Terceiro romance de Alejandro Zambra publicado no selo Tusquets da Planeta do Brasil, Formas de voltar para casa narra as memórias – ouvidas e vivenciadas – de um homem cuja infância foi vivida durante a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile. Na busca por entender acontecimentos nebulosos de seu passado – e, quem sabe, encontrar ferramentas para finalizar um romance que está escrevendo no presente –, o protagonista de Formas de voltar para casa percorre um melancólico e dolorido caminho de retorno à sua infância no Chile dos anos 1980, oscilando entre tempos marcados por dois grandes terremotos. Depois de Bonsai & A vida privada das árvores...
Capa comum: 160 páginas Editora: Tusquets; Edição: 1 (29 de novembro de 2019) ISBN-10: 8542217470 ISBN-13: 978-8542217476 Dimensões do produto: 22,4 x 14,4 x 0,8 cm
Leia trecho do livro
Agora sei caminhar; não poderei aprender nunca mais.
W. Benjamin
Em vez de gritar, escrevo livros.
R. Gary
Sumário
I. Personagens secundários
II. A literatura dos pais
III. A literatura dos filhos
IV. Estamos bem
I. Personagens secundários
Uma vez me perdi. Tinha seis ou sete anos. Vinha distraído e de repente não vi mais meus pais. Me assustei, mas logo retomei o caminho e cheguei em casa antes deles — continuavam me procurando, desesperados, mas naquela tarde achei que tinham se perdido. Que eu sabia voltar para casa e eles não.
Você tomou outro caminho, dizia minha mãe, depois, com os olhos ainda chorosos.
Foram vocês que tomaram outro caminho, pensava eu, mas não dizia.
Meu pai, na poltrona, olhava tranquilamente. Às vezes acho que sempre esteve largado ali, pensando. Mas talvez não pensasse em nada. Talvez só fechasse os olhos e recebesse o presente com calma ou resignação. Naquela noite, no entanto, falou — isso é bom, me disse, você superou a adversidade. Minha mãe o fitava com receio, mas ele seguia alinhavando um confuso discurso sobre adversidade.
Me recostei na poltrona em frente e fiz que dormia. Escutei-os brigar, no estilo de sempre. Ela dizia cinco frases e ele respondia com uma única palavra. Às vezes dizia, cortante: não. Às vezes dizia, à beira de um grito: mentira. E às vezes, inclusive, como os policiais: negativo.
Naquela noite minha mãe me carregou até a cama e me disse, talvez sabendo que eu fingia dormir, que a escutava com atenção, com curiosidade: seu pai tem razão. Agora sabemos que você não se perderá. Que sabe andar sozinho pelas ruas. Mas você devia se concentrar mais no caminho. Devia caminhar mais rápido.
Obedeci. Desde então caminhei mais rápido. De fato, dois anos mais tarde, na primeira vez que falei com Claudia, ela me perguntou por que eu andava tão rápido. Levava dias me seguindo, me espiando. Tínhamos nos conhecido havia pouco, na noite do terremoto, 3 de março de 1985, mas na ocasião não havíamos conversado.
Claudia tinha doze anos e eu, nove, razão pela qual nossa amizade era impossível. Mas fomos amigos ou algo assim. Conversávamos muito. Às vezes penso que escrevo este livro só para recordar aquelas conversas.
Na noite do terremoto eu tinha medo, mas também me agradava, de alguma forma, o que estava acontecendo.
No jardim da frente de uma das casas os adultos montaram duas barracas para que nós, crianças, dormíssemos ali. No começo foi uma confusão, porque todo mundo queria dormir na de estilo iglu, que era então uma novidade, mas ela foi dada às meninas. Nos fechamos para brigar em silêncio, que era o que fazíamos quando estávamos sozinhos: golpear uns aos outros alegre e furiosamente. Mas o nariz do ruivo sangrou quando tínhamos acabado de começar, e tivemos que procurar outra brincadeira.
Alguém teve a ideia de fazer testamentos e de início nos pareceu uma boa, mas logo descobrimos que isso não tinha sentido, pois, se viesse um terremoto mais forte, o mundo se acabaria e não haveria ninguém a quem deixar nossas coisas. Depois imaginamos que a Terra era como um cachorro se sacudindo e que as pessoas caíam como pulgas no espaço e pensamos tanto nessa imagem que nos deu um acesso de riso e também nos deu sono.
Só que eu não queria dormir. Estava cansado como nunca, mas era um cansaço novo, que fazia os olhos arderem. Decidi que passaria a noite em claro e tentei me infiltrar no iglu para continuar conversando com as meninas, porém a filha do carabineiro me expulsou dizendo que eu queria violá-las. Naquela época eu não sabia bem o que era um violador, mas de todo modo jurei que não queria violá-las, que só queria olhá-las, e ela riu zombeteiramente e respondeu que isso era o que sempre diziam os violadores. Tive que ficar de fora, escutando-as brincar, dizendo que as bonecas eram as únicas sobreviventes — chacoalhavam suas donas e caíam em prantos ao comprovar que estavam mortas, embora uma delas achasse melhor assim, porque a raça humana sempre lhe parecera pestilenta. No fim disputavam entre si o poder e, ainda que a discussão parecesse longa, foi resolvida rapidamente, pois de todas as bonecas só havia uma Barbie original. Esta ganhou.
Encontrei uma cadeira de praia entre os escombros e me aproximei com timidez da fogueira dos adultos. Era estranho ver os vizinhos, talvez pela primeira vez, reunidos. Enfrentavam o medo com uns goles de vinho e longos olhares de cumplicidade. Alguém trouxe uma velha mesa de madeira e a pôs no fogo, sem mais nem menos — se você quiser, eu jogo também o violão, disse meu pai, e todos riram, inclusive eu, que estava um pouco desconcertado, porque não era habitual que meu pai fizesse piadas. Nisso voltou Raúl, o vizinho, com Magali e Claudia. Estas são minha irmã e minha sobrinha, disse. Tinha ido buscá-las depois do terremoto e regressava agora, visivelmente aliviado.