Por que o neoliberalismo não nos levará a uma sociedade mais justa? Depois dos bestsellers Desigualdade e O que os donos do poder não querem que você saiba, em Economia do desejo, Eduardo Moreira revela por que é insustentável economicamente a ideia de que o Estado deve se preocupar mais com a economia do que com o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos. Para isso, ele conceitua o que é a economia do desejo: aquela que trabalha com a falta incessante, que inclusive é responsável pelo alto consumo de supérfluos por determinada parcela da sociedade, enquanto outra parcela ainda está em situação de pobreza ou na linha abaixo da pobreza...
Capa comum: 96 páginas Editora: Civilização Brasileira; Edição: 1 (4 de maio de 2020) ISBN-13: 978-8520014141 Dimensões do produto: 20,8 x 13,4 x 0,4 cm
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Leia trecho do livro
Dedico este livro a Juliana, Francisco, Catarina e Maria Eduarda, onde busco força e serenidade para seguir adiante.
PREFÁCIO
Luiz Gonzaga Belluzzo
Abrigado nas trincheiras domésticas para escapar da mortal artilharia do Coronavírus, recebi um gentil telefonema de Eduardo. Sempre descontraído em seu sotaque carioca que me desperta agradáveis lembranças dos anos de Colégio Santo Inácio, Eduardo sugeriu que eu assumisse o encargo de escrever o prefácio de seu novo livro.
O título Economia do desejo suscitou a esperança de encontrar uma narrativa que escapa aos espartilhos que aprisionam a “razão econômica” nos calabouços de teorias ignorantes da complexidade da ação humana na sociedade dos indivíduos. Foi, de fato, o que encontrei.
O espartilho é a fábula do indivíduo racional e maximizador da utilidade. Nas versões eruditas ou nas traduções vulgares, a hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes.
Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-Feira.
Ainda no alvorecer do século XVIII, A fábula das abelhas, de Bernard de Mandeville, buscou a sociedade ideal trafegando na faixa da moral individualista, racionalista e utilitarista. Vícios privados, virtudes públicas. Mandeville conta a história de uma colmeia próspera e progressista, ambiente em que prevaleciam os vícios egoístas de todos as habitantes, incluído o roubo do produto alheio. Esse comportamento foi interceptado, em certo momento, pela nostalgia da moral cristã, a nostalgia da virtude. As abelhas resolveram retroceder, voltar à prática da virtude. A prosperidade se converteu na decadência.
Voltaire acolheu ironicamente as peregrinações de Leibniz e Mandeville. No Cândido, ou O otimismo, o ilustre iluminista encarregou o professor Pangloss de justificar as múltiplas formas do mal: “Tudo isso era indispensável […]; infortúnios particulares fazem o bem geral.” Isso permitiu que Cândido formulasse uma definição da filosofia de Pangloss: é preciso dizer que está tudo bem quando as coisas andam mal.
Já no primeiro capítulo do livro, Eduardo oferece aos leitores a narrativa de um episódio revelador das insidiosas práticas pseudocientíficas que abarrotam o mundo contemporâneo. Ao ministrar uma aula na Casa do Saber, foi interpelado por um cavalheiro de fino trato a respeito das críticas do palestrante ao neoliberalismo. O gentil cavalheiro manifestou sua discordância de forma cortês. Seu argumento foi ilustrado com o sucesso inequívoco das economias da Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá.
Nos debates corriqueiros com amigos e colegas neoliberais, Eduardo era frequentemente contraditado com a exibição do ranking dos países mais bem-sucedidos. Esse ranking era construído a partir de um índice elaborado pela Heritage Foundation, conhecida e reconhecida por sua filiação aos princípios do liberalismo econômico. Cito Eduardo: “O índice mais utilizado para definir o grau de ‘liberdade econômica’ de um país e embasar as teses neoliberais leva este mesmo nome: Index of Economic Freedom. Um índice elaborado e calculado por uma fundação americana chamada Heritage, que na primeira página de seu site define sua missão como ‘formular e promover políticas públicas conservadoras baseadas nos princípios do livre mercado, Estado mínimo, liberdades individuais, valores tradicionais estadunidenses e fortalecimento da defesa estadunidense’.”
Surpreso com a afirmação peremptória do cavalheiro elegante, Eduardo empenhou-se em examinar de forma mais acurada a construção do índice de liberdade econômica e descobriu que nos bastidores da precisão estatística abrigava-se uma fraude conceitual.
