Livro ‘Contra mim’ por Valter Hugo Mãe

Livro 'Contra mim' por Valter Hugo Mãe
Capa com arte de Adriana Varejão e prefácio de Nélida Piñon. Valter Hugo Mãe recupera a infância e parte da adolescência e torna suas memórias os temas de sua literatura. Com a linguagem da crônica e o estilo que seus leitores bem conhecem, elementos autobiográficos se apresentam em sequenciamento, veiculados por linguagem de períodos curtos e compostos de capítulos também curtos, mas ricos em profundidade de reflexão e sinceridade com a própria história. A materialidade da palavra é a protagonista, e a grande lente pela qual seu autor aprende a ler o mundo. A infância retratada pelo escritor passeia por Portugal e sua história recente...
Editora: Biblioteca Azul; 1ª edição (18 dezembro 2020)  Capa comum: 256 páginas  ISBN-10: 6558300303  ISBN-13: 978-6558300304  Dimensões: 21.8 x 14.8 x 1.4 cm

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Leia trecho do livro

Desculpem, mas eu não quero ser imperador. Isso não me diz respeito. Eu não quero governar ou conquistar ninguém. Eu gostaria de ajudar toda a gente — se possível — judeus, gentios — negros — brancos. Todos queremos ajudar-nos uns aos outros. Os seres humanos são assim. Queremos viver pela felicidade dos outros — não pela sua miséria. Não nos queremos odiar e desprezar uns aos outros. Neste mundo há lugar para todos. E a boa terra é rica e pode providenciar para cada um. O modo de vida pode ser livre e belo, mas perdemos o caminho.

Charlie Chaplin, no filme O Grande Ditador

Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa — salvar a humanidade.

José de Almada Negreiros, em A Invenção do Dia Claro

O prosador poeta

Valter Hugo Mãe é um autor audaz cujo sólido talento reivindica o direito de tecer as urdiduras da memória. No livro Contra mim, ele recupera, por meio de recursos expressivos, a própria gênese e a do seu tempo. Em árduo esforço criativo, desenvolve os feitos com ardor e frescor como se os houvesse vivido na véspera da escrita. Tantas lembranças conferem uma ciência arcaica e contemporânea ao seu Portugal, dando ênfase ao ano de 1970, quando nasceu, em Angola.

Suas evocações registram o mundo ao alcance da sua infância, motivo de uma narrativa apta a esmiuçar a genealogia familiar fortemente portuguesa e inserir-se às formalidades sociais vigentes, aos preconceitos, aos poderes constituídos, aos mistérios de uma nação. Um relato ao qual ele atrela-se sem cautela ou pudor, mas tutelado pelos fundamentos de uma linguagem de refinado lavor literário.

Ao narrar, seguindo as pegadas da sua grei, o autor desvela o céu e o inferno de Angola e de Portugal, seus costumes, as práticas nocivas, as aventuras e desventuras do amor conjugal que o gerou. O contexto que o explica e contra o qual se insurge.

Contudo não é um narrador solitário, pois torna os personagens, acaso mencionados, em figuras a que empresta brilho e sigilo. São quem lhe cede a matéria com que romancear e poetizar o real e o pretexto para substanciar a memória. A estes protagonistas, regala espaço narrativo. Juntos, seguem para a ara do sacrifício.

Ao longo de um catálogo de abordagens estéticas, Valter Hugo Mãe prolonga a infância e insinua querer ser herói desta etapa. Já precoce artista do verbo, avalia as feridas coletivas que a mãe sara e, ainda, as alegrias enquanto traça um rumo para alcançar o intangível.

É perspicaz na busca da essência poética do universo que lhe chega sob a forma da palavra enraizada no cotidiano, por crer existir uma índole visionária que fomenta os veios secretos ainda adormecidos. Deste modo, o menino ativa a sensibilidade, apreende noções realistas da produção humana. Dono de amplos modelos narrativos, ele abarca a vastidão daquelas “sobras de vida” que lhe tocou, embora admita a ausência de provas de haver existido. Afinal, a “tristeza andava por toda parte.”

Mas, para assegurar-se do passado, volta-se para a mãe, que responde pelo seu advento. Devota-lhe imenso amor. Através dela, fortalece laços familiares, visita Guimarães, berço de Portugal, acolhe ali as especificidades do idioma que define os sentimentos. Como consequência, vem-lhe a compreensão da língua lusa que, conquanto aflore em manifestações esparsas, forma um esplendoroso conjunto da humanidade.

Com o socorro dos vizinhos quase anônimos, Valter Hugo reconstrói o que se pensava perdido. Com a consciência estética em formação, valida o que narra. Os vocábulos, que combatiam pela veracidade dos enredos, acumulavam e identificavam experiências sofridas. Aquela realidade onde cabiam ele e sua volúpia verbal. Ainda a natureza da arte que recém descobrira, ouvindo os acordes dos adultos, de que as “palavras eram joias”. Quando aprendeu a defender-se unindo as palavras, todas vizinhas entre si, pois que juntas elas pronunciariam coisas que não diziam postas quietas, reconhecia, dessa maneira, o prestígio da fala que esplendia até em detrimento da verdade.

A mãe é o seu epicentro. Seu amor por ela tornou-se milagre poético. Ela o envolvia com afeto e confiança, dando-lhe provas de sermos melhores do que éramos. Com ela, podia “erguer o futuro no amplo vazio”.

Com zelo, relata o namoro dos pais. Uma vida que fora vivida além deles. Certamente agiram “como quem chamava a cotovia”, recordando Romeu e Julieta. Aqueles pais que, ao constituírem familia, deixaram de ser quem haviam sido antes.

