sussurrava hístorinhas bobas no escuro, até que ela finalmente se rendesse ao sono. A menina que ria de tudo e qualquer coisa, um som que contagiava quem estivesse por perto. Ela se tornou a âncora de Hana, na praia e na vida.