“Percebe-se, ao final da análise, que o índice funciona como uma ‘conta de chegada’, criada para atribuir aos países mais ricos e desenvolvidos o rótulo de ‘livres’ ou ‘majoritariamente livres’ economicamente, e gerar uma relação enviesada e equivocada nas pessoas de relação de causa e efeito, num típico exemplo da falácia cum hoc ergo propter hoc (se ambos acontecem juntos, um causa o outro).”
Ao ler as considerações mencionadas, a respeito da construção do índice, recorri à psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco, autora, entre outras obras, de uma imperdível biografia de Sigmund Freud.
Exímia em percorrer os caminhos perigosos da filosofia e da psicanálise, Roudinesco ausculta, na aurora do século XXI, rumores cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Descobre que a sociabilidade competitiva de nossos tempos entrega razão a Mandeville.
Diz Roudinesco que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, as mais charlatãs, as mais criminosas? Classificar, ranquear, calcular, medir, colocar um preço, homogeneizar: esse é o nada absoluto das investigações contemporâneas, impondo-se sem limites em nome de uma modernidade falsa que solapa todas as formas de inteligência, como a crítica fundamentada na análise da complexidade das coisas e das pessoas.
Roudinesco desvela os desencantos da sexualidade pós moderna. “Nunca a sexualidade foi tão desenfreada, e nunca a ciência avançou tanto na exploração do corpo e do cérebro. No entanto, nunca o sofrimento psicológico foi tão intenso: solidão, uso de drogas que alteram a mente, tédio, fadiga, dieta, obesidade, medicalização de cada segundo da existência. A liberdade do eu, tão necessária, e conquistada à custa de tanta luta durante o século XX, parece ter se transformado em uma demanda por contenção puritana.”
Quanto ao sofrimento social, diz Roudinesco, é cada vez mais difícil de suportar, porque parece estar constantemente em ascensão, num contexto de desemprego juvenil e trágicos fechamentos de fábricas. O sexo não é experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho, uma ginástica, como a higiene para os órgãos, o que só pode levar à confusão afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis? Com que frequência? Quantos parceiros em uma vida, em uma semana, em um único dia, minuto a minuto?” O avanço exasperado da “quantidade” encolhe o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos.
Ainda no primeiro capítulo, Eduardo recorre a Facebook, Google e demais gigantes da Internet para nos proporcionar uma análise excelente a respeito do processo de concorrência no capitalismo de todos os tempos. No capitalismo de ontem, hoje e sempre, a concorrência é o caminho mais curto para o monopólio.
Ele escreve: “Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o ‘livre mercado’ passa longe de existir. E isso é decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo prazo ao monopólio ou ao oligopólio. O segundo vem da ideia de que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da sua falta.”
O processo de concorrência é, ao mesmo tempo, um processo que envolve a alteração do tamanho da firma, a diversificação da estrutura produtiva e a existência de formas financeiras aptas a “descongelar” o capital já empregado e mobilizá-lo na direção de novos empreendimentos. Em outras palavras, o crucial na concorrência generalizada é a maior ou menor capacidade que as diversas unidades de capital apresentam para superar barreiras à sua expansão.
Aqui, peço licença para a reprodução de um trecho do meu livro O capital e suas metamorfoses. Lá eu dizia que a modalidade de organização da empresa capitalista que torna possível a fusão de interesses entre os gestores capital-dinheiro e os administradores do capital produtivo é a sociedade anônima, cujo caráter “coletivista” se sobrepõe aos capitais dispersos e, ao mesmo tempo, reforça sua rivalidade.
Essa forma desenvolvida de existência do capital dá origem ao monopólio, às formas mais escandalosas de controle político e à submissão do Estado aos ditames da finança. O desenvolvimento do capital financeiro depende da constituição dos mercados secundários de negociação dos títulos de dívida e ações que “regulam” a transferência da propriedade entre os capitalistas. Isso supõe o desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais incumbidos da avaliação dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade sobre a riqueza e a renda.
Esse “sistema” garante a reprodução do regime de apropriação privada da riqueza e, ao mesmo tempo, ameaça continuamente de aniquilação os proprietários individuais que não conseguem acompanhar a corrida imposta pelas “normas” técnicas, econômicas, políticas e financeiras que caracterizam o processo de concorrência. Os direitos de propriedade são também direitos à expropriação.
O coração do livro bate mais acelerado quando Eduardo trata das relações entre utilidade, desejo, dinheiro e ódio.
Começo com o dinheiro. Georg Simmel, em seu livro A filosofia do dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, seus sentimentos e desejos são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.
É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e sua subjetividade em o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos.