Graças à mãe, ele celebra Angola, onde nascera. A língua que, ouvida ali, determina diretrizes afetivas, causava-lhe “nostalgia difícil de se largar”, mas constata adiante que “existir é pura maravilha”. E que o país encrustado na imaginação, seu mito aliciador, foi sua primeira narrativa literária.

Aos seis anos, a família instala-se em Paços de Ferreira, seu sólido abrigo. Naquela vila, reconhece “voltar-se a si mesmo”. Ali detalha a realidade, visita os parentes maternos nas cidades adjacentes, descobre a vocação para amar os demais, enquanto temera às vezes ser uma criança banal, quando antevia um futuro notável.

Aos poucos, aborda a história de cada membro da familia, mede seus haveres e como se comportam na vida civil, como eles e a sociedade reagiram ao opressivo período ditatorial de longa duração. Semelhantes afazeres narrativos introduzem-nos ao sistema de controle da ditadura que se alastrou por todos os segmentos sociais. Os pormenores, as minúcias sociológicas, enriquecem a compreensão do Portugal cruelmente fustigado pelo obscuro período salazarista.

A avó materna destaca-se na família nuclear. Oferta ao neto o repertório de seus guardados encerrados no cofre da memória. Intui que aquele menino será um dia escritor e o municia com argumentos e, em suas conversas, dava vida aos mortos. Inculcava-lhe na imaginação um legado a ser imortalizado em sua criação literária. Contrária ela à mãe de seu pai que vivia em Paris e ao ter parido 21 criaturas, causara ao neto assombro e reflexões a propósito da existência.

Ao ir para a escola, entregue a severo regime educacional, padeceu da violência que consagrava o uso da régua como castigo, quando a mínima falta do aluno pretextava golpes de vara onde fosse, provocando sangramento, até mesmo fraturas, sem qualquer punição recair sobre as professoras, sempre insensíveis ao sofrimento causado. Uma tortura que indispôs com a escola a criança de cinco anos, mas que, no entanto, ensejou o avanço do autor pelos perversos labirintos da espécie humana.

De novo, a mãe salva-o, convence o filho, e ele diz “aceitei ir à escola porque aceitei ser torturado em troca da ciência deslumbrante de aprender a guardar a fortuna das palavras”. Assim ia alargando a noção da felicidade, como que ciente de se encontrarem todos sob os desígnios religiosos oriundos do Cristo e confessa que “haveria de estar com os olhos de Deus sobre mim a vida inteira”. Afinal, nascera com o dom da fé, para buscar um sentido e justificar sua crença em Deus. “A idade haveria de me trazer tudo”.

Em pungente capítulo intitulado “A Carne de Deus”, Valter Hugo Mãe introduz a bíblia da família, onde Deus se recolhia. O livro sagrado sobre o qual discorre e cuja antiguidade forjou a civilização, e que, graças a sua dimensão imaginária, protegia os ofendidos, as mulheres indefesas dos homens maus. Encerra suas considerações com a frase da avó materna: “A bíblia era a esperança”.

Confiava que sua escrita, caso estivesse à beira do espírito de Deus, se acercaria da bíblia, e, por ser dever humano, consumir horas investigando os arredores da terra e tudo para narrar antes do Divino apagar a sua escrita.

Ao pender para a ternura, se compadece pelos bichos, de vida breve, mal lhes permitindo vencer demais etapas. Afirma “os bichos são só paixão, falta-lhes tempo para se apaziguarem, logo falecem”. Portanto, segundo sua convicção, estes animais miúdos, sujeitos aos caprichos humanos, não conhecem o amor. Igual atenção chamam-lhe o elefante e os ovos das galinhas poedeiras, que ele julgava sagrados. Atraído pela natureza, vivia sob “a expectativa de as palavras fazerem um milagre”.

Confessa ter sido crédulo durante a infância. Aceitou o que lhe iam contando. A chamada carne de Deus amparava-se talvez em uma teologia verbal e ancestral que ia atualizando sob o impacto das revelações e, por força do verbo, conversava com Deus e com o falecido irmão Casimiro, morto infante. Convinha, pois, aceder aos céus, contar-lhes histórias, devolver-lhes vida, que circulassem de novo pelos corredores da casa. Por conseguinte, a memória familiar passava a pertencer-lhes.

Desde a infância, a quietude da morte perturbou o narrador. Comentou que tal “fascínio era toda a minha bravura”. Daí advir-lhe um prazer que superava os demais, com exceção da literatura, cuja plenitude fixou-se em seus livros.

Em torno dos onze anos, mudaram-se para outra cidade, onde o pai abriu um bar. No novo âmbito, o instinto sexual manifesta-se, o desejo se impõe. Tem devaneios e namora, atraído pelos ardis e pela anatomia da mulher. Os postulados poéticos o ajudam na sondagem erótica, na sua prática.

Admira a beleza da irmã que atrai o macho. Fascina-o a beata Alexandrina que não se alimentava há 13 anos, já a caminho da santidade. Ao menos era o que se contava. Também ele almejara ser santo um dia, no entanto, o sexo o exaltava e as namoradas se revezavam. De temperamento generoso, atribui ao amigo Marco “ser um espetáculo humano”. São tantas as vicissitudes que acumula a cada dia a fim de amadurecer, até encerrar suas cruciantes confidências.

Eis um poderoso mosaico impregnado de lirismo que Valter Hugo Mãe logrou com sua arrojada e harmoniosa escritura. Regalou-nos uma potente memória que se fez nossa. E, enquanto pautava feitos biográficos, desfiou o mistério da criação com a voz profética e imaterial do verbo. Ofertou-nos uma arte que o projeta para a grandeza literária.

Nélida Pirion
Novembro de 2020

Para a minha mãe, Antónia Rodrigues Alves,
e para o meu pai, Jorge Augusto Pimenta de Lemos

Primeiro livro As palavras pariam os seus significados


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