A Coleção 2020 foi criada e produzida durante a pandemia de Covid-19. Reúne autores e autoras que se dedicaram a refletir e a provocar o pensamento em livros breves, atuais e contundentes. -- A pandemia da covid-19 trouxe consequências inéditas para a economia global. Ao contrário das crises de 1929 e 2008, o colapso econômico de 2020 não é uma crise originada no setor financeiro, mas consequência do contágio da economia real por uma crise de saúde pública. Em meio a queda histórica do PIB mundial, o debate econômico foi chacoalhado como em poucas ocasiões...
Capa comum: 144 páginas Editora: Todavia; Edição: 1 (15 de junho de 2020) Idioma: Português ISBN-10: 6556920118 ISBN-13: 978-6556920115 Dimensões do produto: 14 x 0,8 x 21 cm Peso de envio: 181 g
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Agradecimentos
Agradeço ao meu pai, Luiz Antonio Carvalho, e à minha mãe, Maria Tereza Barbosa, pela ajuda na revisão do texto. À Luiza Nassif Pires, agradeço pelas inúmeras conversas sobre os impactos econômicos da pandemia e seus efeitos sobre as desigualdades no Brasil e no mundo. Ao Renan Quinalha e aos amigos da Mira Filmes, meus mais sinceros agradecimentos pelo trabalho coletivo de gravação do podcast Entretanto, que contribuiu muito para a articulação de algumas das ideias aqui reunidas. Por fim, alguns trechos de colunas publicadas na Folha de S.Paulo entre 2018 e 2019 e no jornal Nexo em 2020 serviram de base para passagens do livro. Agradeço muito a ambos os jornais pelo espaço e também aos leitores pelos comentários e críticas pertinentes.
Introdução
A pandemia que se abateu sobre os diferentes países do mundo no início do ano de 2020 trouxe consequências inéditas para a economia global. Ao contrário das crises de 1929 e 2008, o colapso econômico de 2020 não é fruto do contágio da economia real por uma crise originada no setor financeiro, mas do contágio da economia real por uma crise de saúde pública ou, simples assim, do contágio por um vírus.
Pandemias anteriores de alta gravidade tampouco têm efeitos comparáveis, na medida em que se deram em um mundo muito menos globalizado, com menor integração comercial e financeira entre os países. Assim, em meio ao que deve tornar-se a maior queda da história do PIB mundial, o debate econômico foi chacoalhado como em poucas ocasiões anteriores. Em particular, temas e questionamentos ao modo como o sistema capitalista tem sido administrado desde os anos 1980, que já vinham sendo trazidos à tona desde a crise financeira global de 2008-9, ganharam uma concretude trágica.
Sobram evidências de que a pandemia não é tão democrática quanto muitos gostam de fazer parecer. Sim, ela está prejudicando a vida de todos, mas os mais pobres sofrem muito mais os seus impactos na saúde e na economia. No caso da gripe espanhola, uma pesquisa publicada na revista médica The Lancet sugere que as taxas de mortalidade foram até trinta vezes maiores em regiões mais pobres. A pandemia de 2009 do H 1 N 1 não foi tão diferente: um estudo de 2013 apontou uma taxa de mortalidade vinte vezes maior em países da América do Sul do que na Europa, por exemplo. Ou seja, os países com a menor dotação de recursos para enfrentar a crise atual, sobretudo se levarmos em conta a enorme fuga de capitais para países ricos em meio à incerteza nos mercados financeiros, sofrem os efeitos mais devastadores da pandemia.
Mas não são apenas as desigualdades globais que se tornam visíveis a olho nu. Dentro de cada país, os mais vulneráveis também estão mais sujeitos aos impactos da crise econômica e de saúde pública. Um estudo publicado em maio de 2020 por pesquisadores do FMI [1] analisou os dados de 175 países de cinco pandemias anteriores — Sars (2003), H 1 N 1 (2009), Mers (2012), Ebola (2014) e Zika (2016) — e estimou um aumento de quase 1,5% na desigualdade medida pelo índice de Gini nos cinco anos que sucedem esses episódios.
Além da perda de renda e trabalho, a base da pirâmide social, que no Brasil tem uma nítida dimensão racial e de gênero, está mais sujeita à contaminação e a desenvolver casos mais graves da infecção por Covid-19. Isso porque o risco de contaminação é maior pelo número de pessoas que dividem o mesmo dormitório, pelo uso de transporte público, pela falta de saneamento básico e pela dificuldade de manter o isolamento sem reduzir sua renda para abaixo do nível mínimo de subsistência. Já a gravidade dos casos e, portanto, a probabilidade de óbito dependem da existência de comorbidades (doenças crônicas associadas) e do acesso à saúde. No Brasil, a proporção de pessoas com comorbidades associadas à Covid-19 aumenta significativamente entre os menos escolarizados (54% para quem só frequentou o ensino fundamental, ante 34% para quem frequentou o ensino superior) [2] e o número de leitos de UTI no SUS é quase cinco vezes menor do que na rede privada.
Nesse contexto, a valorização súbita dos sistemas públicos de saúde, das redes de proteção social, das políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico e, de forma geral, do papel do Estado na alocação dos recursos da sociedade tem levado alguns analistas a considerar essa crise como um golpe fatal no neoliberalismo ou, quem sabe, no próprio capitalismo. Para muitos, a trágica pandemia ajudaria a parir um belo mundo novo, bem mais justo e sustentável. No entanto, as desigualdades exacerbadas pela crise, os patamares mais elevados de dívida pública deixados como herança pelo seu combate e o fortalecimento de tendências ao autoritarismo e ao nacionalismo apresentam-se como obstáculos vistosos para uma transformação social significativa.
Nesse sentido, o caso brasileiro é singular. Primeiro, porque a pandemia se abateu sobre uma economia que nem sequer havia se recuperado da recessão de 2015-6. Pior. A semiestagnação da renda entre 2017 e 2019 já era por natureza desigualitária: enquanto os mais pobres ainda sofriam queda em seus rendimentos, o meio e o topo da pirâmide recuperavam-se muito lentamente. Segundo, porque a crise é gerida por uma equipe econômica adepta de uma ideologia anacrônica de Estado mínimo e um presidente contrário às evidências científicas. Aqui, uma falsa oposição entre morte física e morte econômica embasou uma resposta inadequada em ambos os campos. É verdade que, como avaliou o jornal britânico Financial Times em reportagem sobre o Brasil publicada em 28 de abril, o Ministério da Economia foi “forçado a reconciliar sua identidade ‘Chicago Boy’ de livre mercado com a necessidade de vultosa intervenção governamental”. [3] Medidas fiscais substantivas foram adotadas — ou enfiadas goela abaixo pelo Congresso —, provocando um curto-circuito no bolsonarismo. Mas a resposta adequada a uma crise como esta não exige apenas relaxar regras orçamentárias em meio à calamidade, e sim repensar o próprio papel do Estado na sociedade e na economia para superar carências históricas que a pandemia tornou cristalinas.
Neste breve livro, escrito em meio ao turbilhão de uma crise sanitária, social e econômica com consequências ainda nebulosas, o objetivo é apresentar, à luz do contexto brasileiro, cinco funções do Estado que a pandemia ajudou a revelar. São elas: estabilizador da economia, investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, provedor de serviços à população e, por fim, empreendedor. Tais funções estão inter-relacionadas e certamente não exaurem as atribuições do Estado em sociedades democráticas, mas servem de ponto de partida tanto para a análise de nossas lacunas e desigualdades estruturais, quanto para a formulação de uma agenda econômica para o curto e o longo prazo no Brasil.