Ainda no primeiro capítulo, Eduardo recorre a Facebook, Google e demais gigantes da Internet para nos proporcionar uma análise excelente a respeito do processo de concorrência no capitalismo de todos os tempos. No capitalismo de ontem, hoje e sempre, a concorrência é o caminho mais curto para o monopólio.
Ele escreve: “Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o ‘livre mercado’ passa longe de existir. E isso é decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo prazo ao monopólio ou ao oligopólio. O segundo vem da ideia de que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da sua falta.”
O processo de concorrência é, ao mesmo tempo, um processo que envolve a alteração do tamanho da firma, a diversificação da estrutura produtiva e a existência de formas financeiras aptas a “descongelar” o capital já empregado e mobilizá-lo na direção de novos empreendimentos. Em outras palavras, o crucial na concorrência generalizada é a maior ou menor capacidade que as diversas unidades de capital apresentam para superar barreiras à sua expansão.
Aqui, peço licença para a reprodução de um trecho do meu livro O capital e suas metamorfoses. Lá eu dizia que a modalidade de organização da empresa capitalista que torna possível a fusão de interesses entre os gestores capital-dinheiro e os administradores do capital produtivo é a sociedade anônima, cujo caráter “coletivista” se sobrepõe aos capitais dispersos e, ao mesmo tempo, reforça sua rivalidade.
Essa forma desenvolvida de existência do capital dá origem ao monopólio, às formas mais escandalosas de controle político e à submissão do Estado aos ditames da finança. O desenvolvimento do capital financeiro depende da constituição dos mercados secundários de negociação dos títulos de dívida e ações que “regulam” a transferência da propriedade entre os capitalistas. Isso supõe o desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais incumbidos da avaliação dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade sobre a riqueza e a renda.
Esse “sistema” garante a reprodução do regime de apropriação privada da riqueza e, ao mesmo tempo, ameaça continuamente de aniquilação os proprietários individuais que não conseguem acompanhar a corrida imposta pelas “normas” técnicas, econômicas, políticas e financeiras que caracterizam o processo de concorrência. Os direitos de propriedade são também direitos à expropriação.
O coração do livro bate mais acelerado quando Eduardo trata das relações entre utilidade, desejo, dinheiro e ódio.
Começo com o dinheiro. Georg Simmel, em seu livro A filosofia do dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, seus sentimentos e desejos são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.
É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e sua subjetividade em o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos.
Ainda no primeiro capítulo, Eduardo recorre a Facebook, Google e demais gigantes da Internet para nos proporcionar uma análise excelente a respeito do processo de concorrência no capitalismo de todos os tempos. No capitalismo de ontem, hoje e sempre, a concorrência é o caminho mais curto para o monopólio.
Ele escreve: “Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o ‘livre mercado’ passa longe de existir. E isso é decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo prazo ao monopólio ou ao oligopólio. O segundo vem da ideia de que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da sua falta.”
O processo de concorrência é, ao mesmo tempo, um processo que envolve a alteração do tamanho da firma, a diversificação da estrutura produtiva e a existência de formas financeiras aptas a “descongelar” o capital já empregado e mobilizá-lo na direção de novos empreendimentos. Em outras palavras, o crucial na concorrência generalizada é a maior ou menor capacidade que as diversas unidades de capital apresentam para superar barreiras à sua expansão.
Aqui, peço licença para a reprodução de um trecho do meu livro O capital e suas metamorfoses. Lá eu dizia que a modalidade de organização da empresa capitalista que torna possível a fusão de interesses entre os gestores capital-dinheiro e os administradores do capital produtivo é a sociedade anônima, cujo caráter “coletivista” se sobrepõe aos capitais dispersos e, ao mesmo tempo, reforça sua rivalidade.
Essa forma desenvolvida de existência do capital dá origem ao monopólio, às formas mais escandalosas de controle político e à submissão do Estado aos ditames da finança. O desenvolvimento do capital financeiro depende da constituição dos mercados secundários de negociação dos títulos de dívida e ações que “regulam” a transferência da propriedade entre os capitalistas. Isso supõe o desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais incumbidos da avaliação dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade sobre a riqueza e a renda.
Esse “sistema” garante a reprodução do regime de apropriação privada da riqueza e, ao mesmo tempo, ameaça continuamente de aniquilação os proprietários individuais que não conseguem acompanhar a corrida imposta pelas “normas” técnicas, econômicas, políticas e financeiras que caracterizam o processo de concorrência. Os direitos de propriedade são também direitos à expropriação.
O coração do livro bate mais acelerado quando Eduardo trata das relações entre utilidade, desejo, dinheiro e ódio.
Começo com o dinheiro. Georg Simmel, em seu livro A filosofia do dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, seus sentimentos e desejos são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.